Arlania Maria Reis de Pinho Menezes

Prof. Mestre – UNIRB (Alagoinhas)

A modernidade, diferente das sociedades tradicionais que veneram e transmitem o passado a cada geração, caracteriza-se por mudanças e deslocamentos. O fenômeno da Globalização, segundo Hall, interfere de forma relevante na conceitualização de Identidade Cultural e nos coloca num jogo de identidades que se dá porque as identidades são contraditórias e se cruzam mutuamente (2002, p.7-8). Para o autor, a fragmentação do sujeito e consequentemente de sua identidade cultural afeta diretamente a identidade nacional na modernidade; ainda argumenta que a maioria das nações foi unificada após um processo de conquista violento que exerceu uma hegemonia cultural sobre os colonizados, como ocorreu no Brasil.

Ter uma identidade cultural é saber se reconhecer enquanto indivíduo de uma coletividade. Discutir sobre questões relacionadas à cultura brasileira acaba por uma influenciar uma discussão sobre história, localidade, raça, etnia, crenças, nacionalidade, em virtude da miscigenação que ocorreu ao recém-nascido Brasil e o caracterizou enquanto nação miscigenada, envolvida numa diversidade de olhares e modos de vida.

É nesse contexto de identidade cultural que discutiremos o romance, “Viva o povo brasileiro”, de João Ubaldo Ribeiro, uma narrativa que se desenvolve em torno da discussão sobre o tema, ora de forma exagerada, ora de maneira irônica, como quem olha para a história do Brasil de forma desconfiada das interpretações oficiais que a ela foram (e ainda são) imputadas durante o percurso de sua existência, através da paródia. Partido do conceito simples que parodiar é produzir um texto baseado em um outro que ele nega, Ribeiro utilizou-se desse gênero para parodiar a brasilidade dos indivíduos nascido nesta nação, e o constante “complexo” identitário que ecoa interrogativamente pelos quatro cantos do país: Quem é o brasileiro? É o negro, o índio, o branco, ou o mulato, o cafuzo, o caboclo? Qual é a raça e a cor dessa nação? Qual é a sua língua?

Marilena Chauí diz que os brasileiros “vivem imersos em perspectivas polimorfas geográficas, étnicas, históricas, climáticas e sociais – maranhenses, mineirices, guachices, etc.”. Fica, portanto, muito claro que cultura não é um objeto uno, mas é subjetivo e sujeito a interpretações.

Se as identidades culturais não são sistemas fechados, como queria certa orientação estruturalista, mas sim um colar de significações renováveis pela cristalização de cada síntese, então é preciso discutir cultura brasileira a partir da amplitude dos espaços contemporâneos, da multiplicidade de olhares disciplinares e, sobretudo, da multiplicidade de práticas constitutivas da vida nesse tal território Brasil (CHAUÍ, 2007, p. 15).

Esse território heterogêneo, onde circulam tradições indígenas, europeias e africanas tem fincado aí seu valor identitário e dele não pode abrir mão, “é nessa espécie de entrelugar – entre a teoria e a ação cultural; entre o contemporâneo e o ancestral, entre o que achamos que fomos e o vislumbre do que poderíamos vir a ser” (CHAUÍ, 2007, p.17), que está o conflito de sentido da expressão “cultura brasileira”, que é múltipla e diversa, mas a cultura brasileira que sustenta certa identidade nacional é resultado da construção simbólica de sujeitos sociais definidos em um determinado tempo histórico, no Brasil seria o período da colonização. Nesse contexto, pode-se dizer que “a cultura de um determinado grupo social não é nunca uma essência, é uma autocriação...” (SANTOS, 1996, p.148), ou seja, a cultura brasileira não se esgota nos brasileiros, mas num repertório de encontros e desencontros, de olhares, de individualidades, problemas sociais, étnicos, religiosos, de coletividade.

Essa discussão sobre a identidade brasileira como nação acabou por construção de um sentido simbólico a partir de imagens do Brasil como um país gigantesco; criou-se o mito do “achamento” da terra que foi escolhida em virtude de suas belezas naturais, sua riqueza de fauna e flora. Ubaldo se contrapõe a essa visão utópica com ironia, através de um narrador que dessacralização certas ideias sobre a brasilidade, colocando a fala dos personagens, por exemplo, em ambientes marginais, como ocorre na reunião familiar, entre Ioiô Lavínio e os seus filhos, que discutem sobre a identidade do povo brasileiro a partir dos efeitos da colonização ibérica.

– Não é nada disso, paizão, não ... Mas a Guiana Holandesa não foi colonizada pelos holandeses?

– ... Nada desse papo de inferioridade, isso não tá com nada. Tem que sacar a estrutura.

– Você conhece a história de Deus criando o mundo e dando tudo ao Brasil e aí um anjo assistente estranha e aí Deus diz que ele espere até ver o povo filhada p.., o povo safado que ele ia botar aqui? Disse Domingos pondo o braço no ombro da cunhada e notando que ela estava sem sutiã, com os peitinhos arrebitados por baixo da bata encardida. (RIBEIRO, 1984, P.625)

A identidade neste caso é discutida a partir da colonização. Aqui a história do Brasil soa bastante ufanista em determinados feitos. Nesta obra-prima, que é o romance Viva o povo brasileiro, é visível que a história foi pontuada pela ironia de um narrador que observa com humor e bastante crítica alguns acontecimentos relevantes da história brasileira, marcada pela maldade, preconceito e desigualdade entre os habitantes. O romance dialoga com a História do Brasil, desde o primeiro parágrafo:

Contudo, nunca foi bem estabelecida a primeira encarnação do Alferes José Francisco Brandão Galvão, agora em pé na brisa da Ponta das Baleias, pouco antes de receber contra o peito e a cabeça as bolinhas de pedra ou ferro disparadas pelas bombardeatas portuguesas, que daqui a pouco chegarão com o mar. Vai morrer na flor da mocidade, sem mesmo ainda conhecer mulher e sem ter feito qualquer coisa de memorável. (RIBEIRO, 1984, p.09)

Primando pela possibilidade de fruição que irá proporcionar ao leitor dessa extensa narrativa de 673 páginas, de períodos longos (18 capítulos), o romance leva o leitor a entrar em contato com um país demasiadamente selvagem, com passagens nada edificantes ou triunfalistas dos heróis sem caráter que estiveram por aqui, a exemplo da participação do Brasil na Guerra do Paraguai; a narrativa indica, por parte do autor, uma interpretação corrosiva dos fatos:

Embravecidos e correndo sobre a imensa coroa de areia firme como uma hoste de demônios, os portugueses praticaram tamanhas atrocidades que livros de versos foram escritos sobre elas e o ódio dos muitos ofendidos ainda hoje não se aplacou. [...] E tantos sacrilégios se cometeram que, não já estivesse Deus do lado brasileiro por justiça e vocação, para ele se bandearia agora, diante da algozaria do inimigo. (RIBEIRO, 1984, p.14)

A relevância dessa obra está justamente nessa discussão sobre a identidade de um país que se projeta, muitas vezes, de forma equivocada entre o ufanismo e o complexo de inferioridade.

O espaço no romance é a Bahia (onde nasceu o autor), mais precisamente, na ilha de Itaparica), de onde partem e voltam os personagens. Pode-se pensar que o autor quis, propositalmente, “confirmar” esse estado, metaforicamente, como o “berço da nação brasileira”, sem invalidar o título, apenas reforçando a importância da Bahia como local onde “tudo” começou, onde teve início a formação da nação brasileira.

No romance de João Ubaldo Ribeiro, a busca pela identidade atravessa a narração e se presentifica nos diálogos entre os personagens: de um lado revelando a visão daqueles que estão no poder, do outro, daqueles que estão à margem. Através de Amleto (mestiço, de pele branca e cabelos lisos como os do pai, e que enriqueceu de forma ilícita), percebe-se tanto um discurso de poder, quanto um sentimento de inferioridade de um mulato que não se assumia brasileiro de uma nação mestiça, que carregava o eurocentrismo nos diálogos, valorizando questões físicas e sociais como fatores positivos para uma nação poderosa:

Mas, vejamos bem, que seria aquilo que chamamos de povo? Seguramente não é essa massa rude, de iletrados, enfermiços, encarquilhados, impaludados, mestiços e negros. A isso não se pode chamar de povo, não era isso que mostraríamos a um estrangeiro como exemplo do nosso povo. [...] Povo é raça, é cultura, é civilização, é afirmação, é nacionalidade, não é o rebotalho dessa mesma nacionalidade. Mesmo depuradas, como prevejo, as classes trabalhadoras não serão jamais o povo brasileiro, eis que esse povo será representado pela classe dirigente, única que verdadeiramente faz jus a foros de civilização e cultura nos moldes superiores europeus – pois quem somos nós senão europeus transplantados? (RIBEIRO, 1984, p. 244-45)

Em outro ponto da narrativa, porém, ocorre o contrário, quando se dá o aprisionamento de alguns soldados, entre eles Patrício Macário e Maria da Fé, que explica o que é povo brasileiro, negando a autoridade da República:

– O povo brasileiro não deve nada a ninguém, tenente – disse ela. – Ao povo é que devem, sempre deveram, querem continuar sempre devendo. O senhor papagaia as mentiras que ouve, porque não interessa aos poderosos saber da verdade, mas apenas do que lhes convém.  (...) E são você o povo, os donos desse país? Não. Somos nós (...). O povo brasileiro somos nós, nós é que somos vocês, vocês não são nada sem nós. (RIBEIRO, 1984, p. 563-4).

Esses discursos do ser ou não ser brasileiro, do que foi, é ou poderia ser o brasileiro, correm os tempos e se presentificam na contemporaneidade, visto que essa é uma questão nodal que ainda permeia a identidade nacional, ainda encontra “chão” na atualidade.

Não se pode negar que a cultura brasileira é um espelho da miscigenação étnica. O que ocorreu aqui foi um ato antropofágico, ou seja, uma absorção de culturas diversas.  Pode-se observar que o ato antropofágico da cultura brasileira, que deglutiu os costumes de seus formadores, produziu, em seu meio, características culturais e um modo de ser particular ao brasileiro. Esse modo de ser também se encontra no gosto pela dança e pela música, num certo grau de malandragem, na facilidade de apreender coisas novas, na sensualidade, na adaptabilidade extrema e religiosidade mística, que também é versado na obra de João Ubaldo, que dá um enfoque relevante e essa questão da antropofagia para definir o esse modo de ser do povo brasileiro.

A primeira ação antropofágica citada no livro ocorre com Capiroba, filho de um preto e uma índia, que com suas duas mulheres, deglutiu com prazer a carne de um homem branco. Esta antropofagia cultural se efetiva com a absorção das receitas de culinária ensinadas às mulheres pelos padres da Redução e usadas para prepararem as iguarias com a carne desse mesmo padre:

O caboclo Capiroba então pegou um porrete e achatou a cabeça do padre com precisão, logo cortando um pouco da carne de primeira  para churrasquear na brasa. O resto ele charqueou bem charqueado em belas mantas rosadas, que estendeu num varal para pegar sol. Dos miúdos preparam ensopado, moqueca de miolo bem temperada na pimenta, buchada com abóbora, espetinho de coração com aipim [...] ...de acordo com as receitas que aquele mesmo padre havia ensinado à mulheres da Redução, a fim de que preparassem algumas para ele. (RIBEIRO, 1984, p. 42-3)

Descendente de tupinambás, habitante da ilha de Itaparica, o “caboco” Capiroba, canibal de gosto exigente e profundo apreciador da carne holandesa, transforma-se na possibilidade de se poder ouvir uma voz que esteve sempre silenciada nos relatos da história oficial: a voz do índio em processo de catequização. Este é outro tema discutido: a catequização e as conseqüências desastrosas que trouxeram para os índios, já que Capiroba transforma-se no centro da ação.

Ao mesmo tempo em que aparece como um elemento que efetiva a antropofagia, o consumidor também é consumido: um holandês que foi capturado como alimento, acaba praticamente obrigado a “transar com Vu (filha de Capiroba), pois preso e amarrado, ficou à mercê de suas carícias. Dessa união herda-se a principal característica dele: os olhos claros, que passam a fazer parte das gerações futuras. É a metáfora de mais uma cultura se inserido naquela que seria a brasileira.

Em relação à questão da linguagem, num outro trecho desse mesmo capítulo, pode-se confirmar o encontro entre esses dois mundos lingüísticos: do Holandês e do índio, que tenta aprender a língua do outro para entendê-lo ou fazê-lo obedecer às suas ordens:

– Zernike, Zernike – falou, cutucando o peito com o indicador – Zernike!

– Aquimã, Sinique! – falou o caboclo triunfante, depois de uma pausa para pensar.

O holandês aprovou, baixando e levantando a cabeça com toda a força. O caboclo riu mais aberto e passou a indicar um e outro ritmamente, Aquimã, Sinique, Aquimã, Sinique, Aquimã... O holandês riu e as mulheres e as meninas riram, quase cantaram uma cantiga (RIBEIRO, 1984, p.51). 

A antropofagia, neste contexto, ocorre com a língua, pois os nomes em holandês são deglutidos pelo caboclo, que ao assimilá-los os transforma em nomes diferentes pela sonoridade, produzindo um ritmo que parece uma cantiga. Há, portanto, dois processos antropofágicos aqui: o lingüístico e o cultural.

No contexto desse discurso sobre a identidade brasileira, portanto coletiva, pode-se inferir que a cultura tem um papel relevante no sentido de delimitar os diversos padrões, condutas e personalidades, bem como, as características próprias da cada grupo. Para Hall (2002, p.8-9) a “crise de identidade” que se vive hoje, decorre do amplo processo de mudanças que vem ocorrendo na contemporaneidade, ou seja, a modernidade propicia a fragmentação de identidade. Para o autor, nos tempos atuais ocorre um descentramento e ausência de referências sólidas; as identidades no passado eram mais conservadas, hoje, com as inovações e características temporárias (os modismos) bastante influenciáveis, esse cenário mudou. A globalização corroborou muito para isso. Portanto, se no passado já havia um complexo identitário brasileiro, no presente ele foi apenas ratificado pelas mudanças sociais e culturais. 

Destarte, é verossímil dizer que ser brasileiro não é apenas uma questão de etnia, mas também cultural; um indivíduo pode tornar-se brasileiro pela assimilação cultural, não apenas por nascer em território brasileiro, como reflete Darcy Ribeiro: 

Os brasileiros se sabem, se sentem e se comportam como uma só gente, pertencente a uma mesma etnia. Essa unidade não significa, porém, nenhuma uniformidade. O homem se adaptou ao meio ambiente e criou modos de vida diferentes. A urbanização contribuiu para uniformizar os brasileiros, sem eliminar suas diferenças. Fala-se em todo o país uma mesma língua, só diferenciada por sotaques regionais. Mais do que uma simples etnia, o Brasil é um povo nação, assentado num território próprio para nele viver seu destino. (RIBEIRO, 1995, p.222).

O povo brasileiro, portanto, tem construído em torno de si mesmo um campo de forças antagônicas que se distendem ao extremo, mas que não se separa, já que ser brasileiro não é apenas uma definição de etnia.

A identidade brasileira foi/é marcada pela contradição, pelas diferenças causadas pelas influências importadas e impostas desde a colonização. As diferenças é que forma e transforma a cultura brasileira em uma cultura rica por suas variedades sociais, religiosas, linguísticas, artísticas... Os elementos étnicos, geográficos, sociais, religiosos, históricos, climáticos, entre outros, que formaram a cultura do povo brasileiro são relevantes na mesma medida, são de todos os brasileiros. Nesse contexto, cabe o conceito de Williams Raymond, refletido por Cevasco, que vê a cultura como algo comum a todos, sua visão difere da visão tradicional, já que para ele:

A cultura é de todos, não existe uma classe especial, ou um grupo de pessoas, cuja tarefa seja a criação de significados e valores, seja em sentido geral, seja no sentido específico das artes e do conhecimento; estes seriam uma codificação de uma posse comum. (RAYMOND, apud: CEVASCO, 2003, p.19-20)

E cita como exemplo disso a linguagem, que é “uma prática social cujo significado é estendido e aprofundado por certos indivíduos”, mas também reflete que a criatividade dessa linguagem depende do grupo social que a utiliza.

Através da paródia, o narrador de Viva o povo brasileiro foi questionando e produzindo o contexto que trouxe para o país esse complexo identitário. Evidencia-se isso no trecho em que o personagem Amleto, desejando o Brasil como uma terra “civilizada”, acredita que esta situação só se efetivará através dos brancos, ricos e inteligentes (como ele), acima da “horda medonha de negros” que vivia aqui:

Que somos hoje? Alguns poucos civilizados, uma horda medonha de negros, pardos e bugres. Como alicerce da civilização, somos muito poucos, daí a magnitude de nosso labor. Mas, no que depender de mim, e tenho certeza de que dos senhores também, o Brasil jamais se tornará um país de negros, pardos e bugres, não se transformará num valhacouto de inferiores, desprezível e desprezado pelas verdadeiras civilizações, pois aqui também medrará, mercê de Deus, uma dessas civilizações. (RIBEIRO,1984, p. 245).

Em outro momento, fica bastante claro o desprezo de Amleto por sua situação de descendente africano, quando o mesmo amaldiçoa a esposa por ela não ter seguido a receita de passar cuspe, em jejum todos os dias no nariz do filho Patrício Macário para ele ficar com o nariz fino e não chato como de negros. Para a desgraça de Amleto a mestiçagem está em sua própria casa, e parte dele mesmo:

– Eu te disse, te disse sempre: cuspe em jejum! Que é que eu te dizia, dia pós dia? [...]

...porque todos nasceram com aparência de gente fina e de bem, só ele nascera com aquela nariganga escarrapachada e aqueles beiços que mais pareciam dois salsichões de tão carnudos – um negróide, inegavelmente um negróide! (RIBEIRO, 1984, p.322-3)

No final do romance não há um único personagem que não seja mestiço, há sempre um índio ou um negro na árvore genealógica do brasileiro. E essa é a realidade do Brasil: um contingente humano formado por índios, brancos, negros, e sua mestiçagem: crioulos, mazombos, mamelucos, cafuzos, caboclos, enfim, um aglomerado miscigenado que criou uma maneira peculiar de ser, que é um pouco Maria da Fé, um pouco Bonifácio Odulfo, Capiroba, Macário, Sinique, Vu, entre outros. Esses tipos brasileiros do romance se repetem, reforçando a definição do povo da nação... A obra definiu o povo brasileiro através da essência da brasilidade que não depende apenas da etnia, mas da aceitação ou não por parte do indivíduo, das marcas que traz no corpo e na alma.

[...] Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles negros e índios supliciados. Todos nós brasileiros somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal, que também somos. Como descendentes de escravos e de senhores de escravos seremos sempre servos da maldade destilada e instalada em nós, tanto pelo sentimento da dor, intencionalmente produzida para doer mais, quanto pelo exercício da brutalidade sobre homens, sobre mulheres, sobre crianças convertidas em pasto de nossa fúria." (RIBEIRO, 1995, p.118)

Viva o povo brasileiro é uma paródia da história do Brasil que narra a formação étnico-cultural do país a partir do local Bahia, levando em conta os elementos formadores de sua cultura, de sua identidade nacional, ou seja, elementos que remetem à miscigenação que ocorreu no país. A obra está inserida no panorama da literatura modernista que sempre buscou a valorização do nacionalismo através da exploração de temáticas voltadas para os elementos mais representativos da cultura brasileira.

Essa massa de índios, brancos, negros, mulatos, cafuzos e caboclos criou a etnia brasileira, um dos povos mais criativos do mundo. Temos ao mesmo tempo ingredientes de anarquia, jeitinhos, bondade, religiosidade, malandragem, adaptabilidade, indisciplina, autoritarismo, alegria, sensualidade... Apesar de todas as fusões de matrizes somos um dos povos mais homogêneos linguística e culturalmente da Terra. Concordando com Darcy Ribeiro, somos uma “nova Roma”, tardia e tropical. Somos um país matizado com todas as cores, ricamente diversificado em sua cultura.

BIBLIOGRAFIA:

CASTELLS, Manuel. O Poder da Identidade. Trad. Klauss Brandini Gerhardt. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

CEVASCO, Maria Elisa. Dez Lições sobre Estudos Culturais. São Paulo: Boitempo, 2003.

CHAUÍ, Marilena. Cultura e democracia. Salvador: Secretaria da Cultura, 2007. Coleção: Cultura é o quê?

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução: Tomaz Tadeu da Silva; Guaraciara Lopes Louro. Rio de janeiro: DP&A, 2002.

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. São Paulo: Companhia de bolso, 1995.

RIBEIRO, João Ubaldo. Viva o povo brasileiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.