ÚLTIMOS ACORDES:
UMA ANÁLISE DO POEMA DE JOSÉ ILDONE

Camila da Fonsêca Aranha

Resumo: O presente trabalho fundamenta-se na apresentação de uma análise literária do poema Últimos Acordes, do escritor paraense José Ildone, de acordo com o embasamento teórico-metodológico de Massaud Moisés, José Guilherme Fernandes, Francisco Paulo Mendes, Ezra Pound, Jorge Koshiyama e Alfredo Bosi, visando correlacionar tais teorias poéticas com a análise em si, assim como correlacionar as temáticas presentes no referido poema com a discussão teórica desenvolvida no decurso da disciplina Literatura Amazônica ? ministrada ao 4º ano do curso de Letras ? Licenciatura Plena em Língua Portuguesa pelo professor Msc. José Denis Bezerra.
Palavras-chave: Análise poética. José Ildone. Literatura amazônica.


1 ? INTRODUÇÃO

A recorrente problemática entre questões terminológicas e de nomenclaturas literárias perpassa tempos remotos e permanece no universo contemporâneo. A querela atual que aqui nos interessa diz respeito ao constante embate com relação à denominação mais adequada ao tipo de literatura fabricado na Amazônia e/ou no Estado do Pará, visto que o que é questionado é o ponto de partida para determinar a nomenclatura: se deve-se partir do local ou do universal.
Teóricos como Silvano Santiago (apud Fernandes, 2005: 180) afirmam que é necessário encontrar o "entre-lugar" de nosso discurso, isto é, encontrar o ponto de equilíbrio entre o universal e o local; nas palavras de José Guilherme Fernandes, "[...] jogo fluente que parta da universalidade colonizadora e etnocêntrica para a verdade da universalidade universal" (2005: 181). N?outros termos, o mais adequado e proporcional para se encontrar a nomenclatura mais adequada de uma literatura local, sem que a deixe excluída do mais universal, é buscar um termo que exponha a identidade regional, mas, simultaneamente, faça a correlação com o nacional.
Intentando contemplar tais aspectos, Paulo Nunes (apud Fernandes, 2005: 181) e Pantoja (2005: 182) manifestam-se quanto à terminologia mais adequada relacionada aos estudos literários das obras amazônicas. Paulo Nunes, em seu ensaio intitulado Literatura paraense existe?, afirma que "a expressão literatura paraense, além de ser acanhada demais, fere a universalidade, princípio básico a qualquer manifestação que se deseja artística" e que a produção literária de autores paraenses não pode ser designada apenas como "exótica, regional, incapaz de difundir sentimentos universais". Nunes conclui postulando que, se fôssemos aplicar denominações pátrio-adjetivas a cada região, teríamos uma suprafragmentação da Literatura Brasileira, optando, então, pelo termo Literatura brasileira de expressão amazônica. Pantoja, ao seu turno, em seu ensaio Não existe uma literatura paraense?, acredita justamente no oposto de Nunes:

Não se pode, em nome do desejo de universalização, suprimir o regional. O universal não existe sem o particular, o nacional não existe sem o regional, de modo que, em nome do primeiro, não se pode ignorar o segundo.

Pantoja defende, pois, a nomenclatura Literatura Paraense em detrimento daquela cunhada por Nunes em virtude de acreditar que é necessário particularizar o universal de alguma maneira, seja ela por meio do termo cunhado por Nunes (Literatura brasileira de expressão amazônica) ou pelo próprio nome Literatura Paraense, haja vista que ambos particularizam o universal ao designar literatura brasileira (não é a francesa ou a norte-americana, por exemplo) ou literatura paraense (não é a fluminense ou a maranhense, por exemplo).
Portanto, como tentativa de sanar essa querela, José Guilherme Fernandes propõe não qual seja o termo mais adequado, mas sim o método mais apropriado para escolher qual seria o melhor termo. Ele afirma que é necessário que levemos em consideração as noções de identidade e de alteridade, pois "a identidade traz a marca de um discurso coletivo, que oblitera vozes que não se enquadrem nele, o que torna o conceito de identidade uma alteridade" (2005: 183). Ou seja, o que importa é que tenhamos consciência de que mesmo tratando-se de uma literatura mais específica, geograficamente tratando, ela também irá tratar de temas e assuntos universais, ocorre que, em virtude de suas peculiaridades locais (valores, sentimentos e culturas específicos) o modo como irá tratá-los é que irá divergir, ser diferente de região para região.
Dessa maneira, é possível afirmar, conforme perceberemos de modo mais detalhado na análise poética propriamente dita, que o poema Últimos Acordes de José Ildone possui um discurso universal, sendo ele concretizado mediante aspectos regionais, isto é, de acordo com características paraenses, e, na maioria das vezes, mais especificamente vigienses ? haja vista que foi em Vigia que o poeta nasceu, cresceu e tem a cidade como principal elemento de sua produção artística.
Assim sendo, é justamente esse discurso universal concretizado de maneiras diferentes que será analisado neste artigo, atentando, sempre, para o que de fato é importante para a análise de um texto poético: a sua essência. É claro que não apenas será analisada esta querela no poema de Ildone, mas também todos os aspectos pertinentes de análise de poesia, conforme as concepções teóricas de Moisés, Fernandes, Paulo Mendes, Pound, Koshiyama e Bosi ? como já mencionado outrora.
Como ponto de partida da análise, seguiremos o que ensina Massaud Moisés (2002: 41), isto é: "A análise de um texto poético deve basear-se em sua essência, não em sua forma [...]", mesmo que, em certos momentos, possamos comentar acerca da estruturação de Últimos Acordes.


2 ? BIOGRAFIA DO POETA

José Ildone Favacho Soeiro, que nasceu em Vigia ao ano de 1942, é poeta, prosador e professor de Língua Portuguesa e Literatura luso-brasileira, tendo estudado no Grupo Escolar Barão de Guajará, em Vigia, e depois, em Belém, no Seminário Metropolitano, no Colégio Estadual Paes de Carvalho e na Universidade Federal do Pará.
Formado em Letras no ano de 1976, José Ildone não apenas divulgou a Vigia Brasil afora, como também apoiou inúmeras atividades sócio-culturais da cidade (dirigiu a Sociedade Literária e Beneficente Cinco de Agosto e a Liga Esportiva e outras entidades locais) e lecionou durante décadas no local. Também exerceu influente carreira política no município: foi secretário municipal, vereador, vice-prefeito e prefeito, em eleições diretas. Um verdadeiro amante e defensor de sua terra natal, foi eleito Professor do Ano e Vereador do Ano, além de ter seu nome aposto em uma escola municipal de Vigia.
Na capital do Estado, Belém, vem colaborando por várias décadas em jornais e revistas: Folha do Norte, A Província do Pará, O Liberal, Mensagem, Gol, Aspectos. Em 1981, ingressou na Academia Paraense de Letras (Cadeira nº 31), substituindo o desembargador Inácio de Souza Moita. Em 1987, colaborou com a TV Cultura na realização de um documentário sobre a cidade de Vigia e, no mesmo ano, foi homenageado pela Escola de Samba Estação Primeira da Vigia, com o samba-enredo José (Poeta) Ildone.
Ademais, Ildone participou de encontros e congressos no Pará, Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília, além de ter recebido convites para cursos de Administração Pública na Espanha e nos Estados Unidos. Diversos de seus poemas foram musicados e apresentados em público, em forma de jogral, na cidade de Belém e de Vigia.
Dentre suas obras, José Ildone publicou, no gênero poesia, Tiradentes: Sangue Derramado pelo Ouro da Liberdade e Canto no Campo (1974 - 1º lugar no Concurso da Policia Militar do Estado do PA, nível universitário e 3º lugar no I Festival de Música e Poesia Universitária, respectivamente); Chão d?Água (1979 - Prêmio Vespasiano Ramos, da Academia Paraense de Letras, gênero poesia; leitura nos vestibulares de 1989 a 1991); Luas do Tempo (1983); Romanceiro da Cabanagem (1985); A Hora do Galo e Trilogia do Exílio (1987).
Em prosa, o escritor vigiense produziu: História da Imprensa Oficial do Pará (1985); O Retorno às Cavernas (1989 ? folhetim, 48 capítulos, publicado no suplemento semanal "Aqui Belém", do Jornal O LIBERAL); Maria Nativa (1989/1990 ? folhetim seguinte, interrompido pelo Plano Collor); Introdução à Literatura no Pará (1990 ? co-autores: Clóvis Meira e Acyr Castro); Noções de História da Vigia (1991).
A respeito da poética de Ildone, mais especificamente acerca de Chão d?Água, Abguar Bastos (apud Meira, Ildone e Castro, 1990: 231) assim a descreveu:

Seu talento e sua ourivesaria vocabular não somente iluminam: Poeta de raça, eis aí. Ritmo na cadência dos tambores. Em se tratando de terras e mares, sensações de ondas cadenciadas [...] As jóias poéticas são muitas [...]. A saga das Vigilengas rescende às alegorias das epopéias mediterrâneas. Vai ao clássico-gongórico, num lampejo [...].

Ainda acerca da produção de Ildone, o acadêmico gaúcho Lothar Hessel (apud Meira, Ildone e Castro, 1990 : 231) afirma: "Telúrica poesia, a desse marajoara polimorfo, refletindo muito de perto as ambiências do grande vale, mas também transmutando-se pelo dom da grande poesia, apanágio de bem menos gente do que a gente pensa".
Em síntese, o que Bastos e Hessel comentam acerca da poética de José Ildone é justamente o que será discorrido na análise de Últimos Acordes, retomando à proposição inicial já mencionada: apesar da poesia de Ildone possuir fortes traços locais da cidade de Vigia, ela também apresenta os aspectos gerais que toda e qualquer poesia tal qual seja apresenta ? volta-se, pois, à querela local x universal.

3 ? CONTEXTUALIZAÇÃO NA LITERATURA

Ao analisarmos a poética e, consequentemente, a produção de José Ildone, podemos perceber que ela não possui a maior parte e as principais características do que se considera de Poesia Moderna, em virtude dela se encaixar muito mais na concepção de Poesia Contemporânea, conforme as exposições de Francisco Paulo Mendes (2001). Ademais, aponta Afrânio Coutinho (1999) que a partir de 1956 a literatura brasileira rompe os traços com o modernismo, acabando-se, assim, os seus últimos resquícios ? ressaltamos que Ildone produz, conforme já mencionado, seu primeiro trabalho de poesia em 1974.
O modernismo em poesia, segundo apresenta Coutinho (1999), é dividido em três fases, a saber: I ? fase de ruptura, ou modernismo stricto sensu, (1922-1930), que visava, como o próprio nome sugere, "a libertação da poesia das fórmulas e dos temas acadêmicos, para que se fizesse atual" (COUTINHO, 1999: 45); II ? fase de extensão de campos (1930-1945), que se preocupava em voltar-se para o homem e seus problemas como ser individual ou social; III ? fase esteticista (a partir de 1945), que traz à tona a questão da disciplina e pesquisa relacionadas com a expressão.
Caso fôssemos classificar a poética de José Ildone como moderna, ela se encaixaria mais na terceira fase do Modernismo, uma vez que não há, em sua poesia, intenções de libertar-se de fórmulas, estruturas e/ou temas acadêmicos e muito menos se preocupa sua poesia em discorrer acerca dos problemas intra e intersubjetivos do homem.
Apesar da poética de Ildone dar bastante ênfase à forma e a uma escolha vocabular bastante refinada, ela também não pode ser definida como moderna da terceira geração, pois, correlacionando com o dizer de Coutinho supracitado (acerca dos últimos resquícios do modernismo aparecerem até 1956, aproximadamente), ela possui traços marcantes da poesia contemporânea, de acordo com o que defende Francisco Paulo Mendes (2001), conforme veremos a seguir.
O entendimento de Paulo Mendes (2001) acerca da poesia contemporânea, que encaixa-se na poesia de José Ildone, é o de que todo poeta é um homem de seu tempo, retratando, pois, em sua poesia, não apenas a realidade na qual está imerso, como também, o seu drama interno, espiritual. Para tanto, o poeta utiliza-se de uma linguagem e uma forma (estrutura) poética adequadas à matéria de sua poesia; essa é a questão fundamental para que um poeta não se submeta ao convencionalismo, estabelecendo suas escolhas como princípios e leis, uma vez que deve ele apenas ser fiel à matéria poética com a qual trabalha, tendo "como seu único princípio a procura incansável da forma adequada à matéria da sua poesia" (MENDES, 2001: 195).
Assim sendo ? e tendo em mente que a poesia contemporânea caracteriza-se pela busca do poeta por um equilíbrio e consolidação poéticos por meio da utilização de todos os recursos já existentes, sejam eles de origem Clássica, Romântica, Parnasiana, Simbolista ou Moderna ?, mesmo que, aparentemente, os poemas de José Ildone possam demonstrar um retorno ao passado, mais especificamente às escolhas poéticas parnasianas, de acordo com o que postula Mendes, fica claro que, na realidade, o fato de Ildone ter optado em escrever do modo como escreveu, utilizando os recursos amplamente de que se serviu o Parnasianismo, em nada exclui a veracidade de se afirmar que sua produção é contemporânea, uma vez que é justamente isso que caracteriza esta poesia: essa mistura, mescla entre os recursos apresentados e excessivamente utilizados no passado com aqueles mais atuais, atingindo, assim, a plenitude poética.
Em síntese, afirma Mendes (2001: 194) que:

O que pressentimos, certamente, é nos dirigimos para um momento de plenitude poética onde vai consumar-se, de modo perfeito e integral, toda a poesia que até agora tem jorrado, dos românticos revolucionários aos contemporâneos revolucionários, exuberante, e tumulturiamente.

E acrescenta (2001: 195):

A questão não é discutir se o poeta pode ou não pode versificar à antiga, e sim saber se a sua poesia exige ou não, no momento, essa versificação, se pela sua matéria ela pede para si uma forma ordenada e disciplinada. Como toda linguagem, o verso tem que ser adequado à natureza da matéria que ele exprime.

Como podermos verificar de modo mais concreto posteriormente, por meio da leitura e análise de Últimos Acordes, José Ildone se utiliza bastante de uma linguagem mais rebuscada e trabalhada, característica marcante do Parnasianismo, entretanto não preocupa-se tanto com a estruturação do poema, que não apresenta uma forma canônica parnasiana, como o soneto, ou outra qualquer tipificada; Ildone é livre para escrever do modo que achar mais adequado para expressar o teor de seu poema.
Define Paulo Mendes que o mundo do poeta contemporâneo é o mundo supra-real, responsável por os fenômenos do mundo exterior e do mundo interior. Para tanto, afirma o professor (2001: 189), "o poeta deve praticar uma liberdade total do espírito, uma expansão do eu, que não restringe mais as suas fronteiras e tende a dilatar-se até o infinito", fazendo desaparecer o dualismo existente entre o "eu" e o Universo.
Por fim, de acordo com o que aponta Alfredo Bosi (2006), reconhecer a contemporaneidade não significa cortar as linhas que articulam a sua literatura com o Modernismo, mas apenas identificar as novas configurações históricas que exigirão novas experiências artísticas; um poeta é, pois, um homem de seu tempo, e jamais devemos nos esquecer disto.

4 ? ANÁLISE DO POEMA

Últimos Acordes

Quando for improdutivo estarei velho
e então senhor das minhas horas.
O tempo não me dará mais ordens
nem as lembranças me agitarão.
Bastará um sopro e eu me arredarei
de glórias e cansaços.
Apenas uma interrogação teimosa servirá
as refeições
me fará ouvir as músicas imortais
tentará convencer-me
de que há seiva pulsando em mim
e o pensamento conserva ainda
seus grilhões com a vida.

Em Últimos Acordes, poema pertencente à obra Luas do Tempo, podemos perceber como temática central, até mesmo fazendo a correlação com o título do poema, a questão da aproximação da morte e as consequências dessa aproximação, além de ser possível fazermos uma correlação entre velhice x morte x improdutividade, uma vez que não sabemos ao certo se o eu-lírico será velho quando for improdutivo porque a morte se aproxima ou se será velho quando for improdutivo literariamente tratando ? quando não for capaz e/ou não conseguir mais escrever, produzir.
Contrário senso, de acordo com Chevalier e Gheerbrant (2000), em seu dicionário de símbolos, velhice é algo positivo, visto que denota sabedoria, tratando-se de uma prefiguração da longevidade, longo acúmulo de experiência e de reflexão, representando uma imagem imperfeita da imortalidade. Esse entendimento, entretanto, não é aquele que podemos verificar no poema de Ildone; percebemos, pois, que o poeta pega um símbolo consagrado universalmente de modo positivo para, em suas especificidades locais, denotar algo negativo.
Dialogando com Bosi (1996), no momento de interpretação de um texto, a análise hipermediadora é resultante de um intenso e atual trabalho de pesquisa com relação à história das representações e das mentalidades. Em suas palavras (1996: 42): "Tudo faz sentido na estranha lógica do caos contemporâneo diante do qual deveríamos reagir como o estóico Espinosa: não rir nem chorar, mas compreender".
A seu turno, para analisar a questão da emoção e do pensamento na poesia, Massaud Moisés (2000: 168), estabelece que:

Para situar adequadamente o problema, temos de analisar a emoção impressa no objeto literário, não na mente de quem o produziu ou de quem se entregou à sua fruição. Importa, não a emoção de que o poema se origina ou que desperta, mas a emoção presente no poema como um dado relativamente concreto: o fenômeno poético, expresso no poema, envolve naturalmente a emoção [...].

Assim sendo, diz o eu-lírico que quando ele for improdutivo estará velho e será o senhor de suas horas, isto é, ele é quem ditará seus afazeres, horários, compromissos, não mais sendo obediente ao tempo, às responsabilidades, mas fazendo apenas o que bem entender e ao tempo que achar conveniente, não sendo perturbado por lembranças do passado ? do tempo em que era produtivo e em que obedecia ao tempo. Além disso, o tal "sopro" mencionado no poema diz respeito, em uma hipótese, a própria morte, pois com este sopro ele se afastará das glórias e cansaços, se desligará do mundo real.
No que concerne ao tempo, Chevalier e Gheerbrant (2000) o definem como o elemento que "simboliza um limite na duração e a distinção mais sentida com o mundo do Além, que é o da eternidade (p. 876)". Ademais, sair do tempo (e então senhor das minhas horas/O tempo não me dará mais ordens) significa sair completamente da ordem cósmica para entrar em outra ordem, em outro universo. Entretanto, novamente encontramos uma denotação um tanto quanto diferente entre a definição de um símbolo conforme os autores franceses e a significação que ele assume no poema: percebemos que, no poema, esta desobediência e fuga ao tempo estão postas muito mais com uma significação metafórica do que como uma fuga propriamente dita, conforme definição do dicionário.
Quanto à interrogação teimosa a que se refere o eu-lírico, podemos compreendê-la como sua própria dúvida em saber se o referido sopro já chegou, isto é, a dúvida em saber se há morte ou há vida dentro de si, se ele está vivo ou está morto. E será justamente essa dúvida, essa suspeita, que o fará continuar com as atividades cotidianas ("servirá as refeições me fará ouvir as músicas imortais"), pois ele não sabe ao certo se está morto, mas também está na dúvida se, de fato, está vivo: uma constante querela.
É interessante discorremos acerca do símbolo "seiva". De acordo com Chevalier e Gheerbrant (2000), seiva simboliza essência, elixir da vida e da imortalidade. Logo, ao questionar-se se ainda há seiva pulsando em si, o eu-lírico questiona-se se ainda tem sua essência, se ainda vive, mas não literalmente tratando, mas sim de modo metafórico.
Últimos acordes pode ser interpretado desse modo também: muito mais do que a dúvida de estar vivo ou morto literalmente tratando, o eu-lírico questiona-se se sua velhice não o deixa morto em virtude de estar improdutivo, incapaz de ser útil, de produzir.
E ao falarmos em querela, nos remetemos à querela mencionada no início deste trabalho local x universal. A temática central abordada por Ildone em Últimos Acordes não é específica da cidade de Vigia ou até mesmo do Estado do Pará; a morte, em si, é universal, sendo tematizada em um sem número de produções, sejam poemas ou prosas. Acontece, entretanto, que os recursos utilizados pelo poeta, apesar de a primeira vista não causarem muito impacto, são locais: o próprio código utilizado ? a Língua Portuguesa ?, e as escolhas vocabulares denotam essas especificidades locais.
A esse respeito, e coincidindo com o que Paulo Mendes defende por ser a poesia contemporânea, coloca Bosi (1996: 45) que:

Então cada imagem [...] nos revelará um sentimento delicioso e pungente, o sentimento que chamou o poeta e os seus leitores para um presente denso, único, irrepetível, embora a sua aparência possa coincidir com as mil e uma versões que do mesmo tema deram poetas de outros tempos e lugares. [...] A porta que abre para a tradição literária, por mais pistas de intertextos que faculte ao crítico, não deverá fazê-lo esquecer que cada poema novo, forte e belo é um ato diferenciado de elocução, ato de conhecimento, e não mero re-conhecimento do que já foi sentido, imaginado e dito.

Jorge Koshiyama (1996), por sua vez, nos auxilia a diferenciar os termos poética, poesia e poema, definindo o primeiro como o fazer, o criar, "o estudo da criação poética em si mesma". Logo, ao analisarmos a poética de José Ildone, e mais especificamente de Últimos Acordes, percebemos que ele prioriza uma linguagem mais rebuscada, mais trabalhada, daí a sua semelhança com a escola parnasiana, mas que, contudo, preocupa-se não em descrever objetos ou falar do trabalho de escrever poesia ? tal qual faziam os parnasianos ? mas sim em tratar de temáticas mais reais e atuais ? no caso do poema em questão, é abordado o tema da aproximação da morte e do comportamento do eu-lírico quanto a isso, conforme já mencionado.
É possível, ainda, correlacionarmos a temática do poema de Ildone com a concepção de lirismo apresentada por Koshiyama (1996). Ora, se o lirismo é emoção, pungência e o caminho em que se resgata a memória de uma unidade, saber se estamos vivos é sentir que estamos a caminho, isto é, em viagem. Claro que não é pelo fato de existir a dúvida entre vida e morte no poema que retira o lirismo existente nele; essa dúvida apenas aguça, pois, o seu lirismo, nesse momento, enquanto libertação da experiência humana.

5 ? CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após exaustiva análise do poema Últimos acordes, do paraense José Ildone, pudemos verificar as conceituações teórico-metológicas mencionadas, bem como perceber a contemporaneidade do poema.
Conforme nos ensina Ezra Pound (2006), para estudar poesia é necessário um exame cuidadoso e direto da matéria e constante comparação de uma obra com outra, por assim dizer.
Logo, buscou-se, nesse trabalho, analisar o poema de Ildone conforme diversos entendimentos, estabelecendo comparações e sugestões de análise, sem, em nenhum momento, estabelecer a análise apresentada com a única possível, como verdade absoluta, mas sim como uma hipótese, uma possibilidade de interpretação sob um determinado prisma.

6 ? REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BOSI, Alfredo. História Concisa da literatura brasileira. 43ª ed. São Paulo: Cultrix, 2006.

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos : (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números). 15ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000.

COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil, volume 5: era modernista. 5ª ed. São Paulo: Global, 1999.

FERNANDES, José Guilherme dos Santos. Literatura brasileira de expressão amazônica, literatura amazônica ou literatura da Amazônia?. Revista MOARA, n. 23, jan/junho 2005. Belém: CLA/UFPA, 2005.

KOSHIYAMA, Jorge. O lirismo em si mesmo: leitura de "poética" de Manuel Bandeira. In: BOSI, Alfredo (org.). Leitura de poesia. São Paulo: Ática, 1996.

MENDES, Francisco Paulo. O poeta e a rosa: primeira notícia sobre a poesia de Mário Faustino. In: NUNES, Benedito (Org.). O amigo Chico: fazedor de poetas. Belém: SECULT, 2001.

________. Notas para uma conferência sobre poesia contemporânea. In: NUNES, Benedito (Org.). O amigo Chico: fazedor de poetas. Belém: SECULT, 2001.

MOISÉS, MASSAUD. A criação literária: poesia. 14ª ed. São Paulo: Cultrix, 2000.

________. A análise literária. 13ª ed. São Paulo: Cultrix, 2002.

POUND, Ezra. ABC da literatura. 11ª ed. Tradução de Augusto de Campos. São Paulo: Cultrix, 2006.