DO ABORTO NECESSÁRIO E SENTIMENTAL: ENTRE A EXISTÊNCIA DO ESTADO DE NECESSIDADE E O CONSENTIMENTO DA GESTANTE

Lidiane Borges Coutinho

Marina Stella da Silva Aguiar

RESUMO

A palavra aborto na sua mais simples acepção é bastante para causar polêmica. O presente trabalho vem tratar dos casos permitidos pelo Código Penal, tais quais o aborto necessário ou terapêutico e o aborto sentimental, ético ou humanitário. Apesar de serem legais, em casos concretos, os mesmos são alvos de muita repercussão na sociedade e de opiniões divergentes tanto neste meio quanto entre doutrinadores no tocante a assuntos que se desdobram dessas condutas. O objetivo é expor diferentes pensamentos acerca do estado de necessidade, do consentimento da gestante e da necessidade de autorização judicial no que esses temas estão vinculados ao aborto sentimental e ao aborto necessário. Tangente a isso, se abordará assuntos concernentes ao direito à vida, no que diz respeito aos direitos daquele que é produto da gravidez, à dignidade da pessoa humana ao se tratar tanto do aborto necessário quanto do aborto sentimental, bem como aos valores morais vinculados aos direitos da mulher, cuja gravidez foi resultante de estupro, relevados em favor da permissão do aborto.

Palavras-chave: Aborto. Aborto sentimental. Aborto necessário. Estado de necessidade. Consentimento.

1 INTRODUÇÃO

Considera-se aborto “a interrupção da gravidez seguida da destruição do produto da concepção.” (FABBRINI; MIRABETE, 2012, p. 57) Por muito tempo a prática abortiva não foi criminalizada, pois o produto da concepção (o embrião ou, posteriormente, o feto) era considerado parte do corpo da gestante e esta podia dispor livremente de seu corpo sem constituir um atentado à vida.

O Código Penal brasileiro de 1830 criminalizava o aborto cometido por terceiros e o fornecimento de meios abortivos, mas não criminalizava o autoaborto, ou o aborto cometido pela própria gestante, de forma que esta não sofria nenhuma punição caso fosse a única a realizar seu procedimento abortivo. (BITENCOURT, 2014, p. 164).

Já o Código Penal de 1890, segundo Bitencourt (2014, p. 164):

Distinguia o crime de aborto caso houvesse ou não a expulsão do feto, agravando-se se ocorresse a morte da gestante. Esse Código já criminalizava o aborto cometido pela própria gestante. Se o crime tivesse finalidade de ocultar desonra própria a pena era consideravelmente atenuada. Referido Código autorizava o aborto para salvar a vida da parturiente; nesse caso, punia eventual imperícia do médico ou parteira que, culposamente, causassem a morte da gestante.

 

O Código Penal atual ainda criminaliza o aborto, de forma que quem o pratica incorre em pena, que pode variar de detenção de um a três anos. Porém há duas exceções a essa regra, que são o aborto necessário: interrupção medicinal de gestação que traz risco à vida da gestante quando não há outro meio de salvá-la e o aborto humanitário, que é realizado em casos que a gravidez decorre de um crime de estupro que atinge diretamente a honra e o psicológico da mulher.

As discussões acerca do aborto não são recentes, indubitavelmente é um tema polêmico que causa muitas divergências entre doutrinadores, jurisprudências e no meio social, estas serão mostradas ao longo deste estudo.

Tal conduta, quando enquadrada como um dos crimes contra a vida, entra em choque com outros temas jurídicos como o estado de necessidade. As causas a serem tratadas no presente trabalho não são excluídas dos discursos conflitantes entre juristas, apesar de serem legais. O aborto necessário e o sentimental descritos no Código Penal necessitam de complementação por parte da doutrina, uma vez que o legislador redigiu muito simplificadamente as disposições do artigo 128, o que gerou divergências e oportunidades para a sociedade também se questionar acerca das disposições legais.

No que tange ao aborto necessário (ou terapêutico) argumenta-se sobre a influência da vontade da gestante na decisão de conceber ou não a criança. Pelo critério social, faz-se mister discorrer acerca do conflito existente entre o veredito de salvar o produto da gravidez ou a vida da gestante, se uma vida se sobrepõe à outra; tangente a esse assunto a doutrina diverge quanto a necessidade de consentimento da gestante, ainda que a lei expresse que este é dispensável.

O assunto aborto sentimental (ou humanitário) também gera muita repercussão social, uma vez que a ideia de proteção à vida do feto esbarra no fato de que este foi fruto de um coito forçado e violento que reverberou em lembranças traumáticas para a gestante. Pelo grande valor que a sociedade agrega a essa discussão e pela relevância jurídica da análise do caso concreto também é importante discorrer sobre a possível existência do estado de necessidade no momento do aborto e a necessidade do consentimento da gestante. 

Elaborada sob uma perspectiva procedimental, a pesquisa abrange característica bibliográfica, e, no tocante aos objetivos, exploratória. (GIL, 2010) A fim de que o assunto abordado seja profundamente compreendido, o presente trabalho expõe fatos relevantes para a demonstração das questões apresentadas.

 

2 GARANTIA DO DIREITO À VIDA DO NASCITURO

 

A Constituição Federal, sendo a lei maior dentro de um Estado, disciplinou em seu bloco de fundamentalidade, a inviolabilidade do direito à vida: ‘’Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:’’ (BRASIL, 2015, p. 6).

O Código Civil busca ressalvar os direitos do nascituro em seu art. 2º, segundo o qual ‘’A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.’’ (BRASIL, 2015, p. 155). Portanto, se o nascituro tem direitos na vida civil ele não deixa de gozar do direito à vida, que é o pressuposto necessário de todos os direitos restantes.

Por fim, o Código Penal também reconhece a vida intrauterina, de forma que o atentado contra essa vida consiste em fato típico, ilícito e punível na forma do crime de aborto. Há, porém, duas exceções, elencadas no artigo 128 do Código Penal:

Não se pune o aborto praticado por médico:  (Vide ADPF 54) Aborto necessário  I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante; Aborto no caso de gravidez resultante de estupro II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal. (BRASIL, 2015, p. 542).

 

Ou seja, nesses casos o aborto não constitui crime e as divergências e discussões doutrinárias acerca de tais exceções são o objeto principal do presente trabalho.

 

2.1 Histórico do aborto

 

A partir de uma análise histórica acerca do aborto nas mais diversas sociedades, constata-se que o relato mais antigo de que se tem conhecimento acerca do tema provém da China, mais precisamente do século XXVII ou XXVIII antes de Cristo, quando ‘’O imperador chinês Shen Nung cita em texto médico escrito entre 2737 e 2696 a.C. a receita de um abortífero oral, provavelmente contendo mercúrio’’ (SCHOR, 1995, p. 3).

Na Grécia antiga o aborto também era uma prática bastante comum, defendido, inclusive, por grandes nomes da filosofia:

Na antiga Grécia, o aborto era preconizado por Aristóteles como método eficaz para limitar os nascimentos e manter estáveis as populações das cidades gregas. Por sua vez, Platão opinava que o aborto deveria ser obrigatório, por motivos eugénicos, para as mulheres com mais de 40 anos e para preservar a pureza da raça dos guerreiros. Sócrates aconselhava às porteiras, por sinal profissão de sua mãe, que facilitassem o aborto às mulheres que assim o desejassem. Já Hipócrates, em seu juramento, assumiu o compromisso de não aplicar pressário em mulheres para provocar aborto. (SCHOR, 1995, p. 3).

 

Ainda acerca da antiguidade:

 

O mesmo ocorria em Roma, onde o aborto era uma prática comum, embora interpretada sob diferentes ópticas, dependendo da época. Quando a natalidade era alta, como nos primeiros tempos da República, ela era bem tolerada. Com o declínio da taxa de natalidade a partir do Império, a legislação tornou-se extremamente severa, caracterizando o aborto provocado como delito contra a segurança do Estado. (CABANELLAS apud SCHOR, 1995, p. 3).

 

Dessa forma, é possível perceber que a proibição do aborto, antes de ser uma preocupação com a vida intrauterina, é permeado por interesses políticos e econômicos, que visam controlar a taxa de natalidade dos países. Foi assim quando ‘’Com a Resolução de 1917, na União Soviética, o aborto deixou de ser considerado um crime naquele país, tornando-se um direito da mulher’’ (SCHOR, 1995, p. 4). Da mesma forma ocorreu o inverso em países da Europa que sofreram grandes baixas populacionais após a Segunda Guerra Mundial e o aborto foi proibido em vista de uma política natalista. Como exemplo é possível citar a França, a qual ‘’introduziu uma lei particularmente severa no que diz respeito não só à questão do aborto, mas também quanto aos métodos anticoncepcionais.’’ (SCHOR, 1995, p. 4).

Com o passar dos anos, mais precisamente na década de 60, as legislações começaram a ficar mais flexíveis conforme a emancipação feminina foi ganhando destaque no cenário mundial:

A partir dos anos 60, em virtude da evolução dos costumes sexuais, da nova posição da mulher na sociedade moderna e de outros interesses de ordem político-econômica, a tendência foi para uma crescente liberalização. Acentuou-se na década de 70 e as estatísticas revelam que, em 1976, 2/3 da população mundial já viviam em países que apresentaram as leis mais liberais, mais da metade delas foi aprovada nesta última década. Mas, há também casos de países que voltaram às leis anteriores, como aconteceu com a Romênia, Bulgária e Hungria (razões de ordem demográfica) e com Israel (motivos político-religiosos). (SCHOR, 1995, p. 4).

 

O Brasil, porém, não acompanhou essa onda de liberalização do aborto e, apesar do Código Penal de 1940 ter evoluído em relação aos Códigos de 1830 e 1890 (pois estes não previam sequer as exceções do aborto necessário e sentimental que se tem hoje), ele ainda é considerado por muitos como bastante conservador e antiquado, em vista da liberdade feminina conquistada no mundo contemporâneo.

 

3 A OPOSIÇÃO ENTRE A LIBERDADE DA MULHER E OS DIREITOS DO NASCITURO

 

Segundo Greco (2007, p. 251) o Código Penal brasileiro prevê duas possibilidades em que o aborto é considerado legal e pode ser realizado em decorrência de autorização de lei: a primeira é o aborto terapêutico, onde a vida da gestante está em risco por conta da gravidez e a segunda é o aborto sentimental, que corresponde àquela gravidez fruto de um estupro.

A problematização do presente tópico gira em torno do aborto sentimental, pois este não decorre de um estado de necessidade e há quem argumente que a destruição da vida, bem jurídico máximo protegido pelo ordenamento jurídico, não pode ter respaldo apenas na angústia de uma mulher vítima de estupro e que a origem delituosa dessa vida não justifica sua destruição, como é o entendimento de Prado (2004, p [?]) segundo o qual no aborto humanitário o mal causado é maior do que aquele que se pretende evitar.

De modo contrário pensam outros doutrinadores, como Fabbrini e Mirabete (2012, p.64), para os quais o aborto sentimental, assim como o aborto necessário, decorre do estado de necessidade ou causa de não exigibilidade de outra conduta. Damásio de Jesus (2007, p. 129) não fala em estado de necessidade quanto ao aborto sentimental, mas assevera que faz-se necessário o consentimento da gestante somente no caso deste, tal como afirmam Fabbrini e Mirabete, uma vez que “a mulher não deve ficar obrigada a cuidar de um filho resultante de coito violento, não desejado” (2012, p. 129), mas esclarecendo que há quem discorde desta posição e afirme que “depende o aborto necessário do consentimento da gestante, pois não se equipara à intervenção cirúrgica, que pode ser levada a efeito contra a vontade do paciente”  (MARREY apud FABBRINI; MIRABETE, 2015, p. 63), e cita Noronha, Hungria, Fragoso e Bento de oliveira como doutrina oposta a esse entendimento.  Vê-se que, para doutrina majoritária, considera-se o aborto justificado na ocasião em que o médico se dispõe deste porque o aborto é a única solução mediante a qual poderá salvar a vida da gestante; conquanto o aborto sentimental justifica-se em bases humanitárias, tendo em vista o bem-estar psicológico e moral da gestante e o juízo de valor que a sociedade faz da conduta que resultou na gravidez.

A discussão também se concentra na busca pela causa excludente de ilicitude do aborto sentimental. Segundo Greco (2007, p. 254) o aborto humanitário não encontra respaldo no estado de necessidade, pois não há um confronto entre bens igualmente protegidos pelo ordenamento jurídico, mas sim a preservação de um bem de valor inferior (honra) ao bem agredido (vida), de forma que não há estado de necessidade justificante, mas sim um estado de necessidade exculpante.

No inciso II do art. 128 do Código Penal há dois bens em confronto: de um lado, a vida do feto, tutelada pelo nosso ordenamento jurídico desde a concepção; do outro, [...] a honra da mulher vítima de estupro, ou a dor pela recordação dos momentos terríveis pelos quais passou nas mãos do estuprador. [...] Ora, há uma vida em crescimento no útero materno, uma vida concebida por Deus. Não entendemos razoável no confronto entre a vida do ser humano e a honra da gestante estuprada optar por esse último bem, razão pela qual [...] não poderíamos falar em estado de necessidade. (GRECO, 2007, p. 254 – 255)

Fabbrini e Mirabete asseveram que no aborto necessário é imprescindível “que o perigo seja atual, bastando a certeza de que o desenvolvimento da gravidez poderá provocar a morte da gestante.” (2015, p. 63). Esses autores citam exemplos de doenças que podem ocasionar esse fim, como cardiopatias, por exemplo; entretanto, afirmam que outros doutrinadores, citando Raul Briquet, defendem a invalidade desse tipo de aborto, uma vez que “o aborto terapêutico provém ou da deficiência de conhecimentos médicos, ou da não-observância dos princípios da assistência pré-natal,” (JR apud FABBRINI, MIRABETE, 2012, p. 63). Ou seja, há quem desacredite na fundamentação no estado de necessidade para justificar o aborto necessário ou terapêutico, criando divergências entre as doutrinas.

Portanto, o legislador entendeu que, apesar da diferença valorativa entre os dois bens aqui conflitantes, questões éticas e emocionais devem ser consideradas, de forma que o aborto sentimental constitua não um estado de necessidade, mas um caso de inexigibilidade de conduta diversa, onde o médico poderá realizar o procedimento abortivo com o consentimento da gestante ou de seu representante, e tal procedimento não incorrerá em crime, pois o fato será típico e ilícito, mas, devido às circunstâncias deixará de ser culpável.

 

4 QUANTO A NECESSIDADE OU NÃO DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL PARA CONDUZIR O ABORTO SENTIMENTAL

 

Segundo Fabbrini e Mirabete “para que o médico pratique o aborto não há necessidade, evidentemente, da existência da sentença condenatória contra o autor do estupro e nem mesmo de autorização judicial” (2012, p. 64), entretanto afirma que num caso concreto, no Rio de Janeiro já ocorreu de ser rejeitada a autorização para uma mulher vítima de coito violento sob alegação de que esta poderia vir a óbito em virtude da gravidez já estar avançada. Porém o Ministério Público Federal e a Procuradoria do Estado do Rio de Janeiro apelaram esta determinação:

Ocorre que o Poder Público municipal, por meio do Decreto nº 25.745/2005 (DOC. 03), expedido pelo Prefeito da Cidade do Rio de Janeiro, determinou que as unidades de saúde da rede municipal não acatassem o procedimento de justificação e autorização da interrupção da gravidez, estabelecido pela Portaria nº 1.508/GM/2005 (DOC. 01). Pela determinação contida no decreto municipal [...], os hospitais municipais são obrigados a exigir a apresentação de boletim de ocorrência policial para interrupção de gravidez resultante de violência sexual. [...] Conforme demonstrado, o ato administrativo municipal se encontra em dissonância com o que estabelecem diversos diplomas legais, tais como o Código Penal, a Lei Orgânica do SUS e a própria Constituição Federal, o que ocasionou ilegal e infundada restrição ao direito à interrupção da gravidez, assegurado a todas as gestantes que tenham sofrido violência sexual. (PRRJ, 2009, p.4)

 

Nota-se que, apesar do assunto da necessidade de autorização judicial ser regulado pelo Código Penal e extremamente mitigado pela doutrina, ainda assim outros poderes decidem contra as normas vigentes. Isso ocorre, talvez, pela delicadeza com que a sociedade trata do aborto e do receio de interromper do desenvolvimento de uma vida sem fundamentos palpáveis.

Assevera Damásio E. de Jesus:

O médico deve valer-se dos meios à sua disposição para a comprovação do estupro ou atentado violento ao pudor (inquérito policial, processo criminal, peças de informação etc.) Inexistindo esses meios, ele mesmo deve procurar certificar-se da ocorrência do delito sexual. Não é exigida autorização judicial pela norma não incriminadora. Tratando-se de dispositivo que favorece o médico, deve ser interpretado restritivamente. Como o tipo não faz nenhuma exigência, as condições da prática abortiva não podem ser alargadas. (DE JESUS, 2007, p. 129)

Caberá, desse modo, apenas ao médico a percepção do aborto sentimental em face de que caso as evidências do estupro não sejam suficientes e ainda assim ele prosseguir com o aborto, obviamente, não estará abarcado pelos privilégios da lei.

Porém, recentemente, a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei nº 5.069 de 2013, cujo autor é o deputado Eduardo Cunha. O projeto envolve, no geral, a criminalização da conduta que induz, instiga ou auxilia o aborto, a proibição do anúncio de meio abortivo, exceto para as hipóteses do artigo 128, bem como prevê a necessidade de apresentação de registro de ocorrência para que a gestante vítima de estupro possa abortar. (BRASIL, 2013) O projeto se baseia na aplicação obrigatória do disposto no decreto-lei 2.848 de 1940, que assevera no seu artigo 128: “Aborto no caso de gravidez resultante de estupro: II - se a gravidez resulta de estupro, constatado em exame de corpo de delito e comunicado à autoridade policial, e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal”. (NR)” (BRASIL, 2013, p.4)

O projeto de lei ainda acrescenta o seguinte inciso à redação da lei 12.845/2013:

III – encaminhamento da vítima, após o atendimento previsto no art. 1º, para o registro de ocorrência na delegacia especializada e, não existindo, à delegacia de polícia mais próxima visando a coleta de informações e provas que possam ser úteis à identificação do agressor e à comprovação da violência sexual; (BRASIL, 2013, p. 5)

Tal projeto desrespeita os princípios basilares constitucionais, pois a exposição da vítima no momento em que é obrigada à prestar o registro da ocorrência do estupro para ter autorização policial a fim de que seja liberado o aborto, vai de encontro à dignidade da pessoa humana, assegurada pela Carta Magna no seu artigo 1º, inciso III (BRASIL, 2015, p. 5). Confronta-se o direito à intimidade, previsto no artigo 5º, inciso X: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando o direito a indenização pelo dano material o moral decorrente de sua violação” (BRASIL, 2015, p. 6). A lei está violando princípios constitucionais, ferindo de modo grosseiro a esfera dos direitos individuais da pessoa, e, principalmente, da mulher, gênero mais vulnerável à depreciação da sua imagem e de sua honra quando é exposta à sociedade como vítima de estupro.

Não há utilidade do registro dessas informações para a vítima, significa exposição da sua intimidade, perpetuação de um sofrimento que não quer ser lembrado por ela. Somente é necessário que o médico constate a ocorrência da violência sexual e que a vítima consinta para que, assim, se proceda com o aborto. A necessidade de apresentação de registro de ocorrência e autorização policial para fazer o aborto coloca a vítima no centro das atenções e, consequentemente, dos julgamentos sociais.

Quer-se, ainda, acrescentar ao artigo 3º dessa lei, o seguinte parágrafo: “§ 4º Nenhum profissional de saúde ou instituição, em nenhum caso, poderá ser obrigado a aconselhar, receitar ou administrar procedimento ou medicamento que considere abortivo. (NR)” (BRASIL, 2013, p.5)

Esse pequeno acréscimo terá consequências devastadoras no desenrolar dos casos concretos, pois desempara a mulher violentada e gera insegurança para o Direito Penal, pois a lei está deixando a cargo do subjetivismo das pessoas a decisão sobre o bem jurídico vida. Os valores morais, os preconceitos enraizados em ideias antigas, farão com que muitas mulheres já abaladas física, moral e psicologicamente, sejam ignoradas e que recorram a outros meios mais agressivos para que possam abortar, aumentando, assim, o risco de perderem suas própria vidas, deixando de exercer uma conduta legal para recorrer à práticas criminosas. A lei deve fazer com que as pessoas ajam mais ou menos da mesma forma, para não gerar insegurança jurídica, em contrapartida, esse projeto de lei faz com que se abra o máximo de brechas para o subjetivismo, deixando a cargo do indivíduo a decisão de fazer ou não fazer conforme suas crenças, pensamentos e valores. Protege-se menos a vítima do estupro, diminuindo a importância do seu consentimento para abortar, já que outras pessoas, totalmente alheias a seu âmbito de vida privada, podem decidir contra esse consentimento ao não disponibilizarem os métodos abortivos por questões pessoais, como o projeto de lei prevê. Trata-se de uma regressão para o Direito Penal, no que tange aos próprios objetivos da lei, e da sua função da lei penal como escopo para a realização dos preceitos constitucionais que buscam proteger ao máximo a pessoa humana de violações à sua liberdade e à sua vida privada.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do histórico brasileiro no tocante às decisões jurídicas atinentes ao aborto, percebe-se o aborto terapêutico e o aborto sentimental foram permitidos tendo em vista, respectivamente, a preservação e sobreposição do bem jurídico da gestante, sua vida, sobre a que ainda permanece dentro do seu útero, e o bem-estar da mulher vítima de violência sexual, que gerou, de forma indesejada, um filho.

Independentemente de existência ou não do estado de necessidade em ambas espécies de aborto, o legislador claramente optou por permiti-los como uma forma de facilitar a solução para os problemas que geram a necessidade ocasional do aborto, como doenças que podem assumir um risco de morte para a gestante no decorrer da gravidez, no caso do aborto terapêutico, e, no aborto sentimental, a gravidez indesejada da mulher vítima de coito violento que poderá desenvolver transtornos psicológicos irreversíveis e prejudicar, dessa forma, também, o estado psicológico do filho que iria gerar. O legislador buscou evitar um dano futuro maior às vidas das gestantes.

O consentimento da mulher para o aborto terapêutico de acordo com doutrina majoritária, é dispensável, tendo em vista a preservação da sua vida; e para o aborto sentimental, a doutrina majoritária entende ser imprescindível o consentimento, uma vez que esse aborto constitui uma decisão vinculada somente à intimidade e à vida privada da vítima.

REFERÊNCIAS

 

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal 2: parte especial: dos crimes contra a pessoa. 14ª ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014.

 

BRASIL. Código Civil. Vade Mecum. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

 

BRASIL. Código Penal. Vade Mecum. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

 

BRASIL. Constituição Federal. Vade Mecum. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

 

BRASIL. Projeto de lei 5.069. Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania. 2013. Disponível   em        Acesso em 20 out 2015

 

GIL, A. C. Como Elaborar Projetos de Pesquisa. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2010.

 

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial. V.2. 3 ed. Rio de Janeiro: Impetos, 2007.

 

JESUS, Damásio E. Direito Penal: Parte especial: dos crimes contra a vida e dos crimes contra o patrimônio. Vol. 2. São Paulo: Saraiva, 2007.

 

MIRABETE, Júlio Fabbrini; FABBRINI, Renato N. Manual de Direito Penal, volume 2: parte especial, arts. 121 a 234-B do CP. 29 ed. rev e atual. São Paulo: Atlas, 2012.

 

PRADO, Luís Régis. Curso de Direito Penal Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, v.2.

 

PROCURADORIA DA REPÚBLICA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Recurso de apelação. 2009. Disponível em: Acesso em 7 set 2015.

 

SCHOR, Néia. O aborto: um resgate histórico e outros dados. 1995. Disponível em: Acesso em: 28 out. 2015.