ANÁLISE COMPARATIVA ENTRE O CÓDIGO DE MENORES DE 1927 E O CÓDIGO DE MENORES DE 1979: ASPECTOS POLÍTICOS, SOCIAIS E JURÍDICOS

 

 

 Elisa Alves Teles[1];

Francisco Magno Brito Pereira[2];

Sarah Antonia Pereira Pinheiro[3].

 

 

 

RESUMO

 

O presente artigo trata da realidade em que estavam inseridos os “menores” durante o século XX, tendo como principal base a legislação que estava em vigor no período e que trazia esses sujeitos como seu principal foco, além de propor ações a fim de garantir o progresso da nação, tendo em vista o importante papel que as crianças tem em modificar a realidade social em um futuro próximo, a partir do momento em que têm um maior grau de discernimento de seus atos e das consequências deles.  O estudo demonstra os principais aspectos em que essa legislação teve influência na sociedade, além dos efeitos que esta causava na sociedade. Além disso, o artigo se propõe a fazer uma análise comparativa dessas duas leis, a fim de discorrer sobre possíveis mudanças, especialmente frente a realidades históricas diferentes vivenciadas por elas.

 

Palavras-chave: Menores. Legislação menorista. Realidade social. Política. Constituição.

 

 

 

ABSTRACT

 

The present article deals with the reality in which the "minors" were inserted during the 20th century, having as main basis the legislation that was in force at the time and that brought subjects as its main focus, in addition to proposing actions in order to guarantee the from the nation's progress, given the important role that children have in changing social reality in the near future, from the moment they have a greater degree of discernment of their actions and their consequences. The study demonstrates the main aspects in which this legislation had an influence on society, in addition to the effects it had on society. In addition, the article proposes to make a comparative analysis of these two laws, in order to discuss possible changes, especially in the face of different historical realities experienced by them.

 

Keywords: Minors. Minors legislation. Social reality. Politics. Constitution.

 

 

 

 

 

 

 

1. INTRODUÇÃO

 

Assinada pelo então presidente Washington Luiz em 12 de outubro de 1927, a lei que trouxe o Código de Menores de 1927 surgiu em um contexto político, social e jurídico bem específico e conturbado, cujas peculiaridades precisam ser estudadas para efetivamente compreender o Código, o que levou a sua criação e quais impactos ele trouxe para a realidade brasileira.

No início do século XX, inclusive na década de 20, em que o Código se situa, o Brasil  passava por diversas reformas voltadas para uma reprodução da sociedade e das cidades europeias, fruto do período conhecido como Belle Époque, movimento de influência francesa que, apesar de ter seu fim atribuído ao início da Primeira Guerra Mundial, deixou suas marcas em vários lugares do mundo, inclusive nas principais cidades brasileiras. Esse momento foi muito relacionado a uma ideia de limpeza e embelezamento das cidades, que se traduziu em políticas que mais escondiam e puniam a pobreza e suas evidências - moradias informais, pessoas em situação de rua - que efetivamente atribuiam esforços para melhorar as condições sociais, forçando, por exemplo, comunidades pobres que antes moravam em áreas centrais da cidade a se mudarem para as áreas periféricas. Também houve direcionamento significativo de recursos para a construção de teatros, cafés e diversos outros espaços que buscavam exibir riqueza e classe para assemelhar-se às ruas parisienses, o que inevitavelmente, apesar de agradar aos mais ricos, incomodou os grupos mais vulneráveis que foram mais atingidos pelas primeiras medidas (LIMA, 2018).

Além disso, ainda era o período histórico da República Velha marcado pela Política Café com Leite (COC, 2019), em que a política nacional era controlada por dois grandes núcleos -São Paulo e Minas Gerais- enquanto o resto do país permanecia insatisfeito e sem poder participar ativamente do debate político, situação agravada pela concentração de riqueza e pela desigualdade social que marcavam o Brasil na época. Assim, o Código de Menores surge nesse momento conflituoso de insatisfação popular, pouco diálogo político e políticas que inadequadamente perseguiam determinados segmentos da sociedade, sendo possível, portanto, localizar em seu texto características da mentalidade da época (OLIVEIRA, 2014), que serão discutidas mais à frente.

Comparativamente, o Código de Menores de 1979 surge em um contexto histórico completamente diferente, mas tão complexo quanto o anterior. Criado durante a Ditadura Militar brasileira que durou de 1964 a 1985, o novo Código surgiu em um momento crítico da história brasileira, que buscava ao máximo manter a ordem pública por meio da força, aplicando punições e tentando combater tudo que estivesse fora do que era considerado adequado. Dessa forma, o contexto do código em questão é marcado por autoritarismo e punitivismo em prol da ordem pública, tendo um ideal de sociedade e de cidadão que devia ser seguido para evitar a persecução destinada aos considerados subversivos ao regime.

Portanto, considerando os diferentes momentos históricos dos Códigos mencionados e suas semelhanças, esse estudo objetiva analisar como os aparatos legais são comparáveis, mediante a análise de seus aspectos políticos sociais e jurídicos, de forma a obter uma visão clara da mentalidade da época em relação às crianças e aos adolescentes. Assim, o estudo inicia com uma visão mais  aprofundada do Código de 1927, seguida por um estudo do Código de 1979 e uma análise comparativa.

 

 

2. CÓDIGO DE MENORES DE 1927

 

2.1. Aspectos políticos e sociais do Código de 1927

 

            O Código de Menores de 1927 foi a primeira legislação específica voltada para a proteção de crianças e adolescentes no Brasil, surgindo, assim, em resposta à demanda política e social resultante do contexto nacional da época, pois, até então, não havia qualquer proteção dos jovens que se envolviam em transgressões, de forma que muitos eram vítimas de violência policial e presos como adultos. Diversos casos de violência, como o caso do menino Bernardino, que aos doze anos foi encarcerado e sofreu diversos tipos de agressão, chamavam atenção do país e causavam indignação (WESTIN, 2015). Assim, seu surgimento foi um fator de extrema importância para a sociedade brasileira da época e marcou a história nacional ao determinar que crianças e adolescentes passam por outros mecanismos de sanção quando cometem infrações, não mais sendo submetidos ao mesmo processo penal de adultos.

            A situação política do Brasil,então, era de domínio das oligarquias, com os grupos mais privilegiados associados às grandes monoculturas e criações pecuárias, enquanto a maioria em situação mais vulnerável não era ouvida e, pelo contrário, era considerada um empecilho ao bem-estar social. Assim, o Código, apesar de sua importância política para a época, por surgir em resposta a importantes demandas, também transpareceu esses aspectos de valorização dos mais ricos em detrimento dos mais pobres, buscando manter a realidade idealizada pela sociedade mediante sua perspectiva higienista semelhante à incorporada em diversas políticas públicas da época.

O aspecto social do Código e de seu contexto também exige análises importantes. Em um período de embates na sociedade brasileira sobre questões políticas e sociais, período de início da Ditadura Vargas, o código de 1927, popularmente conhecido como Código Mello Mattos, assim chamado em homenagem ao jurista José Cândido de Albuquerque Mello Mattos, que além de ser o idealizador do Código foi também o primeiro juiz de menores no Brasil trouxe ao país o início de um tratamento mais efetivo sobre assistência e proteção às crianças e adolescentes (AZEVEDO, 2007).

A promulgação do Código trouxe, em peculiar, métodos mais sistemáticos, humanitário e social aos jovens, dito isto, destaca-se no Código Mello Mattos a imputabilidade penal aos jovens de até 18 anos, que se fez prevalecer ainda hoje. Outro ponto de destaque refere-se a intervenção mais efetiva do Estado que, a partir de então, passa a dar destaque a função social, desempenhada por profissionais habilitados que passariam a verificar os motivos de internação e como estas estariam sendo aplicadas aos jovens.

A doutrina aplicada através do Código Mello Mattos era de buscar a ordem social, avaliando que as crianças e adolescentes seriam objeto do direito, se comprovado que estariam vivendo em situações irregulares. Seriam, pois, considerados em situação irregular aqueles que estivessem em circunstância de exposição, abandono e, mesmo tendo família, fossem infratores (AZEVEDO, 2007).

É imperativo estudar a sociedade brasileira naquele período para compreender as motivadas e exaltadas discussões no governo, no Congresso e na sociedade.  O período pós escravidão ainda deixava marcas desta na vida do brasileiro, considerando que os negros e suas famílias, apesar de libertos, estariam presos na pobreza. A miséria era latente e, expostos à situação, era comum o emprego de jovens em serviços pesados, muitas vezes perigosos, com jornadas de trabalho exaustivas e pagamentos irrisórios. Outra ocorrência, para aqueles que não suportavam o tipo de tratamento nesses “empregos”, era a mendicância ou o cometimento de pequenos delitos pelas ruas movimentadas das cidades.

É nesse viés que o Código de 1927 estabelece, além das possíveis punições aos infratores, medidas que protagonizam a repressão do trabalho infantil e dos castigos físicos exagerados até a perda do pátrio poder e a criação de tribunais dedicados exclusivamente aos menores de 18 anos, medidas estas que se sustentam há quase um século.

Considerando o período, a instituição do Código de Menores em 1927 revelava-se como uma busca de solução para resgatar aqueles menores que viviam em condições abandono ou delinquência ao ponto que os menores causadores de problemas na sociedade eram recolhidos em instituições que não eram preparadas para reintegrar esses jovens na sociedade. Muitos ficavam detidos até completar a maioridade penal e quando soltos, voltavam a delinquir.

É por considerar essa situação que o Código Mello Mattos surgiu como um “método de limpeza” nos grandes centros urbanos no país. O método ora utilizado pelo Governo recebia grandes críticas pois não garantia o bem estar social, tampouco os direitos desses adolescentes (FERREIRA, 2017).

 2.2. Aspectos jurídicos: a chamada “criminalização da pobreza”

            Durante todo o vigor do Código, foram aplicadas diversas medidas que, na prática, colocavam alguns grupos em situação de marginalização e de perseguição  (PÖPPER; DIAS, 2016). Isso expressa a busca anteriormente mencionada da sociedade da época por uma sociedade perfeita, o que incluía desprezar e tentar diminuir o que fugia da ideia esperada. A título de ilustração, é interessante destacar alguns artigos que caracterizam as crianças e adolescentes de que trata o Código.

 

Art. 26. Consideram-se abandonados os menores de 18 annos:

 

III, que tenham pae, mãe ou tutor ou encarregado de sua guarda reconhecidamente impossibilitado ou incapaz de cumprir os seus deveres para, com o filho ou pupillo ou protegido;

 

IV, que vivam em companhia de pae, mãe, tutor ou pessoa que se entregue á pratica de actos contrarios á moral e aos bons costumes;

 

V, que se encontrem em estado habitual de vadiagem, mendicidade ou libertinagem;

 

 

Art. 27 Entende-se por encarregado da guarda do menor a pessoa que, não sendo seu pae, mãe, tutor, tem por qualquer titulo a responsabilidade da vigilancia, direcção ou educação delle, ou voluntariamente o traz em seu poder ou companhia.

 

Art. 28. São vadios os menores que:

 

a) vivem em casa dos paes ou tutor ou guarda, porém, se mostram refratários a receber instrucção ou entregar-se a trabalho sério e útil, vagando habitualmente pelas ruas e logradouros publicos;

 

b) tendo deixado sem causa legitima o domicilio do pae, mãe ou tutor ou guarda, ou os Iogares onde se achavam collocados por aquelle a cuja autoridade estavam submettidos ou confiados, ou não tendo domicilio nem alguem por si, são encontrados habitualmente a vagar pelas ruas ou logradouros publicos, sem que tenham meio de vida regular, ou tirando seus recursos de occupação immoral ou prohibida.

 

Art. 29. São mendigos os menores que habitualmente pedem esmola para si ou para outrem, ainda que este seja seu pae ou sua mãe, ou pedem donativo sob pretexto de venda ou offerecimento de objectos.

(BRASIL, 1927)

 

            Percebe-se, com a análise desses trechos do Código, que o principal alvo desse aparato eram as crianças em situação de irregularidade (PAES, 2013), seja pelo abandono ou pelos contextos chamados de “vadiagem”, “mendigagem” ou “libertinagem”. Isso criou um cenário em que o Código, por ter como principal objetivo tratar desses grupos vulneráveis de crianças e se resumir a essas matérias, praticamente "criminaliza a pobreza”, não no sentido literal, mas determinava as medidas a serem tomadas pelo poder público no que tange a essas situações.

Algumas das medidas mais controversas determinadas no Código de 1927 são as que interferem no poder familiar, levando, por exemplo, à perda do pátrio poder pois, apesar de serem construídas com o objetivo de proteger as crianças e adolescentes de situações em que seu contexto familiar as coloca em risco ou não consegue garantir as condições de vida necessárias para seu bem-estar, observa-se que algumas das hipóteses em que essas medidas são muito amplas, deixando grande espaço para interpretação e subjetividade dos aplicadores, com determinações como a seguinte, que condiciona essa perda do poder familiar à moral e aos bons costumes, mas não define ou especifica o que se encaixa nesse critério:

 

Art. 32. Perde o patrio poder o pae ou a mãe:

V, que praticar actos contrarios á moral e aos bons costumes.

(BRASIL, 1927)

 

Percebe-se, ainda, que os principais alvos do Código sempre eram as famílias mais pobres, de forma que algumas medidas impunham certos tipos de sanções apenas pela insuficiência material das famílias, e outras, apesar de aplicáveis a outros grupos, tinham como alvo constante, na prática, apenas os grupos vulneráveis.

No entanto, ainda no aspecto jurídico de análise do Código, é importante ressaltar a importância desse aparato para o contexto do país, não se limitando às críticas. Destaca-se, por exemplo, que foi o Código de 1927 que estabeleceu um limite de idade para o trabalho, determinando que menores de 11 anos não podem exercer atividades de trabalho e aqueles entre 12 e 17 anos que trabalham têm diversas restrições, como o trabalho noturno. Também, em busca de regularizar a situação de crianças em abrigos e orfanatos, determinando a obrigatoriedade do registro civil das crianças para serem recebidas nas instituições, com o objetivo de combater a prática anterior de abandono por meio de um compartimento anônimo em que os bebês eram colocados pelas mães. Acrescente-se a isso a mudança do procedimento relativo aos jovens delinquentes, uma vez que, até então, eles eram presos e processados como adultos após infrações penais, o que as colocava em alto risco e era bastante criticado pela sociedade da época, conforme mencionado anteriormente. O Código de 1927 alterou essa realidade, tratando as crianças de forma diferenciada no que tange a infrações e determinando, ao longo de seus artigos, medidas como escolas de reforma para os jovens, as quais, apesar de não ideais, representaram o reconhecimento da necessidade de tratamento específico para a idade do jovem infrator.

 

Art. 68. O menor de 14 annos, indigitado autor ou cumplice de facto qualificado crime ou contravenção, não será submettido a processo penal de, especie alguma; a autoridade competente tomará sómente as informações precisas, registrando-as, sobre o facto punivel e seus agentes, o estado physico, mental e moral do menor, e a situação social, moral e economica dos paes ou tutor ou pessoa em cujo guarda viva.

(BRASIL, 1927)

 

3. CÓDIGO DE MENORES DE 1979

 

O Código de Menores de 1979, instituído pela Lei n° 6697 de 10 de outubro de 1979, foi o responsável por atualizar, ao menos na linha do tempo, a legislação anterior que tratava sobre crianças e adolescentes: o Código de 1927. Este, entretanto, não rompeu com os conceitos já fixados, no que se refere à população infanto-juvenil, pelo antecessor.

 

3.1. Aspectos políticos e jurídicos do Código de 1979

 

Para compreender os aspectos políticos que deram base ao Código, é importante que seja feita uma contextualização do que estava acontecendo no Brasil e no mundo à época.

No ano de 1967, com a promulgação da Constituição Federal, houve uma vasta modificação no que diz respeito à forma como a população se comportava perante o Estado, entretanto, a respeito do abordado, na infância, não podia ser encontrada previsão constitucional alguma para esses sujeitos. Entretanto, por se tratar de um período marcado por turbulências políticas, as crianças e adolescentes puderam gozar de, ao menor segundo a legislação, de uma nova realidade: houveram modificações significativas na realidade destes devido a entrada em vigor de dois importantes institutos: a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor e o Código de Menores de 1979.

A Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM) foi um órgão instituído pela Lei n° 4513, de 1° de dezembro de 1964, que tinha como principal objetivo a manutenção da chamada “política nacional de assistência”, além de que serviria como Legislação que buscava garantir o cumprimento dos diversos Tratados Internacionais ratificados pelo Brasil e que versavam sobre a assistência à infância, entretanto a atuação desse órgão estava também bastante ligada à internação dos menores, sejam eles infratores ou não.

É importante destacar que, posteriormente, as chamadas FUNABEMs deram origem às FEBEMs em alguns estados brasileiros.

Já a respeito do segundo instituto, o Código de Menores, este entrou em vigor já no final do período da ditadura militar, que durou até meados de 1985, no período em que João Figueiredo assumia a chefia de governo do país e seguiu a mesma linha do autoritarismo dos anos que o antecederam, na teoria foi uma revisão do antecessor - Código de Menores de 1927, que serviria para organizar a normatização brasileira a respeito da infância de acordo com o que pressupunha a Declaração dos Direitos da Criança de 1959, que almejava que

 

a criança tenha uma infância feliz e possa gozar, em seu próprio benefício e no da sociedade, os direitos e as liberdades aqui enunciados e apela a que os pais, os homens e as mulheres em sua qualidade de indivíduos, e as organizações voluntárias, as autoridades locais e os Governos nacionais reconheçam estes direitos e se empenhem pela sua observância mediante medidas legislativas e de outra natureza, progressivamente instituídas.

(ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1959)

Nesse sentido, o texto normativo continha práticas a serem adotadas pelos órgãos governamentais a fim de que esse objetivo fosse plenamente alcançado. Entretanto, a teoria era bastante diferente do que realmente acontecia na prática. Essa diferença se dava especialmente devido ao contexto político em que o país estava inserido, pois, mesmo que o Código previsse inúmeras garantias aos sujeitos, a doutrina política era adepta de uma realidade completamente oposta a isso.

Levando em conta o exposto, as principais influências políticas que podem ser notadas ao longo do Código em questão dizem respeito à doutrina do menor irregular, herança do revogado Código de 1927, ou Código de Mello Matos, que classifica crianças e adolescentes como sendo um indivíduo que subvertia a ordem, alguém perigoso, que ameaça a situação em que estava inserido, a serem tutelados por adultos, e que não seriam passíveis de Direitos. Essa abordagem pode ser ainda melhor definida pelo próprio Código

Art. 2º Para os efeitos deste Código, considera-se em situação irregular o menor:

I - privado de condições essenciais à sua subsistência, saúde e instrução obrigatória, ainda que eventualmente, em razão de:

a) falta, ação ou omissão dos pais ou responsável;

b) manifesta impossibilidade dos pais ou responsável para provê-las;

Il - vítima de maus tratos ou castigos imoderados impostos pelos pais ou responsável;

III - em perigo moral, devido a:

a) encontrar-se, de modo habitual, em ambiente contrário aos bons costumes;

b) exploração em atividade contrária aos bons costumes;

IV - privado de representação ou assistência legal, pela falta eventual dos pais ou responsável;

V - Com desvio de conduta, em virtude de grave inadaptação familiar ou comunitária;

VI - autor de infração penal.

(BRASIL, 1979)

 

Além disso, os dois institutos ganharam ainda mais destaque na realidade brasileira devido ao fato de terem sido promulgados no período do chamado “Ano Internacional da Criança” [4].

 

3.2. Aspectos Sociais

No que se refere ao Código de Menores de 1979, temos uma versão ajustada do Código Mello Mattos. O país passava por fortes debates políticos e sociais, considerando o período da Ditadura Militar, na década de 70 eram comuns iniciativas de representantes políticos e da comunidade questionando a ineficácia dos modelos aplicados pelo Estado quanto à proteção da criança e adolescente. Tais iniciativas, justificando-se daquele cenário de violência, analfabetismo, exploração laboral, etc. Foram, passo a passo, trazendo o descrédito da legitimidade do caráter autoritário das políticas públicas infanto-juvenil que perduraram até a década de 70 e com isto, surgem novos agentes de defesa dos direitos desses jovens.

A doutrina emprega, apresentando o mesmo paradigma do Código anterior, o poder amplo ao Estado que sempre considera a proteção total da infância e com isto, discrimina quaisquer condutas de castigos físicos aos adolescentes, direcionando, ou pelo menos busca um caminho assistencial mais aberto do que fechado. Todavia, as práticas permaneceram privilegiando as apreensão (PAES, 2013). O Código, através de dispositivos de intervenção do Estado sobre a família, direciona a uma política de internatos-prisão. Possibilitando ao Estado, considerando a situação irregular, a legitimidade para recolher crianças e jovens e condená-los ao internato até a maioridade. É esta conduta que, em grande parte, seria responsável pela degradação pessoal e social de crianças e adolescentes.

Resumidamente, o enfoque das instituições policiais com o Código de Menores de 1979 não mudaria em relação ao Código Mello Mattos, ocorreria, por outro lado, de forma mais contundente e sob o conceito de conduta inaceitável, conferia ao Estado, representado pelas autoridades policiais, amplos poderes cautelares sobre esses jovens (AZEVEDO, 2007).

Observa-se que a intervenção do Estado não tratava, em geral, em buscar a solução do problema, mas em encontrar uma forma “mais simples” de sanar os problemas relacionados a violência. Não restando dúvida de que a legislação aplicada pouco teve intenção de buscar a ressocialização dos jovens. Mantendo-se ausente, nas instituições repreensivas o interesse em levar aos jovens infratores um ambiente educacional e humanistas que promovessem a formação do caráter. Prova disso é que, tão logo chegavam à maioridade penal, retornavam à prisão pela prática de novos delitos.

Assim, observamos, quando comparamos os direitos dos jovens hoje estabelecidos pelo ECA e a legislação aplicada no século 20, uma importante evolução histórica dos direitos de todas as crianças e adolescentes, em especial, àqueles em que se encontravam em situações de total ausência de assistência familiar.

4. BREVE COMPARAÇÃO ENTRE AS LEGISLAÇÕES MENORISTAS: 1927 E 1979

            A legislação menorista brasileira, desde seu princípio que teve como base ainda as Ordenações Filipinas, sempre foi dotada de pontos de desrespeito aos valores que, atualmente, entendem-se como sendo os mínimos necessários à sobrevivência de uma pessoa, em especial de uma criança ou adolescente que têm características e individualidades ainda mais peculiares e que necessitam de uma visão um pouco mais diferenciada por parte da sociedade em geral e, especialmente, por parte dos legisladores.

            Desde que começaram a ser incluídas nos dispositivos normativos, as crianças e adolescentes não puderam ter sua realidade muito alterada, devido, especialmente, à forma como eram vistos, a classe social chamada “menor” e todo o contexto pejorativo por trás desse termo, segundo Nardi (1993, p. 94 apud OLIVEIRA, 2014 , p. 15), que diz respeito à crianças que vivem em situação de abandono, excluídas e marginalizadas .

            Uma breve contextualização se faz necessária a fim de que os Códigos possam ser comparados: ainda no século XVIII foi implementado no Brasil, como herança portuguesa, a Roda dos Expostos, localizadas nas Santas Casas de Misericórdia, instituto, segundo Resende (1999), que servia para que as mães, que tiveram seus filhos como fruto de uma gravidez indesejada, pudessem entregá-los anonimamente à tutela do Estado, mas, além disso, servia como um centro de acolhimento aos abandonados, sejam quais fossem os motivos que geraram a situação do abandono.

            Entretanto, no início do século XX esse instituto primário foi extinto da realidade brasileira, fazendo com que o público-alvo ficasse à mercê do destino, largados nas ruas, o que despertou ainda mais a preocupação do Estado com a situação em que a sociedade se encontrava. Conforme Pereira (1994, p. 38, apud OLIVEIRA, 2014, p. 11)

 

[...] da noite para o dia (surgia), uma perigosa malta de pessoas marginalizadas que ameaçavam a ordem vigente, seja como massa ativa nos constantes motins urbanos, seja no exemplo negativo de um extrato que não vivia do trabalho “honesto”. No interior dessa malta, destacava-se, pela primeira vez, o grupo de crianças e adolescentes. No período anterior, eram pouco visíveis, pois as crianças tinham como destino as Casas dos Expostos e os adolescentes trabalhavam como escravos

 

            Dessa forma, os Códigos de 1927 e de 1979 não poderiam seguir uma linha muito diferente da que já era adotada, apesar de já estarem inseridos em uma sociedade que tinha a mentalidade mais evoluída do que a que criou e seguia as Ordenações Filipinas, por exemplo.

 

4.1. Semelhanças

 

Tendo por base o exposto, o que pode ser apreendido é que, apesar de se darem em períodos diferentes, distantes mais de meio século um do outro, o Código de 1979 nada foi além de uma revisão do seu antecedente.

A principal semelhança que merece destaque é o fato de os Códigos manterem o termo “menor” como algo pejorativo, sendo estes as crianças de rua, abandonadas, indesejadas ou delinquentes, realidade que só foi modificada após a saída de vigor do Código de 1979 e a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990.

Além disso, a Doutrina da Situação Irregular que, de acordo com Castro (2006), dizia respeito à situação em que se encontravam os “menores” da época, sendo estes os únicos regulados pelo Direito, apesar de que efetivamente, não serem possuidores de direitos, é igualmente mantida nos dois, a ponto de ocasionar maior polêmica, especialmente devido ao modo como esses menores eram tratados, a forma como eram vistos pelo Estado e consequentemente pela sociedade.

            Essa doutrina foi a responsável por excluir a categoria “crianças”, que envolve todas as pessoas, desde o início de sua vida até a idade adotada pelo ECA atualmente, 18 anos de idade, e mantê-los por mais de 60 anos em situação de vulnerabilidade completa.

            Por fim, um ponto que merece destaque é o fato de os dois Códigos, tutelam o mesmo bem jurídico: os “menores”, ou seja, as regras existentes nos dois dispositivos serão aplicadas, única e exclusivamente às crianças que se encontram em situação irregular. Logo, crianças da elite, por exemplo, não estavam inseridas, sendo, essa situação mais uma das quais o ECA irá tratar nos anos posteriores, a fim de garantir a todos os direitos e garantias fundamentais a um bom desenvolvimento social.

           

4.2. Diferenças

 

            Uma das primeiras alterações que pode ser percebida é a adição da função de “vigilância” do Estado perante os menores. Pela redação, o Código de 1927 tratava do “[...] menor, [...] será submetido pela autoridade competente ás medidas de assistencia e protecção contidas neste Código", entretanto, o Código de 1979 já versava sobre “[...] assistência, proteção e vigilância a menores [...]”. Essa modificação, apesar de sutil, atribuía ao Estado uma responsabilidade maior sobre essa classe social, especialmente devido à época em que o país se encontrava, de acordo com os estudos de CUNHA e BOARINI (2010, p. 219)

 

A sociedade estava vivendo momentos de repressão materializada em censuras a manifestações artísticas, à mídia e às manifestações políticas. Isto ilustra o retrocesso representado por essa postura na história do atendimento estatal à infância

 

Disposto isto, é possível compreender a real intenção estatal ao inserir tal termo na legislação brasileira justamente após o fim do período chamado Anos de Chumbo[5].

Além disso, o Código de Mello Matos versava sobre o menor “que tiver menos de 18 annos de idade”, aplicando a este toda e qualquer medida necessária conforme previa essa lei, já o Código de 1979 apenas entendia como menor aquele que possui até 18 anos ou, em casos excepcionais previstos em lei, até 21 anos.

Por fim, outra desconformidade entre os Institutos diz respeito à intervenção do Estado sobre o poder da família desse menor. O Código de 1927 não versava sobre, entretanto, o sucessor trouxe ideias que serviram de base para que os internatos fossem mais amplamente utilizados como forma de punição aos menores.

Esses sujeitos podiam ser destituídos de suas famílias caso fosse caracterizado o abandono, através de sentença proferida pela autoridade judiciária, agindo o Estado no recolhimento desses menores e sua posterior internação até que atingissem a maioridade. Assim, as estruturas desses internatos eram constantemente reforçadas, a fim de que esses menores não conseguissem lograr êxito em possíveis tentativas de fuga.

Esses reforços, especialmente externos à estrutura desses centros, tinham objetivos muito além de evitar essas fugas, mas sim vislumbravam a situação que já se encontrava a realidade brasileira no período no que se trata da situação das ruas, da quantidade de menores presentes nelas.

Com toda essa realidade vindo a se tornar um problema que não teria mais como ser resolvido e até mesmo devido à influências externas, como a redemocratização brasileira e a promulgação da Constituição Federal de 1988, que estabeleceu diretrizes básicas à existência de um ser humano, inclusive incluindo crianças e adolescentes nesse rol, foi necessária a revogação do texto em vigor e a posterior promulgação do ECA, que trata mais digna e abrangentemente sobre as crianças, incluindo todas as idades, além de considerá-las como sujeitos possuidores de direitos básicos, transformando a realidade brasileira.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

A legislação menorista em vigor na realidade brasileira durante o século XX foi, em sua maioria, sinônimo de regresso à essa classe social. Os dois Códigos de Menores (1927 e 1979) apesar de incluírem na sociedade novos conceitos e perspectivas, ainda não eram suficientes para garantir uma dignidade mínima a crianças e jovens que enfrentavam uma dura realidade de abandono, marginalização e exclusão durante todos os dias de sua vida. Enquanto a importância da criação dos Códigos é inegável, especialmente por ter representado o início do reconhecimento pelo país das necessidades das crianças e dos adolescentes, percebe-se que a proteção não era integral e, pelo contrário, tratava diferentes grupos de formas distintas e mantinha jovens em situações de risco, característica mantida na transição do primeiro Código para seu sucessor, de 1979.

Pode-se, então, entender que, apenas com a promulgação do ECA, já no fim do século, essa realidade pôde começar a ter reais modificações, especialmente no que se refere ao incremento da população que era resguardada por essa lei, deixando de serem objetos apenas os “menores em situação irregular”, mas passando a abranger todas as faixas etárias, a fim de garantir que  esses passassem a ser vistos como sujeitos possuidores de direitos, os, rompendo, portanto, com a visão punitivista e assistencialista trazida pelos que lhe antecederam.

 

REFERÊNCIAS

 

A palavra da FUNABEM, Psicol. Ciênc. Prof. (Impr).. v. 8, n. 1, p. 6-7, 1988. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1414-98931988000100003. Acesso em: 04 fev. 2022.

 

AZEVEDO, Maurício Maia de. (Monografia) O Código Mello Mattos e seus reflexos na legislação posterior. Rio de Janeiro, 2007. Disponível em: http://www.tjrj.jus.br/c/document_library/get_file?uuid=b2498574-2cae-4be7-a8ac-9f3b00881837&groupId=10136. Acesso em: 04 de fevereiro de 2022.

 

BRASIL. Código de Menores de 1927, decreto n° 17.943-A. Rio de Janeiro, 12 de outubro de 1927.

 

BRASIL. Lei n° 4.513, de 1° de dezembro de 1964. Autoriza o Poder Executivo a criar a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor, a ela incorporando o patrimônio e as atribuições do Serviço de Assistência a Menores, e dá outras providências. Brasília, DF: Casa Civil, 1964. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-1969/L4513impressao

Acesso em: 03 de fevereiro de 2022.

 

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[1] Bacharelanda em Direito pela Universidade Federal do Ceará, pesquisadora e diretora acadêmica da linha de Direitos Humanos do Grupo de Estudos em Direito e Assuntos Internacionais. E-mail: [email protected]

[2] Bacharel em Engenharia Civil, Pós Graduado em Segurança Pública e Cidadania, Bacharelando em Direito na Universidade Federal do Ceará (UFC). E-mail: [email protected]

[3]Bacharelanda em Direito na Universidade Federal do Ceará (UFC). E-mail: [email protected]

[4] O Ano Internacional da Criança foi proclamado em 1979 pelas Nações Unidas, por meio do UNICEF, com o objetivo de aumentar o foco da sociedade em geral, em especial dos chefes de governo, para a situação em que se encontravam as crianças e todos os problemas que por elas eram vivenciados.

[5] Anos de chumbo: período em que houve uma maior repressão dentro da chamada Ditadura Militar, especialmente os anos em que Médici foi o chefe de Estado no país, promulgando diversas medidas restritivas, como os AIs.