Intertualidade Biblica

Exercício no Texto de Mc 1:7-11.

Pastor George Emanuel

A teoria literária moderna postula que é possível rastrear num texto outros textos ou ecos literarios, ou seja, aqueles textos que serviram de base para à sua construção. A isto se denominou intertextualidade. Como os autores do Novo Testamento se apropriaram de toda literatura profética já existente até aquele momento a fim de divulgarem a doutrina cristã, aadesão dos leitores e ouvintes ao Evangelho era mais eficaz.

A relação de Marcos com os outros Sinóticos é que este foi Evangelho basilar, e a fonte escrita mais antiga, tendo servido como mola propulsora para os Evangelhos de Mateus e Lucas, pois a seqüência das histórias nos paralelos Sinóticos favorece esta opção intertextual.

O Evangelho de Marcos é de fato um dos maiores livros de todos os tempos; sua linguagem é clara; sua narrativa da vida do nosso Senhor é dinâmica e envolvente; seu apelo ao raciocínio não-teológico é bastante direto. Ou seja, trata-se de uma biografia contada de modo simples. O evangelho de Marcos nos atrai porque seu retrato de Jesus é um retrato com o qual podemos facilmente nos identificar. É o retrato de um homem, um homem-Deus, que é, de maneira maravilhosa, enviado do céu para a terra, onde vemos Deus se humanando em Suas atitudes e ações. A história, acima de qualquer coisa, é um registro de atividade do Messias. Marcos sendo um evangelho de ação nos tira o fôlego, fazendo-nos acompanhar, de um episódio para o outro, os movimentos e experiências de Jesus e dos seus discipulos.

Neste exercicio de intertextualidade veremos a priori quebatismo de Jesus foi um sinal de confirmação do seu ofício messianico.

·Marcos diz: "Então, foi ouvida uma voz dos céus: Tu és o meu Filho amado, em ti me comprazo" (v. 11).

·Em Mateus isto é declarado com uma pequena diferença. Mateus 3:17 diz: "E eis uma voz dos céus, que dizia: Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo".

·Marcos apresenta a voz falando diretamente com Jesus, e a ênfase é Jesus: "Tu és o meu Filho amado, em ti me comprazo".

·Mateus e Lucas apresentam a voz mais ou menos como se estivesse sendo dirigida a quem estava testemunhando o batismo.

·Ambos estão corretos. Marcos apresenta a ocasião e o incidente do ponto de vista de Jesus, enquanto Mateus e Lucas registram o fato do ponto de vista de João Batista.

·Quanto as conversas de João com Jesus nem são mencionadas no evangelho de Marcos. Ele tende a ignorar João Batista.

·Mateus enfatiza mais a conversa de João com Jesus.

·O importante é que as palavras de Deus vindas do céu eram o sinal de confirmação para Jesus de que Sua vida e Seu ministério eram aprovados pelo Pai.

·Quanto a expressao "Naqueles dias"... (v.9) éuma introdução solene no antigo grego bíblico, que por si só já anuncia um acontecimento santo. O Senhor (v 3), o Mais Poderoso (v 7), Batizador "vem", batizando com o Espírito (v 8) se manifesta.

Quanto as questoes literarias e principalmente sobre os ecos da intertextualidade, Dewey M. Mulholland, diz: Embora o próprio Marcos tenha citado o Antigo Testamento somente duas vezes (1.2-3 e 15.24), seu Evangelho inclui um número considerável de alusões e citações sintetizadas tiradas especificamente do Pentateuco, dos Salmos e dos Profetas (incluindo alguma coisa de cada capítulo de Dan­iel). As citações são combinadas, derivando significância vital a partir de suas sínteses (cf. 1.11; 13.24; 14.62). Marcos emprega repetições, ciclos, inversões sintáticas e progressões duplas e triplas. Justapõe os pensamentos a fim de grifar comparações e contrastes1.

Uma tradição oriunda de Papias (70-130 A. D.) reconhece, atrás da narrativa de Marcos, a pregação e autoridade do apóstolo Pedro. Esta afirmação de Papias é conservada por Eusébio da seguinte maneira: "Marcos, sendo o intérprete de Pedro, escreveu acuradamente tudo quanto ele se lembrou das coisas ditas e feitas pelo Senhor, porém não as colocou em ordem"2.

1.O Texto de Marcos 1:9-113

9 Kai. evge,neto evn evkei,naij tai/j h`me,raij h=lqen VIhsou/j avpo. Nazare.t th/j Galilai,aj kai. evbapti,sqh eivj to.n VIorda,nhn u`po. VIwa,nnouÅ

9Naqueles diasa, veio Jesus de Nazarébda Galiléia e por João foi batiza­do no rio Jordão.

10 kai. euvqu.j avnabai,nwn evk tou/ u[datoj ei=den scizome,nouj tou.j ouvranou.j kai. to. pneu/ma w`j peristera.n katabai/non eivj auvto,n\

10Logocao sair da água, viu os céusdrasgarem-se e o Espíritoedescendo comofpomba sobre eleg.

11 kai. fwnh. evge,neto evk tw/n ouvranw/n\ su. ei= o` ui`o,j mou o` avgaphto,j( evn soi. euvdo,khsaÅ

11Então, foi ouvida uma voz dos céus: Tu és o meu Filho amado, em ti me comprazoh.

Veja textos parelelos (v 9: Jo 7.52, 2Co 5.21);(v 10: Is 63.19b, Gn 8.11); (v 11: Sl 2.7, Gn 22.2, Is 42.1, Mc 9.7, 12.6, 15.39).

1.Marcos 1:9-13

Marcos 1: 9 E aconteceu naqueles dias que Jesus, tendo ido de Nazaré da Galiléia, foi batizado por João, no Jordão.

Mateus 3:13 Então veio Jesus da Galiléia ter com João, junto do Jordão, para ser batizado por ele.

Lucas 3: 21 E aconteceu que, como todo o povo se batizava, sendo batizado também Jesus, orando ele, o céu se abriu;

·Em primeiro lugar, veio Jesus de Nazaré da Galiléia.Sua origem é o primeiro choque. Ele não veio nem da região central do judaísmo, a Judéia, menos ainda da cidade santa com seu templo, nem se cogita a proveniência de João no v 4. Ele veio de um povoado afastado, Nazaré, que só podia ser encontrado com aju­da: da Galiléia(cf v 14). "Examina e verás que da Galiléia não se levanta profeta!" (Jo 7.52).

·Em segundo lugar, sem um indício sequer de título importante, fala-se simplesmente de "Jesus". Naquela época este era um nome co­mum da moda. Nos povoados judeus havia "Jesuses" às dúzias.

·Em terceiro lugar, faltam as indicações sobre família, profissão e antecedentes.

Jesus se apresenta à beira do Jordão em toda simplicidade, como um da multidão que deseja o batismo de João (Ver notas sobre Mt 3.13-17; Lc 3.21-22).

1.Mateus narra a surpresa e a desconfiança de João (Mc 3.14-15), na ocasião em que este entrou em contato com o corpo sagrado do Senhor para batizá-lo. João O batizou somente depois da insistência do Senhor. Logo (10): o primeiro uso desta palavra predileta de Marcos, que ocorre quarenta e uma vezes nesta obra.

2.Quando Jesus subiu do Rio Jordão, uma tríplice experiência O destacou entre os demais, identificando-O na sua única relação com Deus.

·Em primeiro lugar, ele viu os céus abertos (10), ou melhor, rasgarem-se (schizomenous), facultando a vista desembaraçada das coisas celestiais (cfr. Jo 3.12-13; Is 44.1).

·Em segundo lugar, ele viu o Espírito que como pomba descia sobre ele. É patente que a forma de pomba era visível, e não apenas um símile de ternura para descrever o fenômeno, pois Lucas elucida a experiência com as palavras "em forma corpórea" (Lc 3.22). Alguns fazem a sugestão interessante de uma alusão a Gn 1.2, onde o Espírito paira sobre as águas primevas.

·Em terceiro lugar, brada a voz do Pai dos céus, testemunhando que este é Seu Filho (11). Cfr. Mc 11.7 e Jo 12.28. As palavras relembram (Sl 9.7 e Is 42.1). Revela-se numa luz claríssima a Santa Trindade, focalizando a Pessoa do Filho. Para o homem conhecer o trino Deus, é preciso que o primeiro encontro sempre seja com a pessoa de Cristo, o Filho.

É notável que Jesus, embora batizado por João, não confessou pecado, e a Igreja primitiva sempre ficou firme quanto à imaculabilidade absoluta dEle. Para Jesus, Seu batismo significa primeiro o cumprir de toda a justiça (cfr. Mt 3.15; Lc 3:21); em segundo lugar, um ato de identificação com o povo, sendo "contado com os transgressores" (Is 53.12); e em terceiro lugar, um ato de consagração ao Seu ministério.( Mc 1:11; Lc 3:21)

Recapitulando, fica bem claro que Jesus recebeu a revelação de v 10s porque já era Filho, já vivia no mistério do Espírito Santo, e o tinha documentado com sua obediência no batismo. Não foi a voz do céu que estabeleceu a ligação entre Deus e Jesus, aqui tampouco como em 9.7, ela só tornou visível e audível a realidade desta ligação (cf Jo 1.51). Esta explicação combina com a interpretação supra citada de Mateus e Lucas. Sabemos que ambos testemunham a concepção virginal de Maria e, com isto, a existência de Jesus no Espírito Santo e sua condição de Filho de Deus desde a origem. Apesar disto, os dois evangelistas registram também a voz do céu. Nisto eles não têm a impressão de ter relacionado coisas contraditórias - e com razão. Jesus não se tomou Filho de Deus, mas é o Filho unigênito de Deus.

Sendo assim, encerro afirmado categoricamente que o discurso de Marcos, recebido de Pedro, deve ser visto dentro do contexto de uma intertextualidade (diálogo entre os textos) em que os autores do Novo e do Antigo Testamento baseiam-se na mensagem dos profetas para radicar a Jesus como o Messias que veio ao mundo dos homens.

Notas_________________________________________

[1] Mulholland, Dewey M; Marcos: Introdução e Comentário-Série Cultura Biblica; Vida Nova; pag. 16.

[2] Davidson, F. O Novo Comentário da Bíblia; Vida Nova; pág.1295-1296. Outros escritores patrísticos confirmam esta tradição que, segundo Dr. Vincent Taylor, "é tão segura que, ainda não a possuíssemos, seríamos obrigados a postular algo parecido". Isto não quer dizer que Marcos era apenas um secretário ou amanuense, nem tampouco que não usou material de outras fontes, inclusive as suas próprias reminiscências. É patente que o autor, embora não um dos doze apóstolos, possuía conhecimento muito íntimo dos fatos narrados, em que se revelam todos os sinais de originalidade. A ordem e classificação de material adotadas por Marcos são certamente criticadas pela tradição de Papias. Aparentemente, o evangelho segue uma ordem homilética, em vez de cronológica. As evidências internas da influência petrina são as seguintes: 1º O evangelho começa com a chamada de Pedro, sem referência alguma à natividade de Cristo. 2º O evangelho focaliza o ministério na Galiléia, e mais especialmente nos arredores de Cafarnaum, cidade de Pedro. 3º A vividez das descrições indica que são as experiências pessoais de uma testemunha ocular. São omitidos alguns pormenores que destacam a pessoa de Pedro, em a narração da confissão de Pedro, em Cesaréia de Filipe, e do seu andar sobre o mar. São relatadas minuciosamente as suas derrotas, como a negação do Mestre. Quanto as fontes uma vez aceita a prioridade de Marcos, as pesquisas quanto às fontes deste evangelho não têm obtido o mesmo êxito como no caso de Mateus e de Lucas. A tradição oral tornou-se o objeto de intensos estudos nos últimos cinqüenta anos, estudos estes que deram origem à Crítica de Forma propalada por Martin Dibelius. A Crítica de Forma propõe a existência, antes de serem escritos os evangelhos que possuímos, de pequenos círculos de tradição. Estes círculos conservariam o evangelho pelo método oral, embora houvesse alguns evangelhos escritos, como o prefácio de Lucas indica. A nomenclatura desses círculos difere conforme o crítico. B. S. Easton divide o material da maneira seguinte: Ditados, Parábolas, Diálogos, Narrativas Miraculosas e Narrativas da Paixão. V. Taylor distingue Histórias Declarativas, Histórias Miraculosas e Histórias sobre Jesus. A evidente diversidade entre as diferentes análises aponta para o perigo inerente nelas, a saber, a pura subjetividade que as determina, tendo em vista a impossibilidade de verificação externa, que se usa para a Crítica Textual. Uma vez que se propõem investigações além dos documentos escritos, qualquer hipótese razoável pode ser sugerida. Por outro lado, há valor na insistência dos críticos da forma que o evangelho era pregado antes de ser escrito. Com o decorrer do tempo, muito material assumiu forma mais definida para os fins mnemónico e catequético, e disto há indicações na ordem tópica que Marcos adota. Quanto à sua forma e caráter, esta tradição oral é em grande parte semítica. A presença de uma considerável influência aramaica no grego de Marcos indica isto, sem porém levar-nos a conclusão, mantida por C. C. Torrey e outros, de que o evangelho fosse tradução de um original aramaico. O importante é que este fato aumenta incontestavelmente o valor histórico da obra, visto que Marcos, embora gentílico nas suas simpatias, se coloca perto da tradição dos cristãos judeus. Quanto às fontes documentárias, a questão principal é se Marcos conheceu e utilizou o duvidoso documento "Q". Na opinião do Cônego Streeter é quase certo que "Q" precede Marcos; outros pretendem reconhecer vestígios de "Q" no seu evangelho. Além desta possibilidade indecisa, não há mais para dizer. Alguns procuram provar a existência duma edição preliminar, uma espécie de ensaio, conhecida como Ur-Markus, isto é, Marcos Original, mas esta sugestão altamente subjetiva pode ser considerada apenas uma hipótese. Em síntese, podemos dizer que a fonte principal deste evangelho é a pregação e ensino de Pedro, cujo sermão em Cesaréia constitui realmente um resumo do evangelho (At 10.34-43). A esta fonte principal seriam acrescentadas uma parte geral da tradição oral, as reminiscências pessoais de Marcos, e talvez material tirado de outros documentos.

[3] GTB BibleWorks LXX-BNT.

aAs expressões "aconteceu" (rc, bj) e "naqueles dias" facilmente se identificam como tradução de um texto hebraico (Beyer, 31 s,66) e são comuns no at para iniciar parágrafos.

b Esta pequena aldeia não é mencionada no at nem em escritos judaicos, e aparece aqui pela primeira vez na literatura.

c euthys é um advérbio de tempo comum, e é usado em todos os evangelhos com o sentido de um transcorrer rápido de acontecimentos. Em Marcos esta explicação geralmente não se aplica. Parece tratar-se de uma característica de estilo de certos textos que lhe serviram de base (cf qi 3). Tabachowitz (p 29ss) mostrou ser possível que esta palavrinha seja uma imitação do "eis" que exige atenção, que conhecemos de numerosas passagens do AT (mais de mil vezes). Como recurso para chamar a atenção, ele indica mudanças na narrativa, o começo do que é essencial, possivelmente a interferência de Deus ou também de Satanás. De qualquer modo, ele sempre aumenta a expectativa. Com "pressa e agitação" o termo, neste caso, não tem nada a ver (Egger, p 40). Se o advérbio em Marcos tem o sentido comum ou este caráter de exclamação, deve ser verificado cada vez pelo contexto.

d O plural indica fundo lingüístico do at; é uma maneira de se referir a Deus (Bl-Debr 141.4).

e Quando os judeus se referiam ao Espírito divino, geralmente falavam do "Espírito de Deus" ou do "Espírito Santo". "Espírito" sem adjetivo os fazia pensar num fantasma (cf Lc 24.37). No espaço cultural grego este perigo não existia, de modo que aqui o uso (diferente do v 8) dá a entender que este relato já foi adaptado por igrejas gentias.

f hos, como, freqüente em descrições de visões na Bíblia. Expressa algo aproximadamente comparável, não algo igual. Ao mesmo tempo revela e encobre, deixando em aberto.

g eis.auton poderia ser traduzido por "para dentro dele", mas isto não combina aqui. Um pássaro não voa para dentro de uma pessoa, mas pode pousar sobre sua cabeça ou seu ombro. Assim, Jo 1.23 tem ep auton, sobre ele.

h Há duas alternativas para o aoristo eudokesa. Ou ele expressa uma ação, como aoristo histórico, que ocorreu depois do batismo: "Tu me deste (neste momento) alegria!", ou deve ser entendido no sentido do presente perfeito hebr, que a lxx muitas vezes traduz com aoristo sentencioso (Steichele, p 150s; Bl-Debr 333). Neste caso, a voz por ocasião do batismo constata o que Jesus já possui: "Em ti me comprazo!"