Catiane Nascimento de Oliveira**

 

Só agora, decorrido tanto tempo humano, posso, finalmente, contestar as acusações contra mim feitas pelo meu ex-marido, o Dr. Bento Santiago. E fazê-lo, porque, nestas paragens que ora habito, aprendi, com meu irmão Brás Cubas, as artes da narrativa além-tumular. Ficamos amigos, ele, eu e o senhor Quincas Borba...

                                   (Domício Proença Filho, Capitu, Memórias Póstumas, 2005, p.11)

 

As tendências pós-modernas revelam-se cada vez mais presente na produção literária contemporânea, assim como, nas demais manifestações artísticas. A estética pós-modernista rompe com o paradigma tradicional, transformando-se na poética da inclusão, do Fusionismo, trazendo a tona à Inovação. Segundo Jair Ferreira dos Santos (2006, p.39), “o pós-modernismo prolonga a liberdade”, neste contexto, não há espaço para o TABU, pois o proibido assume o centro da temática deste estilo DES-construcionista, como foi bem observado pelo autor supracitado, “ O pós contém um des” (2006, p.17.  Linda Hutcheon afirma que:

As margens e as extremidades adquirem um novo valor. O “ex-centrico” – tanto como off - centro como descentralizado – passa a receber atenção. Aquilo que é “diferente” é valorizado em oposição à “ não identidade” elitista e alienada e também ao impulso uniformizador da cultura de massa. (HUTCHEON, 1991, p. 170)

Sendo assim, temas como: homossexualismo, drogas, sexo, violência, prostituição entre outros considerados polêmicos, ganham espaço na ficção contemporânea. A originalidade tão buscada em estilos anteriores, sai de cena, e a DES-construção do romance assume o palco. Jair Ferreira dos santos salienta que “Na literatura pós-moderna não é para se acreditar no que está sendo dito, não é um retrato da realidade, mas um jogo com a própria literatura, suas formas a serem destruidas, sua história a ser retomada de maneira irônica e alegre.” (SANTOS, 2006, p. 39)

A ficção literária não é mais considerada representação do mundo real, mas sim, do mundo de palavras em diálogo com outros mundos, dentre os quais, o do universo da ficção. Neste sentido o recurso da Intertextualidade marca presença através da  paródia, evidenciando de forma expressiva o diálogo que as obras contemporâneas estabelecem com as canônicas, além de outros textos.

Portanto, é inegável que para entendê-las é fundamental conhecê-los. Machado de Assis, em sua excelência na arte narrativa, ocupa lugar especial, uma vez que, no cenário pós-moderno, as obras machadianas aparecem de várias formas na metaficção. O objetivo do presente trabalho é mostrar como a ficção contemporânea brasileira vem incorporando a tendência literária pós-moderna, mais específicamente a Intertextualidade, como expressiva marca do Pós-Mordenismo. Na literatura brasileira do século XX, é bastante comum obras, fazerem referência à outras obras de ficção, no entanto, para serem compreendidas é necessário que haja leituras prévias dos textos originais, caso contrário, as Intertextualidades passarão despercebidas pelos leitores desatentos.

Em Capitu Memórias Póstumas (1998), romance brasileiro pós-modernista, de Domício Proença Filho, observa-se explicitamente a presença de várias obras da literatura do Brasil, entre elas um clássico, Dom Casmurro (1899), de Machado de Assis,  assim, fica evidente que o autor faz uso da INTERTEXTUALIDADE, mais especificamente, à PARÓDIA.  É preciso destacar que, de acordo com Professor de Literatura Brasileira Dr. Vitor Hugo Martins, em análise das contribuições de Linda Hutcheon,  a paródia no pós-modernismo é um recurso intertextual que vai além do humor e da ridicularização, mais que isso, “implica em distanciamento crítico, autorreflexão, discurso irônico”.

Marilene Weinhardt (2003), em seu artigo, nota o recurso da migração de personagens ficcionais de um texto para o outro e a imitação até mesmo do título, haja vista, para o do nosso objeto de estudo, Capitu, Memórias Póstumas. Nota-se que Domício, estabelece claramente diálogo com obras machadianas, especificamente com Dom Casmurro, Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba e Memorial de Aires, sendo que, com Dom Casmurro a relação é direta.

O que se pretende com este ensaio sobre INTERTEXTUALIDADE MACHADIANA EM CAPITU MEMÓRIAS PÓSTUMAS, é mostrar a transitação das personagens criadas por Machado, evidenciando o diálogo entre as obras, como característica da metaficção pós-moderna. Capitu Memórias Póstumas configura-se em uma releitura e reescrita de Dom Casmurro e também de personagens de outras obras do “Bruxo do Cosme Velho”, além de dialogar com personagens de ficção da Literatura Brasileira. Neste sentido, revela-se um modelo exemplar da Ficção Brasileira Contemporânea.

Para elaborar este ensaio  utilizou-se como suporte teórico quatro estudiosos, Jair Ferreira dos santos, O que é Pós-moderno (2006); Linda Hutcheon, Poética do pós-modernismo (1991); Ingedore Villaça Koch, O texto e a construção dos sentidos (2007), e Vitor Manuel Aguiar e Silva, Teoria da Literatura (1991). Essas obras servirão de subsídios teóricos sobre o texto literário, que nortearão este trabalho.

O conceito de intertextualidade tem sido abordado tradicionalmente, principalmente nos estudos relativos a construção de textos literários. Nos diferentes estilos de época da Literatura, verifica-se o diálogo entre textos, como uma forma de modificar o discurso original, na produção de um novo enunciado linguístico.

 Alguns autores defendem que não há texto sem intertexto. Barthes (apud KOCH, 2007, cit. p, 59) afirma que, “todo texto é um intertexto; outros textos estão presentes nele, em níveis variáveis, sob formas mais ou menos reconheciveis”, ainda em respeito a este assunto, Vitor Manuel Aguiar e Silva denota que, “O texto é sempre, sob modalidades várias, um intercâmbio discursivo, uma tessitura polifônica na qual confluem, se entrecruzam, se metamorfoseiam, se corroboram ou se contestam outros textos, outras vozes e outras consciências.” (AGUIAR E SILVA, 1991, p. 625).

Nota-se que a intertextualidade está presente nos mais variados tipos de textos, desta forma, é inevitável não utilizá-la na literatura, Laurent Jenny (1979, p.5 apud, SALES, Paulo Roberto, “Para (Além da) Ode: O pastiche em Memorial do Fim”, in Revista de Letras 2007, p. 153), salienta que, “fora da intertextualidade, a obra literária seria incompreensível”.

 

Verifica-se a presença desta estratégia estilística, em obras de outras gerações literárias, contudo, no pós-modernismo, surgiu com novo viés, haja vista para o uso da Paródia, recurso intertextual recorrente na ficção contemporânea, uma vez que, estabelece diálogo de novos textos com textos de outras escolas literárias, trazendo tanto as características da época do texto original, quanto traços estilísticos próprios da Literatura pós-moderna.

Sobre a Paródia Linda Hutcheon Pontua:

A paródia é, pois, repetição, mas repetição que inclui diferença; é imitação com distância crítica. Cuja ironia pode beneficiar e prejudicar ao mesmo tempo. Versões irônicas de “transcontextualização” e inversão são os principais operadores formais, e o âmbito ethos pragmático vai do ridículo desdenhoso à homenagem reverencial. (Linda Hutcheon, 1989, p. 54 apud Vitor Hugo Martins, “Capitu – Memórias Póstumas” (1998), de Domício Proença Filho: romance paródia, in Roteiro de estudo, 2011, cit. p.12).

 

A paródia na ficção pós-modena deixa de ser associada ao chiste, ao humor, e passa a exigir um tipo específico de leitor, que seja capaz de estabelecer relações intertextuais, para construir novos significados a partir de textos parodiados. Desta maneira a paródia se consolida como um recurso impar utilizado pelos autores da nova geração, que fazem releituras das obras literárias de autrora, com desvio crítico, sem abrir mão da ironia.

A partir das considerações teóricas feitas voltemo-nos para a análise da obra do escritor carioca Domício Proença Filho. A ligação com outros discursos machadianos inicia-se no título Capitu Memórias Póstumas, que nos remete à duas obras, Dom Casmurro e Memórias Póstumas de Brás Cubas.  Destaca-se o fato de uma personagem de ficção aparecer ali. Sobre esse procedimento, a migração de personagens canônicas da literatura para obras contemporâneas e em especial no caso de Capitu uma das personagens mais conhecidas da literatura brasileira, Marilene Weinhardt destaca:

 

Na produção crítica, não faltam estudiosos que apontem a força da figuração de Capitu, esbanjando-se adjetivos para qualificá-la. Quando se transita da influência para o que vem sendo chamado de crítica-ficção, ainda que sem levantamento exaustivo, parece ser possível afirmar, sem muito risco de erro, que é o caso mais significativo, numericamente, na ficção brasileira, seja tendo em vista o título Dom Casmurro, seja tendo em vista uma personagem em particular. (MARILENE WEINHARDT, “Retorno de Capitu”, in Revista Letras, Curitiba: UFPR, nº 61, 2003, p. 316)

A relação dialógica com Dom Casmurro é direta, todas as personagens do romance matriz aparecem na obra de Proença Filho, exatamente como foram construidas por Machado, possuindo os mesmos traços psicológicos. Nos excertos a seguir destacam-se as personagens mais relevantes: “ Bentinho vivia repetindo que sua mãe era boa criatura. Não era bem assim. D. Glória, apesar de aparente mansidão e da emotividade, era uma matriarca autoritária e dominadora...”  (PROENÇA FILHO, 2005, p.26)

 

Tudo estava bem, quando de repente, um resfriado, a tosse, a febre e a pneumonia levou minha mãe, minha querida e compreensiva D. Fortunata... Ampararam-me, naquele triste instante, a amizade de Sancha e de Escobar; este ainda fez mais: não deixou meu pai um só instante sozinho... (PROENÇA FILHO, 2005, p. 188)

 

 O enredo é o mesmo, e o narrador também é autodiegético, porém a voz é feminina, pois a história é recontada sob o olhar de Capitu, como pode-se observar em “ ... Estimulada por ela, eu, Capitu, decidi escrever sobre o outro lado da minha história” ( PROENÇA FILHO, 2005, p.12).

Desta maneira, Capitu faz a sua defesa contra as acusações do seu ex-marido, utilizando como estratégia o próprio discurso de Bentinho, assim, ao longo da narrativa, Domício, estabelece os jogos intertextuais através da transcrição do texto-base, e por meio do flashback, a narrativa vai retornando ao passado, trazendo dados das personagens que vão surgindo ao longo da obra. No trecho abaixo, Capitu transcreve o discurso de Bentinho ipsis litteris “ Ia a entrar na sala de visitas, quando ouvir proferir o meu nome e escondi-me atrás da porta” (PROENÇA FILHO, 2005, p. 16).

Isso ocorre durante toda a narrativa, e o leitor é avisado previamente pela própria narradora como destaca o fragmento,  “ Não há como fugir dos fatos. Vivemos, eu e Bentinho, uma realidade comum, em vários aspectos relatada no seu livro. Ao retomá-la, reproduzirei, com frequência e por vezes literalmente, passagens de seu texto”. (PROENÇA FILHO, 2005, p. 15-16).

Além de parodiar a história de Machado, Domício Proença filho parodia em alguns momentos o estilo da narrativa do cânone, esta afirmação fica evidente no modo como os capítulos são construidos, pois na obra original os capitulos são curtos e na versão paródica também são curtissimos, outra peculiaridade machadiana encontrada no texto de Domício, é o diálogo com o leitor observado no trecho a seguir: “A propósito, se você leu o livro do meu ex-marido, sabe que o Dr. Cosme era irmão e D. Justina era prima de D. Gloria.” (PROENÇA FILHO, 2005, p. 23). Em vários momentos o narrador repeti este procedimento.

O diálogo com outras obras machadianas  surgem no decorrer da narrativa, tendo como representantes as personagens principais de cada romance, é o caso de Brás Cubas,  narrador protagonista da obra Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), conhecido como “defunto autor”, em Capitu Memórias Póstumas, Brás Cubas surge como amigo pessoal de Capitu, com quem ela aprende a “arte da narrativa além-tumular”, tornando-se também uma “defunta autora” como deixa claro o excerto:

Só agora, decorrido tanto tempo humano, posso, finalmente, contestar as acusações contra mim feitas pelo meu ex-marido, o Dr. Bento Santiago. E fazê-lo, porque, nestas paragens que ora habito, aprendi, com meu irmão Brás Cubas, as artes da narrativa além-tumular. Ficamos amigos, ele, eu e o senhor Quincas Borba... (PROENÇA FILHO, 2005, p.11)

 

O diálogo entre as personagens machadianas, vai além da intertextualidade, pois as personagens dialogam de fato, umas com as outras, demonstrando relação de amizade e respeito mútuo, como verifica-se abaixo:

 

Troquei idéias com Brás Cubas, Quincas Borba e o conselheiro; o filósofo advertiu-me que, nesta preocupação com a opinião, eu estava a identificar-me com a família Santiago; concordou o Conselheiro Aires, e todos eles coincidiram num ponto de vista: eu devia o meu texto a mim mesma e às mulheres de todos os tempos... (PROENÇA FILHO, 2005, p. 228).

Nota-se a presença da obra Quincas Borba (1892), e da personagem de mesmo nome, a qual Capitu, refere-se como “filósofo”, outra personagem machadiana é o “Conselheiro Aires”, da obra Memorial de Aires, publicada em 1908, meses antes da morte do autor, foi o último romance publicado por Machado de Assis, “D. Carmo”, personagem da mesma obra, também surge em Capitu Memórias Póstumas nesta passagem: “Quem me encorajou foi a palavra do Conselheiro Aires, que também se tornou meu amigo, o pai espiritual de que eu carecia. Ele e D. Carmo são criaturas únicas.” PROENÇA FILHO, 2005, p. 13).

Desta forma, na Obra Capitu Memórias Póstumas, os diálogos intertextuais com romances machadianos estão mais do que evidentes e persiste no decorrer da narrativa. Nota-se que a paródia pós-moderna é usada para retomar textos literários com desvio crítico, para destruir os significados e reconstrui-los. A paródia neste sentido, nada tem a ver com o cômico, mas sim, trata-se de uma homenagem, que requer repetição com diferença e distanciamento crítico.

No texto de Domício Proença filho observa-se a diferença entre os textos, pois no texto-base, os fatos são narrados sob o ponto de vista masculino, e em Capitu Memórias Póstumas, embora haja transcrições do texto original, prevalece a versão de Capitu, por isso,  pode ser considerada paródia, pois opera imitação, dos textos machadianos, com distância crítica e irônica, atribuindo-lhes novos significados.

REFERÊNCIAS

 

AGUIAR E SILVA, Vitor Manuel de. “Texto, intertextualidade e intertexto”, in Teoria da Literatura. 8ª Ed. Coimbra: Almedina, 1991, p. 624-639.

HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: História, Teoria, Ficção. Trad. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991, p. 163-183.

 KOCH, Ingedore Villaça. O texto e a construção dos sentidos. 9ª ed. São Paulo: Contexto, 2007, p. 59-74.

SALES, Paulo Alberto Silva de. Para (Além da) ode: O pastiche em Memorial do Fim, in Ícone – Revista de Letras, são Luís de Montes Belos: PBIC/UEG, v. 1, 2007, p. 152-170.

SANTOS, Jair Ferreira dos. O que é pós-moderno. São Paulo: Brasiliense, 1976. P. 17-39.

WEINHARDT, Marilene. “Retornos de Capitu”, in Revista Letras, Curitiba: UFPR, nº 61, 2003, p. 315-323.

PROENÇA FILHO, Domício. Capitu Memórias Póstumas. 3ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2005.

 



** Discente do 5º  semestre noturno.