OS SELVAGENS: A LINGUAGEM E O USO DOS FATOS HISTÓRICOS NA LITERATURA DE GOMES DE AMORIM

 Francisco Gomes de Amorim, discípulo do poeta português Almeida Garret, é autor da prosa Os Selvagens, publicada em 1875. Quanto à estrutura formal, o romance é uma narrativa composta de 18 (dezoito) partes. Quanto à modalidade narrativa literária, além de ser considerada uma obra indianista, constitui também um romance histórico. Em conformidade com Telles; Graça (2021, p. 100), a obra de Gomes de Amorim é “um romance de  ambientação histórica, tendo como pano de fundo, os acontecimentos ensejados pela Cabanagem e os embates entre os protagonistas desse movimento épico que transcorreu na Amazônia”.

Os textos de Francisco Gomes de Amorim presentes em OS Selvagens, registram fatos históricos e também apresentam personagens retiradas da História, entre elas, o caudilho da Cabanagem, Ambrósio Ayres Bararoá[1].

 

[...] - Povo de Bararoá! – gritou Ambrósio, voltando-se para os circunstantes. – A Comarca do alto Amazonas está entregue aos horrores da anarquia, e em poder de assassinos e ladrões. Se um homem de vontade enérgica e audaz não reestabelecer a ordem, auxiliado por vós, dentro em poucos dias, caireis apunhalados, diante de vossas filhas e mulheres, vítimas de violências inauditas (GOMES DE AMORIM, 2004, p. 197).

 

Outra exemplificação sobre a presença do líder Ambrósio Ayres encontra-se no fragmento textual, a seguir:

 

[...] Quando caiu o colosso de Icuipiranga, o governo do Pará reconheceu que as ações gloriosas do degredado Ambrósio Ayres Bararoá mereciam galardão condigno, e confirmou-o oficialmente no comando militar do Amazonas. Era a reabilitação mais completa que se lhe podia dar (GOMES DE AMORIM, 2004, p. 199).

 

Portanto, como romance histórico e suas personagens literárias, há claras referências às personalidades históricas, inclusive ao governador Francisco Xavier de Mendonça Furtado:

 

[...] Na margem direita do Rio Negro, ou Quiari, como lhes chamam os índios, em frente do Padauari, e perto do Uarirá, foi criada, em 1758, pelo governador do Estado do Grão-Pará, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, a vila de Tomar, que o horror aos nomes portugueses, e o código do processo, reduziram novamente a aldeia, em 1833, com o primitivo nome de Bararoá. Para este lugar, fora cumprir degredo, um homem chamado Ambrósio Ayres (GOMES DE AMORIM, 2004, p. 190).

 

Sobre o uso dos fatos históricos na literatura, sobre a Cabanagem e a invasão de Manaus pelos cabanos, ilustrados no romance de Gomes de Amorim, é um  fato que pode ser constatado, como se observa a seguir: “Quando chegou a Bararoá a nova de que os cabanos tinham tomado Manaus, cabeça de Comarca do Amazonas, houve um instante de pânico geral” (GOMES DE AMORIM, 2004, p. 191). No capítulo denominado “Os Cabanos”, que constitui a décima terceira parte do  romance, há outra exemplificação:

 

[...] No dia seguinte pela manhã tomaram outra refeição, semelhante à da véspera, e saíram em seguida cautelosamente para o Caiari. Não se tinham porém afastado ainda dois ou três comprimentos de ubá, da boca do igarapé, quando sentiram atrás de si o bater de muitos remos. Voltando-se, viram o rio coalhado de embarcações de vários tamanhos e feitios, que vinham surdindo de um tributário do Caiari, chamado Ariupaná, e pareciam hesitar sobre o rumo que haviam de seguir. Apenas o ubá foi avistado, toda a esquadrilha se dirigiu para ele. Do grosso das forças, destacaram-se três ou quatro canoas mais velozes, tripuladas por homens de todas as cores, armados com arcos, espingardas, terçados, espadas  e machados.

- São os cabanos!  –  exclamou Alberto. - Estamos perdidos!

- Fujamos para o mato – aconselhou Gertrudes (GOMES DE AMORIM, 2004, p. 181-182).

 

Quanto à linguagem, o livro apresenta um elemento inovador: a incorporação do linguajar do povo. Uma caracterização da linguagem utilizada pelas personagens envolvidas nos conflitos da Cabanagem[2], como a supressão do fonema /r/ final de certas palavras incorporadas à prosa: “sabê” (saber), querê (querer).

Outro exemplo de supressão de fonema na linguagem pode ser visto em “inda” (ainda), e “fala” (falar), claramente ilustradas no fragmento, a seguir: “- Oiça cá! Escuta gente, com dez milhão de diabo! Inda não acabou di fala!... – rugia o capataz daqueles bravos. – Refugiemos nos lagos Autazes, com os mura e outros amigo nosso,”  (GOMES DE AMORIM, 2004, p. 185. Grifo da autora do texto).

Com referência aos aspectos linguísticos no romance Os Selvagens, Mário Ypiranga Monteiro afirma que “a dimensão extraordinária dessa linguagem a nível oral popular, mentaliza uma questão que não é de estética, nem de linguística propriamente dita, mas de indigenismo” (MONTEIRO, 1977, p. 171), ou seja, é a linguagem do povo, carregada de erros gramaticais, mas também carregada dos traços culturais da região. E o historiador e pesquisador  finaliza o pensamento sobre a linguagem utilizada por Gomes de Amorim, da seguinte forma:

 

[...] Todavia, essa linguagem errada possui mais força de coesão e mais índices para a  descodificação do usuário receptor do que a linguagem paramentada, diabolicamente vestida de melón, luvas, rodaques e botinas de cano alto de Eça de Queiroz ou de Camilo Castelo Branco. A linguagem do “brasileiro” (MONTEIRO, 1977, p. 172).

 

A linguagem  popular também se faz presente. A expressão “fulo de raiva” caracteriza o coloquialismo presente na obra: “Os filhos dos índios vis serão escravos, e aguçarão flechas para atravessar o peito de seus pais – respondeu Woinoi Causchi, fulo de raiva” (GOMES DE AMORIM, 2004, p. 149).

Tal qual como a rapsódia amazônica do modernista Mário de Andrade, Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, de 1928, em Os Selvagens, de 1875, há erros “propositais” de concordância, de ortografia, enfim, há erros que ilustram o caráter oral e o coloquialismo linguístico do homem amazônico “- Meus amigo! Fomo derrotado  em Cuipiranga; perdemo quase todas vila do sertão e não sabemos si rio Negro inda pertence a nós; entramos no Madeira com tenção di pidi os mura que viesse todo com as outras tribo do lago do Autaz” (GOMES DE AMORIM, 2004, p. 185).

Acerca da temática que perpassa a obra, no capítulo “O prisioneiro branco”, um branco de vinte e cinco a trinta anos, de “cara redonda, cheia, corada, olhos pequenos, vivos, de cor verde, nariz aquilino, boca pequena e coberta por espesso bigode louro, testa alta” (GOMES DE AMORIM, 2004, p. 150), assim descrito na nona parte da obra, é defendido pela jovem índia Gertrudes (Porangaba), que possui um nome europeu e um nome  indígena.

Gertrudes (Porangaba), embora fosse alertada por Romualdo (Goataçara),  de que o branco era mau, confirma aos demais, seu interesse por Alberto Lacroix, o prisioneiro francês: “- O branco é meu! – bradou a jovem índia, estendendo a mão sobre ele, e suspendendo com olhar e gesto imperiosos os movimentos dos matadores” (GOMES DE AMORIM, 2004, p. 155). Considerando na narrativa, a inserção de nomes portugueses às personagens indígenas e, sobretudo, que o homem feito prisioneiro é Alberto Lacroix: um branco, europeu, mas que não é português, Francisco Gomes de Amorim, o autor de Os Selvagens, no afirmar de Monteiro (1977, p. 170), “parece repelir assim a parte indígena da parte portuguesa”, contrariando, desse modo, “a mesa-aliança tradicional”.

Caracterizada como uma obra pertencente ao Romantismo, conclui-se que, muito antes do Modernismo, a obra Os Selvagens, de Francisco Gomes de Amorim, já apresentava a inserção, na literatura, dos falares do povo. O romance, que tem como cenário, o movimento Cabanagem e como protagonistas Goataçara (Romualdo) e Porangaba (Gertrudes), dois jovens índios da etnia mundurucu, caracteriza, por conseguinte, o indigenismo amazônico. Em conformidade com o autor de Cordas da lira (2002), o poeta Sérgio Luiz Pereira, a obra “desperta o sentido da vida e o real valor humano solidificado mesmo quando das boas ações” e “celebra gestos e imagens que pousam na realidade e, com muita sutileza, reflete artes de guerra, golpes, ambições e mortes desnecessários para a felicidade terrestre”, contudo, reflete também “o amor entre os homens, aos animais e à própria humanidade, tão esquecido nestes dias que correm”.

 

 

REFERÊNCIAS DO TEXTO

GOMES DE AMORIM. Os Selvagens. 2. ed. Manaus: Valer / Governo do Estado do Amazonas, 2004.

MONTEIRO, Mário Ypiranga. Fases da literatura amazonense. Manaus, Imprensa Oficial, 1977.

SÉRGIO LUIZ PEREIRA. Texto de apresentação presente na capa, precisamente na aba/”orelha” do livro. In:  GOMES DE AMORIM. Os Selvagens. 2. ed. Manaus: Valer / Governo do Estado do Amazonas, 2004.

TELLES, Tenório. GRAÇA, Antônio Paulo. Estudos de Literatura do Amazonas. Manaus: Valer, 2021.

 

 

 

[1] Segundo Francisco Bernardino de Souza em Lembranças e curiosidades do valle do Amazonas, refere-se ao “famoso caudilho que prestou importantíssimos serviços à causa da legalidade por ocasião da revolução de 1835”.

[2] Movimento social, popular, extremamente violento, ocorrido de 1835 a 1840, no período regencial, na província do Grão-Pará; Guerra dos Cabanos.