Armando Januário dos Santos [1]

Marco Antonio Matos Martins [2]

Resumo: a partir de uma análise crítica da obra Cacau, do escritor baiano Jorge Amado e dos diversos conceitos acerca do patriarcado, o presente estudo relaciona a atividade do sexo pago ao sistema de dominação dos grandes latifundiários, em uma perspectiva de produção e lucro. Neste cenário, as mulheres não possuem escolha, senão enveredar por dois caminhos: serem mães e esposas de homens que, diferentes delas, possuem direitos ilimitados e poder quase absoluto, ou serem desvirginadas antes do casamento, e a partir daí, vistas como mulheres desonradas e empurradas à prostituição. Os resultados apontaram para as prostitutas como grupo excluído, revelando que tanto elas como as profissionais do sexo da atualidade, apesar de mais de meio século de distância, sofrem práticas discriminatórias similares, pois o patriarcado persiste.

Palavras-chave: prostituição, patriarcado, sexo, gênero, discriminação.

Abstract: from a critical analysis of the book Cacau, by Bahian writer Jorge Amado and of several concepts about the patriarchy, this study relates the activity of sex paid to the system of domination of the grand landowners, in a perspective of production and profit. In this scenario, women have no choice but to follow two paths: being mothers and wives of men who, different from them, have unlimited rights and almost absolute power, or lose virginity before marriage, and so, they be seen as dishonorable women, being forced into prostitution. The results pointed to prostitutes as excluded group, revealing that they and sex workers today, despite more than half a century away, suffer similar discriminatory practices because patriarchy persists.

 

Key-words: prostitution, patriarchy, sex, gender, discrimination.

Introdução

Designada pelo senso comum a profissão mais antiga da humanidade, a atividade do sexo é alvo de discussões sobre sua legitimidade enquanto profissão, apesar do avanço no campo dos direitos humanos. Ainda no presente século, a sociedade brasileira, envolta em representações pautadas pelo conservadorismo, vê nas “garotas de programa” uma afronta a ideologia cristã burguesa que evoca o casamento monogâmico como modelo a ser seguido. Porém, o que se observa é um grande número de pessoas – entre elas, homens e mulheres casados – relatar a procura pela prostituição como via de escape da rotina dos seus relacionamentos, ou como uma maneira de conhecer novas formas de sentir prazer. Por outro lado, estes mesmos sujeitos não admitem a possibilidade de avanços significativos nas relações trabalhistas das profissionais do sexo, seja na forma de associações deste grupo, passando pela formação de sindicatos e chegando a legislações específicas que garantam direitos, a exemplo do Projeto de Lei 4211/2012, que divide opiniões no cenário nacional.

Feitas essas primeiras considerações, o presente estudo recorre a uma obra fictícia, a qual reflete o pensamento vigente de sua época: as mulheres “de família” estavam destinadas ao casamento e a maternidade, enquanto que as “mulheres-damas” eram para o gozo sexual clandestino e restrito a quem podia pagar ou de alguma forma beneficiá-las.

Cacau (1933), segundo romance do escritor baiano Jorge Leal Amado de Faria (1912-2001), traduzido em diversos idiomas e tendo a primeira edição – cerca de dois mil exemplares – esgotada em um mês, narra a dinâmica socioeconômica na região cacaueira envolvida nos moldes capitalistas do patriarcado rural: exploração dos trabalhadores rurais pelos coronéis do cacau, situação de pobreza e miséria a qual a classe trabalhadora brasileira – em especial, a camponesa – se encontrava na primeira metade do século passado, e, principalmente, o olhar conservador e machista exercido pelas classes dominantes sobre as mulheres. Tudo isso com a cooperação do governo getulista, iniciado em 1930 e que se estenderia, à custa de golpes e escândalos, sem interrupções até 1945. O então escritor ainda despontando com a obra O País do Carnaval (1932), militante da causa comunista não teve dúvidas: diante da Assembleia Constituinte de maio de 1933 – para muitos comunistas farsa e manipulação, que acabou resultando na Constituição de 1934 – o jovem nascido na fazenda Auricídia, distrito de Ferradas, município de Itabuna (FUNDAÇÃO CASA DE JORGE AMADO), recorreu as letras como instrumento de denúncia e protesto ante a realidade social experimentada pelas classes desfavorecidas. Segundo ele próprio escreveu na epígrafe de Cacau: “tentei contar neste livro, com um mínimo de literatura para um máximo de honestidade, a vida dos trabalhadores das fazendas de cacau do sul da Bahia. Será um romance proletário? (AMADO, 2000, IX)”.

Breve resumo da obra

Proletária ou não, a narrativa impressionou o público leitor por investir em uma problemática pouco abordada naquele momento histórico: as diversas formas de exploração do homem. O protagonista José Cordeiro, que só irá revelar seu nome ao fim da trama, filho de um industrial em grave crise econômica, vai para a Bahia, tentando o sucesso que não conseguira em sua terra natal, São Cristóvão, Sergipe. Infelizmente, a experiência trabalhista que ele vivencia é das mais negativas: passando a trabalhar com o pior dos coronéis – Mané Frajelo – José, apelidado de Sergipano, conhece a fome e as privações de uma vida miserável e cheia de perigos e desafios. Percebe a escravidão no regime de trabalho, e, com o amor de Mária, filha do coronel, vê a oportunidade de deixar as roças de cacau e se tornar ele mesmo, senhor de terras e de gente. Porém, a sua consciência política não lhe permite e ele tenta organizar uma greve, a qual fracassa antes mesmo de iniciar. O motivo? A exploração é tão grande que, quando ele e seus companheiros estão articulando o movimento, são informados da chegada de mais de trezentas pessoas ‘flageladas’ – futuros trabalhadores em condições mais miseráveis e certamente dispostos a colher cacau por salários ainda mais baixos. José, então, percebe que terá de escolher entre o amor de Mária e a luta por condições de trabalho melhores. Ele não hesita: parte para o Rio de Janeiro, para se engajar de vez a causa socialista, deixando Mária destinada a casar com o noivo, segundo ela própria “um simples almofadinha (AMADO, 2000, p. 128)”.

O patriarcado (rural) e sua conceituação diversa

Antes de adentrar a discussão proposta pelo título, faremos aqui uma breve análise do conceito de patriarcado rural, pois há uma importância singular em especificar as noções do referido regime político, social e cultural, para daí relacioná-lo ao ofício do sexo.

A grosso modo, o termo patriarcado advém do grego pater e aponta para um território sob domínio de um governante, o pai ou patriarca. Porém, conforme o mitólogo Joseph Campbell, o povo hebreu já utilizava o termo pai para indicar seu deus – Iavé, Javé ou Jeová – em contraposição a Deusa Mãe Terra, divindade feminina cultuada pelos demais povos (CAMPBELL, 2002, p. 277). Desta forma, se os povos que adoravam o sagrado feminino o percebiam em toda a terra, os hebreus acreditavam em um deus tribal e territorialista, masculino e autoritário, possuidor de um espaço não-global e rigorosamente delineado, a Terra Prometida, “uma terra que mana leite e mel”[3] a ser conquistada da mão dos demais povos, para que ali pudesse residir com sua população previamente escolhida.

Contemporâneo de Jorge Amado, Gilberto Freyre (1900-1987), lançou olhares acerca da família patriarcal em sua obra Sobrados e Mucambos (1936):

Nestas páginas, procura-se principalmente estudar os processos de subordinação e, ao mesmo tempo, os de acomodação, de uma raça a outra, de uma classe a outra, de várias religiões e tradições de cultura a uma só, que caracterizam a formação do nosso patriarcado rural e, a partir dos fins do século XVIII, o seu declínio ou o seu prolongamento no patriarcado menos severo dos senhores de sobrado urbanos e semi-urbanos(...)[4].

 

Percebe-se que o pensamento freyreano condiciona a noção de patriarcado aos processos familiares e de subordinação entre classes. A partir disso, é possível inferir que tais processos não se restringem apenas a escravidão nos moldes da exploração da mão de obra africana, mas também na abusiva utilização do labor assalariado, impondo condições subumanas àqueles que vendem sua força de trabalho. Com efeito, Gilberto Freyre nasceu poucos anos após a abolição da escravidão, na efervescência da discussão política sobre os rumos que a República Velha tomaria. Sem o braço escravo do africano, a mão de obra então passou a ser constituída por imigrantes e migrantes[5], trabalhando em condições penosas nas lavouras de café, açúcar e cacau, ganhando baixos salários e sofrendo todo o tipo de assédio. Freyre (2006) também admite que “a formação patriarcal do Brasil explica-se, tanto nas suas virtudes como nos seus defeitos, menos em termos de “raça” e de “religião” do que em termos econômicos, de experiência de cultura e de organização da família, que foi aqui a unidade colonizadora”.[6] Nesse ínterim, ele encarou o patriarcado como um sistema mais próximo da economia. Além disso, apontou para as particularidades rurais do mesmo, mencionando o Norte-Nordeste brasileiro como o “patriarcalismo nortista, de Pernambuco e do Recôncavo Baiano, onde a terra se apresentou excepcionalmente favorável para a cultura intensa do açúcar e para a estabilidade agrária e patriarcal”.[7] Este ponto de vista é relevante nesta pesquisa, pois conforme veremos aqui, a posse da terra tem importância fundamental para a manutenção das relações no patriarcado rural, sejam elas políticas ou de qualquer outra sorte.

Já para Vainfas (1989), o patriarcado rural representa o “eixo fundamental das relações familiares na Colônia” e “seria antes uma grande bandeira dos moralistas da época moderna, os mesmos, aliás, que defenderam a excelência da família conjugal para os povos da cristandade”.[8] Com isso, ele fez referência a família como embrião formador deste tipo de dominação. Neste aspecto, ele e Freyre convergem, pois o segundo também percebe na família um dos eixos mais importantes para a viabilidade da existência dos patriarcas, embora se aprofunde no aspecto sexual: “a zona agrária, desenvolveu-se, com a monocultura absorvente, uma sociedade semifeudal – uma minoria de brancos (...) dominando patriarcais, polígamos (...), lavradores, agregados (...)”[9]. Neste ponto, Freyre adiciona a dimensão da sexualidade como um requisito primário para a instituição do domínio patriarcal, haja vista alguns dos atributos do chefe neste sistema de dominação serem a macheza e a virilidade em subjugar sexualmente diversas mulheres.

Outros autores possuem visões diversas. Mattoso (1992) aponta para a formação de “grupos extensivos”[10] sem a rigidez do modelo patriarcal, embora com elementos característicos deste, como, por exemplo, “a presença dos agregados”[11].

Já para Brügger (2002), Gilberto Freyre

não atribuía à família patriarcal um predomínio quantitativo na população brasileira. O que ele afirma é a existência de uma sociedade na qual os valores patriarcais são os dominantes, embora não sejam os únicos. O que estava em questão não era necessariamente o sexo do chefe de família, mas a representação do poder familiar.[12]

 

A estudiosa em foco admitiu a predominância do modelo patriarcal proposto por Freyre, mas não a existência única dele. Pelo contrário, percebeu o patriarcado convivendo – não harmonicamente – com outras relações de poder. Por outro lado, Machado (2006), conceitua o patriarcado enquanto:

[...] mecanismo eficiente na constituição e reprodução da desigualdade no interior do vilarejo, e mesmo no interior de cada domicílio. Por esta razão, o desejo de autonomia, e de se tornar um “pequeno patriarca”, acabava por seduzir mesmo os mais modestos, posto que sua concretização seria fonte de enriquecimento e de distinção social, portanto, de mobilidade ascendente.[13]

 

Para a referida, mesmo os mais desprivilegiados desejam ser patriarcas, haja vista esta transformação representar a inserção nos círculos sociais prestigiados e distantes da miséria. Ser patriarca, assim, distinguia exploradores de explorados, ao mesmo tempo em que definia a hierarquia social.

O comércio sexual: produção e lucro no patriarcado rural

Já vimos a dinâmica da sociedade patriarcal. Cabe apenas frisar que nela homens são dominadores, machos e viris, submetendo diversas mulheres aos seus desejos sexuais, enquanto as últimas são consideradas inferiores e feitas para o sexo e para a reprodução em suas diversas formas, seja esta reprodução de braços de trabalho, de novos patriarcas e também de novas fêmeas reprodutoras. Neste contexto, a mulher é coisificada, seja objeto de prazer, seja ferramenta para reproduzir e perpetuar a lógica patriarcalista. Aí se inscrevem as mulheres consideradas esteios da ética e moral vigente – cabendo a mulher ser esposa e mãe dedicadas e tementes ao deus cristão punitivo e perseguidor pregado pela Igreja Católica – e também as pecadoras, um exército destinado a prestar favores sexuais a tantos homens quantos as procurem, até o seu último dia de vida, com pouca ou nenhuma possibilidade de ascensão social. Estas últimas, em sua grande maioria, filhas da pobreza, crias de lavradores pobres, defloradas enquanto ainda crianças pelos senhores de terra e por seus filhos em busca de diversão, eram jogadas na sarjeta da sociedade, lhes restando apenas o ofício do sexo para a manutenção da sua existência:

quantos mananciais de carinho perdidos, quantas boas mães e boas trabalhadoras. Pobres de vós a quem as senhoras casadas não dão direito nem ao reino do céu. Mas os ricos não se envergonham da prostituição. Contentam-se em desprezar as infelizes. Esquecem-se de que foram eles que as lançaram ali.[14]

 

Desta forma, a prostituição se encaixou como peça na engrenagem do patriarcado rural. Este mecanismo, perverso em sua dominação, ao mesmo tempo em que gera novas vítimas, se alimenta delas para o deleite da classe dominante, a qual necessita de exemplos a ser ou não seguidos. Assim, as “mulheres da vida” servem para pelo menos dois fins: saciar as fantasias sexuais e também mostrar para as outras mulheres a partir das suas histórias, qual o modelo a ser odiado e desprezado. A elas, uma vez inscritas no círculo do sexo pago – na maioria das vezes, mal pago – restava se conformar com a estrada imposta e sem retorno:

além da tal rua de dois quilômetros, existia em Pirangi um beco sem saída, ao qual chamavam de rua da Lama. Apesar do lamaçal, as senhoras casadas temiam aquela rua de mulheres perdidas. – A polícia devia proibir aquilo – diziam. – Ora, a polícia é a primeira. – É mesmo, D. Rosália. Os nossos maridos vão gastar com aquelas misérias, Deus me perdoe, tudo o que ganham.[15]

 

Neste cenário, cabe a descrição realizada pelo filósofo francês Michel Foucault (1926-1984):

o casal, legítimo e procriador, dita a lei. Impõe-se como modelo, faz reinar a norma, detém a verdade (...). Ao que sobra só resta encobrir-se; o decoro das atitudes esconde os corpos, a decência das palavras limpa os discursos. E se o estéril insiste, e se mostra demasiadamente, vira anormal: receberá este status e deverá pagar as sanções.[16]

 

Dentro da estrutura patriarcalista, para a prostituição restou apenas a inserção na lucratividade e a determinação de aberração. Aquelas que atuassem nesse mercado ‘pagariam as sanções’ previstas: a maldição do discurso religioso hipócrita, aliado da conjuntura política, e a discriminação por parte das mulheres casadas, “senhoras de bem”, intolerantes com tamanha abominação: “Frei Bento falava contra elas nos sermões dos domingos. Mas frei Bento, como Zefa me explicou, era freguês [sexual] da esposa do doutor Renato.”[17]

Amado explica a seguir, passo a passo, como era produzida a prostituição na esfera da sociedade patriarcalista cacaueira:

Zefa me contou toda a história. Filha do velho Ascenço, Zilda constituía toda sua família. Trabalhavam para Mané Frajelo, ele na derruba, ela na juntagem do cacau. Moravam na beira da estrada. Todo ano, Osório, o filho do coronel que estudava na Bahia [Salvador], vinha pelas férias até a roça (...). O estudante parava o burro para olhar as coxas de Zilda, bem grossas apesar de dez anos. Um dia Osório vinha para o povoado. O velho Ascenço estava em Pirangi e Zilda arrumava a casa. Começou a chover e Osório pediu agasalho. Não respeitou os dez anos de Zilda. Tragédia de gente pobre: um pai que bota a filha para fora de casa e morre de desgosto.[18]

 

Mulheres e filhas de cacauicultores se viam em situação de dupla vulnerabilidade. Se por um lado, compartilhavam a miséria com seus maridos e pais, resultado do tratamento abusivo e da exploração da sua força de trabalho, muitas vezes eram submetidas também a exploração sexual, haja vista o principal ator do regime patriarcalista rural, ser a figura do senhor de terras. Este era respeitado e temido. Respeitado por ser o representante político local do poder nacional, grande latifundiário, autor das benesses que lhe eram convenientes para se locupletar no domínio. Temido pois era ele quem instituía e fazia cumprir as leis, não o conjunto de legislações previsto pela Constituição de 1934, mas sim aquelas de sua própria autoria, forjadas na violência dos matadores ao seu dispor, os jagunços, e na coerção.

O comércio do sexo no patriarcado rural obedecia, então, a seguinte dinâmica: produção de prostitutas a partir de situações de miséria e violação, como no caso de Zefa, imposição da moral vigente da época, a qual exigia que os pais em casos como este expulsassem suas filhas de casa e, por fim, a chegada dessas pessoas ao único local que as acolhia, as casas de prostituição. Lá, a maioria delas passaria o resto da vida. A sua mobilidade social nas poucas vezes em que ocorria era frágil, e representava a mudança para uma casa luxuosa, providenciada por um coronel que lhes exigia fidelidade enquanto durasse o seu interesse sexual, ou mesmo quando saíam da condição de exploradas para exploradoras de outras prostitutas, se tornando cafetinas e, lucrando financeiramente, aumentando também o lucro sexual dos patriarcas. Enquanto isso, o que sobrava para muitas eram doenças sexualmente transmissíveis (DSTs): “fomos para a casa das mulheres sob uma chuva miudinha. Quando entrei no quarto, Antonieta me disse: – Meu filho, não posso andar com você. Prefiro não ganhar o dinheiro. Já tô quase boa, mas assim mesmo...”[19]

O patriarcado contemporâneo: à guisa de reflexão

Apesar dos inquestionáveis avanços nos direitos das mulheres, atingidos principalmente pelas lutas dos movimentos feministas desde a segunda metade do século passado, o patriarcado ainda perdura na sociedade brasileira atual. Pode-se afirmar acerca do enfraquecimento e decadência dos seus moldes rurais, mas sua ideologia continua presente e atuante. O corpo feminino ainda é visto como objeto ao dispor das fantasias masculinas, sendo exposto na mídia em propagandas de conteúdo sexualmente provocador. Ao mesmo tempo, a mulher tem o direito de escolha ao aborto negado, em uma clara mostra do controle e autoritarismo do Estado Brasileiro imposta a subjetividade feminina. A divisão sexual do trabalho persiste, com a mulher excluída, ou pouco incluída, em profissões dominadas por homens. Quando se aborda experiências profissionais de mulheres em determinadas posições, isso não as exclui do assédio moral e da remuneração inferior ao homem no mesmo cargo e em condições similares de trabalho. E a violência doméstica perpetrada por homens contra mulheres é comum e banalizada pelos organismos da imprensa nacional.

Para Bruschini (1993), persiste o ponto de vista repressor à sexualidade feminina e o discurso de desprezo e ódio ao adultério feminino – visto como promiscuidade – ao mesmo tempo em que prossegue a exaltação da infidelidade masculina como sinal de virilidade e poderio.

Conforme Chauí (1985) “violência [é] (...) toda e qualquer violação da liberdade e do direito de alguém ser sujeito constituinte de sua própria história. Liberdade aqui entendida como ausência de autonomia”[20]. Deste modo, pode-se inferir que a violência contra a mulher precede a agressão física e se apresenta nas relações de gênero da contemporaneidade, entre outros aspectos, na negação do direito de controle do corpo, na competição em condições desiguais com os homens no mercado de trabalho e na imposição de discursos de inferiorização.

Considerações finais

O Ciclo do Cacau, iniciado pela obra que leva o nome desse saboroso fruto, foi intensamente divulgado por Jorge Amado e representou mais de meio século em sua carreira literária. Nele, o escritor baiano repercutiu as contradições e os impasses de uma sociedade imersa em discursos de falsa moralidade. Expôs a prostituição como instrumento de marginalização das mulheres, normalmente atiradas para esta labuta pelos grandes proprietários de terra e sua prole masculina, ávida em saciar suas aspirações sexuais irrestritas e perversas. Denunciou ainda a pedofilia, quando trouxe à tona relatos de iniciação sexual como os de Zefa, com apenas dez anos, levada a prostituir-se sem a possibilidade da escolha de outro destino.

Amado encabeçou a lista de escritores de sua geração ao descrever um público profundamente massacrado, exaltando a sua dignidade e a sua forma honesta em experimentar vivências amargas. Mais do que isso: ele convidou a sociedade a se despir dos seus preconceitos e enxergar nas putas, mulheres com outros caminhos possíveis, caso não tivessem suas trajetórias radicalmente desviadas. De fato, ainda hoje elas se encontram sem garantias legais dos seus direitos trabalhistas, em uma clara prova da manutenção do patriarcado aliado ao discurso religioso de vertente fundamentalista.

Com os avanços realizados por grupos feministas ao redor do globo, já não deveria haver mais espaço para visões machistas e sexistas acerca das prostitutas. Infelizmente, porém, conceitos retrógrados perduram, muitos dos quais conduzem a violência contra este grupo. Daí a importância de aprofundar mais a temática dos direitos das mulheres, em especial das profissionais do sexo.

Referências

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MACHADO, Cacilda. A trama das vontades: negros, pardos e brancos na produção da hierarquia social. (São José dos Pinhais – PR, passagem do XVIII para o XIX). 2006. Tese (Doutorado em História) – Departamento de História, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006, 280 páginas.

MATTOSO, Katia de Queirós. Família e Sociedade na Bahia do século XIX. São Paulo: Corrupio/[Brasília]: CNPq, 1988.

VAINFAS, Ronaldo. O trópico dos pecados. Rio de Janeiro: Campus, 1989.


[1] Estudante do Núcleo de Estudos de Gênero e Sexualidade / Nugsex Diadorim da Universidade do Estado da Bahia – UNEB. Graduando em Psicologia e licenciado em Letras com Inglês pela mesma instituição. Pós-graduado em Língua, Linguística e Literatura pela Faculdade Regional de Filosofia, Ciências e Letras de Candeias. Professor de Inglês do Colégio Francisco de Assis, Salvador. E-mail: [email protected].

[2] Vice-Coordenador do Núcleo de Estudos de Gênero e Sexualidade / Nugsex Diadorim da Universidade do Estado da Bahia – UNEB. Professor Assistente de Antropologia do DCH – Campus V pela mesma instituição. E-mail: [email protected].

[3] BÍBLIA, Livro dos Hebreus. Bíblia Sagrada. Trad. do Novo Mundo das Escrituras Sagradas, 1986. São Paulo: Edições Watchtower Bible and Tract Society of New York e Associação Torre de Vigia de Bíblias e Tratados, 1986. Hebreus 8, vers. 10.

[4] FREYRE, GILBERTO. Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento urbano. São Paulo: Global, 2003, p. 27.

[5] Quando nos referimos a imigrantes e migrantes, apontamos para populações vindas tanto do exterior quanto de outras partes do Brasil, respectivamente. Um exemplo de imigração é o caso de trabalhadores de várias nacionalidades, vindos ao Brasil na primeira metade do século passado para trabalhar nas lavouras de café. Por outro lado, a migração pode ser exemplificada quando populações se deslocaram de outros regiões brasileiras para as lavouras de cacau, no sul da Bahia.

[6] FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. 51 ed. São Paulo: Global, 2006, p. 34.

[7] Idem.

[8] VAINFAS, Ronaldo. O trópico dos pecados. Rio de Janeiro: Campus, 1989, p. 118-119.

[9] FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. 51 ed. São Paulo: Global, 2006, p. 33. Grifos nossos.

[10] MATTOSO, Katia de Queirós. Família e Sociedade na Bahia do século XIX. São Paulo: Corrupio: CNPq, 1988, p.12.

[11] Idem.

[12] BRÜGGER, Silvia Maria Jardim. Minas Patriarcal – família e sociedade. (São João del Rey, séculos XVIII e XIX). 2002. Tese (Doutorado em História) – Departamento de História, Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2002.

[13] MACHADO, Cacilda. A trama das vontades: negros, pardos e brancos na produção da hierarquia social. (São José dos Pinhais – PR, passagem do XVIII para o XIX). 2006. Tese (Doutorado em História) – Departamento de História, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006, 280 páginas, p. 126.

[14] AMADO, JORGE. Cacau. 52ed. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 57. Grifos nossos.

[15] Idem, p. 53. O primeiro grifo é nosso.

[16] FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Trad. de Maria Thereza da Costa e J. A. Guilhon Albuquerque. 22ed. Rio de Janeiro: Graal, 2012, p. 9-10.

[17] AMADO, JORGE. Cacau. 52ed. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 57

[18] Idem, p.54.

[19] AMADO, Jorge. Cacau. 52 ed. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 51.

[20] CHAUI, Marilena. Participando do debate sobre mulher e violência. In______: Perspectivas antropológicas da mulher. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, p. 35.