O manuscrito de Henrique João Wilkens, “o poeta do genocídio” (SOUZA, 2003, p. 71) encontra-se no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa, Portugal, em um documento composto de 22 folhas, na seção “Papéis do Brasil” (Avulsos 3, n°. 24) e foi originariamente, intitulado A Muhraida (Muhuraida) com o subtítulo “A Conversão e reconciliação do gentio Muhra”. Há também registros de A Muhraida ou o triunfo da fé na bem fundada esperança da inteira conversão, e reconciliação da grande e feroz nação do gentio Muhura.

Escrito em 1785 e publicado em Lisboa em 1819, em conformidade com Marcos F. Krüger, no texto introdutório “A antiepopeia dos Muras” (2012, p. 12), trata-se de um texto que apresenta “um valor histórico inestimável”. Quanto ao gênero, constitui um poema narrativo, um épico, formado de versos decassílabos, dispostos segundo o esquema rímico abababcc, portanto, estruturado em oitavas camonianas.

Acerca do título, o épico Muraida, como é grafada a obra atualmente, não louva o povo Mura; faz referência aos vencidos (aos muras), aos “derrotados, aqueles que foram destituídos de sua cultura” (KRÜGER, 2012, p. 13). Sendo assim, quanto à temática, o épico amazônico versa sobre a “aculturação e escravização” da etnia Mura.

Sobre os Mura, inicialmente, sabe-se que habitavam, segundo Darcy Ribeiro (1996, p. 54) “as terras da margem direita do médio Madeira”. Gradativamente, os Mura expandiram-se e, recorrendo-se ainda a Ribeiro (1996, p. 54), “graças ao sucesso de suas táticas de povo canoeiro, contra invasores que navegavam principalmente em batelões”, os Mura passaram a ocupar:

 

um extenso território ao longo do Madeira até sua foz e daí pelo Amazonas e Purus acima, concentrando-se, principalmente, na região do Autaz. Desta posição, dificilmente acessível pelo intrincado sistema de lagos, furos e canais, passaram a atacar, quase impunemente, as populações civilizadas do Amazonas, Solimões e rio Negro, obrigando mesmo algumas vilas a se mudarem para longe de sua área de ação (RIBEIRO, 1996, p. 54).

 

Quanto aos aspectos estruturais, o  poema épico de Henrique João Wilkens, é constituído de 6 Cantos, possui 1072 versos decassílabos, sem contar os argumentos que, conforme Telles; Graça (2021, p. 38) em Estudos de Literatura do Amazonas (2021) “na edição do padre Cypriano Pereira Alho foram retirados”. Conforme os teóricos citados, “cada canto possui 21 ou 22 estrofes, perfazendo um total de 1083 versos, incluindo-se os argumentos” (TELLES; GRAÇA, 2021, p. 38).  

O Argumento, presente em todos os cantos, constitui uma inovação no texto amazônico. Segundo Krüger (2012, p. 09), a estrofe Argumento constitui “uma espécie de resumo, do que será desenvolvido naquele canto” e está presente, antecedendo os Cantos de Muraida, a partir da edição de 1993.

Por constituir um épico, o texto de Wilkens apresenta-se estruturado da seguinte forma: inicia-se com a Proposição: “Canto o sucesso  fausto inopinado, / Que as faces banha em lágrima de gosto” conforme os versos da 1ª. estrofe (WILKENS, 2012, p. 29) e a Invocação compreende a 2ª. e 3ª. estrofes. Sobre a Invocação, o poeta português invoca a Deus ou mesmo ao Espírito Santo, conforme fica claro nos versos da 2ª. estrofe: “Mandai raio da Luz, que comunica / Entendimento, acerto verdadeiro, / Espírito da Paz! Que vivifica” (WILKENS, 2012, p. 30) e nos versos iniciais da 3ª. estrofe: “Invoco aquela Luz que difundida / Nos corações, nas almas obstinadas/ Faz conhecer os erros, e a perdida / Graça adquirir, ficar justificadas”, (WILKENS, 2012, p. 30). Estruturalmente, há ainda a Narração, logo após a Invocação e o Epílogo que, em conformidade com Krüger, encontra-se “situado apenas na última estrofe” (2012, p. 09).

Acerca do maravilhoso na obra amazônica, convém destacar a figura do Anjo, que disfarçado de índio, desce para persuadir o mura, como ilustram os versos do Argumento do Canto Terceiro: “Do Céu o Murificado mensageiro/ Prossegue a persuadir ao Mura atento” (WILKENS, 2012, p. 45). Consoante Telles; Graça (2021, p. 38), o Anjo “tenta converter o primeiro mura”:

 

Este fica em dúvida se o Anjo é um de seus irmãos que, tendo morrido, retornou à Vida.  Considera também a possibilidade de seu irmão ter enlouquecido depois do acidente. O canto termina, assim, num corte narrativo, mantendo um suspense que será resolvido no canto seguinte (TELLES; GRAÇA, 2021, p. 38).

 

O índio Mura é convencido pelo Anjo, contudo encontra grande resistência por parte  de um ancião, um velho índio, que também se assemelha ao ancião da epopeia Os Lusíadas, de Camões. A seguir, os versos das estrofes do terceiro canto de Muraida, que fazem alusão ao ancião indígena:

 

                Atentos ouvem todos a proposta,

Ainda que estranha, sem maior reparo,

Pois a Verdade bela nada oposta

É bárbara fereza, ou peito avaro.

Mas entre os anciões, um velho encosta

A ressecada mão, com gesto raro,

Na negra face adusta, e enrugada,

Estremado responde, em Voz irada.

 

Oh, dos teus poucos anos, louco efeito!

Da confiança vil, temeridade!

Que atenção nos merece, ou que conceito,

Conselho, que envilece a tua idade?

Queres, que ao ferro, generoso peito

Entregue a Paz? Ou perca a Liberdade,

A doce liberdade, o valeroso

Muhura, em grilhão pesado, e vergonhoso?

 

Já não lembra o agravo, a falsidade,

Que contra nós os Brancos maquinaram?

Os autores não foram da crueldade?

Eles, que aos infelices a ensinaram?

Debaixo de pretextos de Amizade,

Alguns matando, outros manietaram,[1]

Levando-os para um triste cativeiro,

Sorte a mais infeliz, mal verdadeiro.

 

Grilhões, ferros, algemas, gargalheira,

Açoites, fomes, desamparo e Morte,

Da ingratidão foi sempre a derradeira

Retribuição, que teve a nossa sorte.

Desse Madeira a exploração primeira,

Impediu, por ventura, o Muhura forte?

Suas Canoas vimos navegando,

Diz, fomos, por ventura, os maltratando?

 

Para os alimentar, matalotagem

Buscava nosso Amor, nosso cuidado;

A Tartaruga, o peixe na viagem

Lhes dávamos, e tudo acompanhado

De frutas, e tributos de homenagem,

Em voluntária oferta, que frustrado

O receio deixasse; a confiança

Aumentando, firmasse a Aliança.

 

Que mais fazer podia o Irmão? O Amigo?

Que provas queres mais de falsidade?

São estes entre os quais buscas Abrigo?

É nesta em que te fias amizade?

Ah Muhura incauto! Teme o inimigo

Que tem de falso toda a qualidade.

O que a força não pode, faz destreza,

Valor equivocando co’a vileza.

 

Assim falando o Velho se levanta,

O lento passo ao Bosque encaminhando.

Mas o Orador de nada já se espanta,

Pois tal oposição stavaesperando:

E como nele obrava força santa

De um Deus, que o mesmo esforço ia aumentando;

Nos bárbaros infunde um tal conceito,

Que a preferência alcança, co’o respeito.

(WILKENS, 2012, p. 50-52).

 

 Quanto ao Oferecimento (Dedicatória), diferentemente do épico camoniano Os Lusíadas, o mesmo se encontra fora do texto narrativo; o próprio Wilkens dedica a João Pereira Caldas, então governador e capitão-general do Estado do Grão-Pará, como se ilustra em: “Digne-se, pois, Vossa Excelência aceitar este testemunho daquele sincero, puro e fiel afeto, veneração e respeito, que Vossa Excelência conhece, e sempre em mim reconheceu” [...] (WILKENS, 2012, p. 21).

Convém destacar que o poema de Wilkens faz referência aos vários topônimos e rios amazônicos. Entre eles, destacam-se Ega[2], atual Tefé, importante município do estado do Amazonas; Alvarães, “antigo albergue”, que os índios e os moradores denominavam com o nome de “Caiçara”.

Sobre o lugar denominado Alvarães, em O Amazonas: sua história, Anísio Jobim revela uma imagem contundente acerca do aprisionamento dos indígenas na nossa região: [...] “em Tefé, no rio Solimões, há uma povoação por nome Caiçara, que é um símbolo vivo do comércio de cativar índios e encurralá-los como alimárias, até que sejam vendidos e distribuídos pelos povoados das margens dos rios” (JOBIM, 1957, p. 53).

Ainda em conformidade com Anísio Jobim, o termo “Caiçara” significa cercados sujos: “a denominação Caiçara indica esses imundos cercados. O lugarejo até pouco tempo persistiu na geografia política com tal apelido, mudado para Alvarães” (1957, p.  53). Algumas exemplificações de topônimos e rios citados no épico de Wilkens, podem ser vistos nas estrofes do CANTO IV:

 

[...]

Já de Ega chega ao porto, diferente 

Do que algum usava cauteloso,

No estrago então cuidando ocultamente.

Agora a paz a procurar gostoso;

Acompanhando enfim por toda a gente,

Chega ao Quartel do Chefe generoso;

Este o recebe em braços, que enlaçando

Demonstrações de gosto lhes vai dando.

(WILKENS, 2012, p. 60. Grifo da autora do texto).

 

No CANTO V:

[...]

Soberbo o Japurá, vê no seu seio 

As águas do Amaná, lago famoso,

Vertendo cristalinas, que de enleio

Serve ao Mura, e Fernando valoroso

Enquanto em suas margens busca o meio

De eternizar-se, de fazer ditoso

Na fé, na sujeição, ao Mura forte;

Aos outros se destina melhor sorte. [...]

(WILKENS, 2012, p. 66. Grifos da autora do texto).

 

No CANTO V:

Assim, o antigo albergue já deixando

Os Muras de maloca, diferentes,

Segunda vez afoitos navegando,

Vêm vossos povos ver, com seus presentes;

Já de Ega, de Alvarães se aproximando

Sem susto, sem receio vão contentes.

Achando no carinho, agrado antigo,

Agasalho maior, melhor abrigo. (WILKENS, 2012, p. 67. Grifo da autora do texto).

 

Acerca dos heróis do épico amazônico, o poema faz referência às várias personalidades históricas, entre elas, Frei José de Santa Teresa Neves, João Batista Martel, Matias Fernandes, diretor do lugar Santo Antônio de Imaripi (Rio Japurá), entre outros, que constituem os heróis do texto de Wilkens. Uma referência a Matias Fernandes se observa no Canto IV:

 

[...]

A oposição se vence, e tudo parte;

No Imaripi, com pasmo, é recebido.

Mimo, agasalho encontra; ali reparte

Presentes preparados; persuadido

Por Fernandes honrado, que se aparte

Do Paganismo e Bosques; precedido

 Pelo Anjo, por Fernandes é levado

A Tefé, onde ao chefe é apresentado.

(WILKENS, 2012, p. 53. Grifo da autora do texto).

 

No fragmento transcrito do Canto IV, também é clara a referência à personalidade histórica, Matias Fernandes: “Por Fernandes honrado, que se aparte” e há novamente referência à antiga Vila de Ega, dessa vez com a nomenclatura Tefé, como pode ser observada no verso a seguir: “A Tefé, onde ao chefe é apresentado”.

Sobre a presença da mitologia, tal qual em Os Lusíadas, de Luiz Vaz de Camões, há também a presença da mitologia pagã, visto que é feita referência a Zéfiro, o filho de Éolo e à Pentesileia (Pantasilea), rainha grega das Amazonas. Portanto, a presença de elementos da mitologia pagã, entre outros aspectos formais, também caracteriza o gênero épico na literatura amazônica.

Conclui-se, após a leitura analítica do poema A MUHRAIDA, ou simplesmente MURAIDA, como se registra hoje, que, além do aspecto formal nos moldes camonianos, o que caracteriza estruturalmente a poesia épica; da presença de elementos pagãos e da presença do Oferecimento (Dedicatória) ao político João Pereira Caldas, o poema também faz referência às várias personalidades históricas que constituem os heróis do texto de Wilkens.

Em aquiescência com Telles; Graça (2021, p. 37) quanto ao tema, se por um lado, Wilkens,  “tratou os Mura como uma nação, (...), por outro lado, a cultura dessa nação, é ao final, desestruturada pela cultura ocidental, cristã” (TELLES; GRAÇA, 2021, p. 37), sendo assim, conclui-se que o épico de Wilkens não louva o povo Mura, e sim a subjugação do mesmo, a “escravização dessa etnia” (KRÜGER, 2012, p. 08). Contudo, Wilkens ao compor o “hino genocida”, expressão utilizada por Márcio Souza (2003, p. 25), apresenta um ancião  da tribo Mura, que mostra aos demais da tribo que os mesmos já não lembram ”o agravo, a falsidade”, impetrada pelos brancos: “Da ingratidão foi sempre a derradeira / Retribuição, que teve a nossa sorte” (WILKENS, 2012, p. 51). É o ancião mura, tal o velho do Restelo de Camões, que também levanta a voz de forma crítica e reflexiva no épico amazônico.

 

REFERÊNCIAS DO TEXTO

JOBIM, Anísio. O Amazonas: sua história. (Ensaio antropogeográfico e político). São Paulo: Nacional, 1957.

 

KRÜGER, Marcos Frederico. Texto introdutório “A antiepopeia dos Muras”. In: WILKENS, Henrique João. Muraida. Organização de Tenório Telles e José Almeida A. de Rosa. Manaus: Valer, 2012.

 

RIBEIRO, Darcy. Os índios e a civilização – A integração das populações indígenas no Brasil moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

 

SOUZA, Márcio. A expressão amazonense: do colonialismo ao neocolonialismo. 2. ed. Manaus: Valer, 2003.

 

TELLES, Tenório. GRAÇA, Antônio Paulo. Estudos de Literatura do Amazonas. Manaus: Valer, 2021.

 

WILKENS, Henrique João. Muraida. Organização de Tenório Telles e José Almeida A. de Rosa. Manaus: Valer, 2012.

 

[1] De acordo com a nota presente, na edição da Valer (2012), não há o sexto verso, correspondente a “Alguns matando, outros manietaram”.

[2] Termo português dado inicialmente à cidade de Tefé. De acordo com Raimundo Colares Ribeiro (1996, p. 41), a palavra Tefé (Tapi ou Tapé) na língua Tupi, significa “fundo”.