Breve revisão acerca da visão filosófica da aleatoriedade

A busca por padrões, e por significados para estes, é algo inerente a natureza humana. É difícil explicar o que produz este comportamento e quando o desenvolvemos. O certo é que o reconhecimento destes padrões foi de grande relevância para a sobrevivência de nossa espécie. Como exemplo, podemos pensar nos egípcios, que foram capazes de perceber a regularidade com que o rio Nilo encontrava-se em seu período de cheia e que após este período, quando este voltava ao seu nível inicial, sucedia um período de grande fertilidade do solo em seu entorno, sendo o momento ideal para a prática agrícola.

Essa nossa busca incessante por padrões, por sua vez, gera dois problemas. Um deles é o viés de confirmação, fenômeno já observado por Francis Bacon em 1620, que representa uma tendência natural de que busquemos informações que confirmem a opinião que nutrimos a priori. O segundo problema foi estudado pelos pscólogos Paul Slovic, Howard Kunreuther e Gilbert White, que mostraram empiricamente a nossa baixa capacidade em lidar, e mesmo reconhecer, a aleatoriedade.

A aleatoriedade representa uma quebra na ordem, tendo em vista que representa um evento em que há um alto grau de imprevisibilidade em sua ocorrência. Em outras palavras, um evento é definido como aleatório quando não podemos determinar com precisão a sua ocorrência, apenas calcular a probabilidade que se concretize ou não. Por exemplo, quando lançamos uma moeda no ar, temos a priori, dois resultados possíveis, cara ou coroa. Embora ambos os resultados sejam equiprováveis, cada um com 50% de chances de ocorrência, se lançarmos esta mesma moeda dez vezes, nada impede que encontremos o mesmo resultado em todos os lançamentos, ainda que a probabilidade de que isso ocorra seja extremamente baixa. Porém, para um número de lançamentos grande, veremos que os resultados de cara ou coroa aparecem aproximadamente na mesma proporção.

O contrário dos fenômenos  aleatórios são os fenômenos determinísticos. Fenômenos determinísticos são aqueles que sabemos de antemão o seu resultado, desde que sigamos algums processos. Por exemplo, sabemos que se colocarmos uma chaleira com água numa fonte de calor, esta irá, a partir de um certo intervalo de tempo, começar a ferver.

A tentativa de classificar os fenômenos observados como determiníticos e aleatórios tem sido tema de reflexão para filósofos desde a antiguidade. Como exemplos notáveis na antiguidade, temos os filósofos gregos Demócrito e Epicuro.

Demócrito considerava que a aleatoriedade, ou pelo menos, da aparência de aleatoriedade de certos fenõmenos, era resultado de nossa incapacidade de reconhecer todas as causa determinantes de um certo fenômeno observado. Chamam-se estes fenômenos de aleatórios subjetivos. Em outras palavras, a aleatoriedade consistiria em um determinismo disfarçado, resulyado dos limites de nossa capacidade em observar um quadro completo.

Já Epicuroacreditava que existiam processos que não eram resultado de nenhuma causa direta. Estes processos, chamados de aleatórios objetivos, tem um comportamento impossível de se prever. Ainda que partam das mesmas condições iniciais, resultarão em resultados distintos.

A visão de Demócrito foi predominente até em tempos recentes. Na verdade, com o desenvolvimento do método científico nos séculos XVII e XVIII, foi ainda mais fortalecidas, em especial com o sucesso do determinismo mecanicista que surge como resultados da física Newtoniana. Uma vez conhecidas todas as forças atuando sobre uma partícula em um instante t0 e em um ponto x0, era possível, utilizando as Leis de Newton, prever a posição e a velocidade desta partícula em qualquer instante posterior. O sucesso da mecânica Newtoniana foi tão grande que levou o matemático Pierre Simon de Laplace a escrever, em 1812 que

“Podemos considerar o presente estado do universo como resultado de seu passado e a causa do seu futuro. Se um intelecto em certo momento tiver conhecimento de todas as forças que colocam a natureza em movimento, e a posição de todos os itens dos quais a natureza é composta, e se esse intelecto for grandioso o bastante para submeter tais dados à análise, ele incluiria numa única fórmula os movimentos dos maiores corpos do universo e também os do átomo mais diminutos; para tal intelecto nada seria incerto e o futuro, assim como o passado, estaria ao alcance de seus olhos.”

No início do século vinte, com o advento da mecânica quântica, a visão de Epicuro sobre a aleatoriedade volta a cena. A teoria quântica, que tentava explicar fenõmenos do mundo microscópico, como a radioatividade, que consiste na emissão de radiação por núcleos atômicos instáveis, concluíram ser impossível explicar o porquê e quando da sua ocorrência. Em casos como estes, pode-se, no máximo, calcular a probabilidade de sua ocorrência. Até o presente momento, uma aleatoriedade objetiva, conforme a interpretação epicurista, só fio encontrada na mecânica quântica. Outros fenômenos, embora apresentem um elevado grau de imprevisibilidade, não são de fato aleatórios.

Como exemplo ilustrativo, na década de 60, o meteorologista Edward Lorenz, estudava fenômenos meteorológicos usando um conjunto de equações diferenciais não-lineares. Lorenz observou que pequenas alterações nas condições iniciais produziam resultados completamente diferentes. Este fenômeno ficou conhecido como efeito borboleta e é um dos primeiros exemplos de estudos sobre o caos.

A aparência de aleatoriedade nos resultados observados por Lorenz eram consequência da sensibilidade às condições iniciais pertinentes a sistemas de equações diferenciais não lineares. Isto significa que o sistema apenas aparentava ser aleatório.

Como podemos notar, a aleatoriedade sempre foi um tema de grande atenção por parte de pensadores, quer filósofos, quer cientistas. Era de se imaginar que os pensadores bíblicos tenham dedicado alguma atenção, refletindo sobre esta temática tão intrigante para os seres humanos.

Qual seria a visão bíblica sobre a aleatoriedade e como refletir sobre o conceito bíblico pode ser útil em nossos dias?

A visão bíblica acerca da aleatoriedade

Salomão, rei de Judá, é descrito na Bíblia como o homem mais sábio que já viveu (1Re. 3:12*). Segundo o relato, Salomão recebeu esta sabedoria da parte de Deus, em resposta a uma oração. Para ilustrar a vastidão desta sabedoria, ou de sua capacidade de reter conhecimento, a Bíblia fala que ele foi capaz de compor 3000 provérbios, uma forma de transmissão oral de conhecimento, em geral, de cunho moral, mais de 1000 cânticos, de falar sobre as árvores e sobre os peixes da região onde vivia. Percebe-se que o rei era um grande estudioso da natureza e da moralidade humana. Durante sua existência, Salomão dedicou-se a entender a existência humana, o que lhe causava espanto, reverência e dor.

O livro de Eclesiastes é geralmente atribuído a Salomão. Neste livro, no capítulo 9 e nos versículos 11 e 12 podemos observar uma das reflexões do grande rei

“11 E eu vi mais outra coisa debaixo do sol: os velozes nem sempre vencem a corrida, e nem sempre os fortes vencem a batalha; os sábios nem sempre têm alimento, os inteligentes nem sempre têm riquezas, os que têm conhecimento nem sempre têm sucesso; porque o tempo e o imprevisto sobrevêm a todos eles. 12 Pois o homem não sabe a sua hora. Assim como os peixes são apanhados numa rede cruel e os pássaros são apanhados numa armadilha, assim os filhos dos homens são enlaçados na hora da desgraça, quando ela lhes sobrevém de repente.”

 Salomão nos fala da imprevisibilidade da vida, tanto dos animais, como os peixes, facilmente apanhados em uma rede, quanto dos seres humanos. Num único lance, em uma fração de segundos, a vida pode mudar significativamente. Ou mesmo encontrar o seu fim. E isto independente da origem, das habilidades, da força, ou mesmo das conquistas prévias. Nada é garantia de sucesso ou imunidades quanto a um fracasso futuro. Salomão possuía diversos exemplo, alguns em sua própria família, para embasar seu pensamento.

Quando Israel estava em guerra contra os filisteus, conforme relatado no capítulo 17 do livro bíblico de 1 Samuel, Golias, o gigante e um poderoso guerreiro, zombava dos israelitas que não encontravam em suas fileiras alguém disposto a enfrenta-lo. Neste momento, surge Davi, pai de Salomão, um jovem pastor de ovelhas. Davi era um homem de grande coragem e profunda fé. Embora não tivesse experiência e nem mesmo, aparentemente, a capacidade física (1 Samuel 17:39) necessária para enfrentar um adversário treinado e fortemente equipado, sua confiança em Deus o levou a enfrentar o seu poderoso adversário. Armado apenas com uma funda, Davi partiu para o combate, sendo bombardeado com as injúrias por parte de Golias. No entanto, com apenas um único golpe, atingiu certeiramente a cabeça do gigante filisteu, levando-o a morte. Golias não esperava tamanha precisão por parte de Davi. Toda a sua força, experiência, equipamentos e preparo, não foram suficientes para levar Golias a vitória. Esvaneceram em um único golpe, algo imprevisível por Golias. Vemos um exemplo claro de como a aleatoriedade subjetiva agiu favoravelmente ao rei Davi.

Por outro lado, o mesmo rei Davi, anos depois, protagonizou outros eventos que se relacionam com o que Salomão escreveu no Eclesiastes sendo que, desta vez, os resultados lhe foram desfavoráveis.

Após a vitória sobre Golias, a fama de Davi cresceu entre o povo israelita, induzindo o rei Saul ao ciúme. Saul passa, então, a perseguir e tentar matar Davi, seu fiel aliado. Embora fosse um grande guerreiro e um servo leal, corajoso e forte, houve noites em que faltou a Davi o alimento, precisando dormir em cavernas. Tudo isso pela inveja de um homem. Não havia com Davi sequer imaginar que teria de enfrentar uma situação como essa.

A grande verdade que Salomão contemplava é que, independente de nossas habilidades, de nossa preparação, sempre haverá um certo grau de imprevisibilidade em nossos empreendimentos. Em parte, porque sempre disputamos espaço com milhares de outros homens e mulheres, muitos deles tão bem ou melhor preparados do que nós. Além do mais, há tantos imprevistos que podem nos acontecer ao longo do trajeto que estamos percorrendo, que tornam o resultado final imprevisível. A aparência de aleatoriedade vem da nossa incapacidade de visualizar estes obstáculos, de enxergar o quadro completo a nossa frente.

Outra passagem que nos mostra como os pensadores bíblicos enxergavam a aleatoriedade pode ser vista no livro do profeta Sofonias, capítulo 2 e versículo 3, que diz

Busquem a Jeová, todos vocês, mansos da terra, que obedecem aos seus, decretos justos. Busquem a justiça, busquem a mansidão. Provavelmente vocês serão escondidos no dia da ira de Jeová.”

Nesta passagem, o profeta contemplava a busca do ser humanos pela aprovação divina. Ele fazia o incentivo de que buscassem a justiça e a mansidão, que fossem também obedientes. No entanto, mesmo com todo este esforço direcionado ao propósito de obter a salvação, não havia uma certeza absoluta de sucesso neste empreendimento. O profeta poderia ter em mente os casos de homens fiéis, anteriores a ele, como o rei Salomão, citado anteriormente pela sua sabedoria. Salomão, durante a sua vida, acumulou muitas esposas de diversas nacionalidades e que adoravam uma grande diversidade de deuses. Isto levou o idoso rei a praticar também a idolatria, em desaprovação à lei dada por Iahweh a Israel (1Re.11:1-8).

Uma reflexão mais profunda sobre a busca da justiça e da mansidão pode nos ajudar a compreender de forma mais clara o provavelmente o fim da declaração de Sofonias. Primeiro, o profeta reconhecia que uma habilidade ou qualidade adquirida pode ser perdida se não for praticada constantemente. Buscamos a justiça e a mansidão significa um esforço consciente em sua prática, o que nos mantém focados e atentos. É muito fácil para o ser humanos perder o foco. Existem muitas distrações ao longo do caminho. Enfrentamos problemas pequenos como um defeito em um carro gerando um gasto extra e a necessidade de dedicarmos mais tempo ao trabalho para que possamos honrar com esse compromisso inesperado. Podemos ter algum problema grave de saúde que, por si só, já seria limitante, mas que pode resultar em um quadro depressivo. Ou podemos enfrentar uma crise familiar. Todas essas situações geram um desgaste físico e mental que podem levar a um enfraquecimento da fé ou mesmo ao afastamento de Deus.

É claro que o profeta concentra a sua reflexão na relação para com Deus. Mas é inegável que o mesmo princípio se aplica a outras facetas da vida. Vemos que, mesmo esportistas de altíssimo nível, em algum momento de suas carreiras, enfrentam momentos de menor desempenho. Não temos como simplesmente ignorar os problemas que nos cercam, por mais empenhados que estejamos em nossa causa ou nosso trabalho. Por isso, qualquer que seja a atividade a qual nos dedicamos, no máximo podemos dizer que há uma probabilidade de sucesso.

O contraste entre a visão bíblica e a visão dos profissionais de nosso século

Em uma coluna publicada na Gazeta do Povo**, o filósofo Luiz Felipe Pondé fala do que ele chama de “profissional arquetípico do século 21”, vendedores de ilusões, promotores de um sucesso que eles mesmos não alcançaram e que, ainda assim, conseguem mobilizar uma legião de incautos.

Tais profissionais, que escolhem para si nomes como coach quântico, são, na verdade, grandes picaretas. Apresentam as fórmulas mágicas do sucesso, extraídas, supostamente, da contemplação da vida de homens bem-sucedidos. Oferecem lições do tipo, “siga esses hábitos e serás milionário”, “desenvolva estas sete atividades e tenha sucesso profissional”.

Tais vendedores do sucesso ignoram, propositalmente, que cada pessoa segue uma estrada própria e que o sucesso ou fracasso não é, meramente, resultado do caminho trilhado, mas depende também dos desafios que se encontra, de ter as ferramentas necessárias para cada situação e, também e não menos importante, das ajudas que recebe ao longo da caminhada.

Uma grande ideia, por exemplo, pode não ser suficiente para garantir o sucesso. Como exemplo, drástico, reconheço, considere o grande pintor italiano Leonardo da Vinci. Entre os esboços de projetos encontrados por historiadores, se encontra o protótipo de um automóvel. Embora fosse uma ideia brilhante, ainda mais nos tempos de Leonardo, a grande verdade é que sua ideia somente se tornou verdade cerca de trezentos anos depois de sua morte. Isso porque da Vinci não possuía, a seu tempo, as ferramentas necessárias para tirar a ideia do papel. E, provavelmente, não havia mais um mecenas disposto a financiar algo tão fora da realidade.

Poderíamos citar uma série de outros eventos da história para reforçar este argumento. Mas creio que o ponto focal já está bem evidenciado. Não existe nenhuma certeza em nossa existência exceto, talvez, a morte e os impostos. De resto, podemos no máximo nos empenhar arduamente naquilo que desejamos realizar e, assim, aumentar a nossa probabilidade de sucesso. Isso nos leva a ter um conceito equilibrado, e uma certa dose de humildade, pois sabemos que o nosso sucesso não depende exclusivamente de nossos esforços, o mesmo pode-se dizer de nossos fracassos. Reconhecermos a existência da aleatoriedade nos tornará mais conscientes e não nos permitirá cair na conversa daqueles que tentam nos vender o sucesso em pílulas.

*Todos os textos bíblicos citados foram extraídos da Tradução do Novo Mundo das Escrituras Sagradas, versão de 21.

**Disponível em https://www.gazetadopovo.com.br/vozes/luiz-felipe-ponde/o-profissional-arquetipico-do-seculo-21/