Na obra Sobre a Literatura, publicada pela primeira vez em 2002, Umberto Eco reúne escritos centrados na reflexão sobre a literatura, cujo intuito é ampliar nossa compreensão ou até mesmo reforçar nossos conceitos já preestabelecidos acerca do que é literatura e sua função em nossa sociedade atual.  

Para tanto, o teórico, no primeiro ensaio, intitulado Sobre algumas funções da literatura, analisa o conceito de tradição literária e, ao ponderar que a literatura é um poder imaterial, estabelece sua função, que dela decorrem três conclusões fundamentais: a literatura mantém a língua coletiva e individual, expondo sua ideia de obra aberta; as personagens literárias extrapolam o texto e vivem em nós, representando nossos sentimentos; a última função está apoiada na ideia de que a literatura nos educa tanto para a inventividade, veiculada pela tecnologia, quanto para enfrentarmos nossos dilemas existenciais, e é aí que encontramos sua verdadeira função.

Assim sendo, Eco cuida de definir o conceito de tradição literária, compreendendo- o como um poder imaterial e, entre esses poderes imateriais que contornam a tradição literária encontra- se o complexo de textos que a humanidade produziu por amor a si- mesma, que é lido por deleite e passatempo, para elevação espiritual ou ainda para ampliação dos próprios conhecimentos.  

Explicado o conceito, Eco passa a analisar a função (para que serve) esse bem imaterial que é a literatura. Nesse sentido o teórico elenca algumas das funções que a literatura assume em nossa vida individual e social, partindo do pressuposto de que a literatura, além de ser um bem de consumo, mantém a língua como patrimônio coletivo, pois contribuindo para formar a língua, cria identidade e comunidade. Nesse sentido, Eco adverte-nos: sem Dante não haveria a Itália unificada, o que teria siso da civilização grega sem Homero, a identidade alemã sem a tradução da Bíblia feita por Lutero, a língua russa sem Pushkin.

Ampliando sua análise, Eco arrola que a prática literária também assegura nossa língua individual, visto que a leitura das obras literárias, ao propor-nos muitos planos de leitura e colocar-nos diante das ambiguidades da linguagem e da vida, exige uma atividade interpretativa. Desse modo, afirma que mesmo que cada geração lê as obras de modo diverso, é preciso que, no momento da leitura, sejamos movidos pela intencionalidade do texto, pois os textos literários não apresentam somente uma verdade literal, descrita explicitamente, a qual Eco chama de verdade hermenêutica, mas também assinalam aquilo que podemos tomar como ponto de partida para interpretações livres.

Desta feita, Eco conclui que a literatura é um universo no qual é possível verificar se o leitor compreende a realidade, a partir de proposições que lhe são apresentadas, ou se toma os fatos literários apoiado em suas próprias e livres interpretações. Ou seja, a leitura das obras literárias propõe- nos um exercício de compromisso, bem como de fidelidade na liberdade de interpretação, pois no universo dos livros existem proposições que permanecerão como eventos reais e verdadeiros em relação ao mundo e, assim, nunca poderão ser contrapostas.

Por conseguinte, o teórico afirma que as personagens migram. O que isso significa? Para ele, o que acontece com as personagens literárias está registrado no texto, porém certas personagens migram de texto em texto através de adaptações, como é o caso de Jasão, Ulisses, Artur, Chapeuzinho, Alice, Pinóquio, madame Bovary, d’Artagnhan. Assim, essas personagens tornam-se indivíduos que vivem fora dos textos originais, e mesmo as pessoas que não os leram podem fazer afirmações verdadeiras sobre eles.

Então, Eco indaga: por onde anda essas personagens flutuantes? De certa forma, algumas personagens tornaram-se arquétipos coletivamente verdadeiros, pois ao compreendermos que alguém tem complexo de Édipo, um comportamento quixotesco, os ciúmes de Otelo, uma dúvida hamletiana ou é um irremediável Don Juan, as elegemos como modelo de vida e de comportamentos. Essas personagens literárias vivem em nós- tornaram-se arquéticos que manifestam-se como hábitos culturais e disposições sociais- alimentadas por nossos investimentos passionais.

Por derradeiro, Eco afirma que entramos na era do hipertexto eletrônico, o qual permite a prática de uma escrita inventiva e livre, mas para ele isso não é ruim, pois ao jogarmos com mecanismos hipertextuais, modificamos as histórias que já existem e, assim, contribuímos para criação de uma nova narrativa, no entanto, esses jogos não substituem a verdadeira função da literatura, que não se reduz à transmissão de ideias morais, ou à transformação do sentido do belo, pois a função da literatura é contra qualquer desejo de mudar o destino, e assim fazendo, qualquer história que esteja contando, conta a nossa, porque nos representa. Eco conclui que a narrativa hipertextual pode nos educar para a liberdade e para a criatividade, mas os contos “já feitos” nos ensinam a viver e a morrer, e essa é uma das funções principais da literatura.

Referência Bibliográfica

ECO, Umberto. Sobre algumas funções da literatura. In: Sobre a literatura. Rio de Janeiro: Record, 2003.