Adriana Vicente do Nascimento

Fundação Francisco Mascarenhas

Ao analisar a evolução da literatura infantil brasileira, desde o seu surgimento até os dias atuais, observa-se que ela vem se consolidando, aos poucos, de forma que as escolas brasileiras ainda não a tratam de forma satisfatória.

Essa constatação sugere uma revisão da prática docente, de modo que os professores precisam entender que a poesia deve ser abordada em sala de aula pelo viés lúdico, valorizando o texto poético como expressão artística, pois, no geral, ainda se explora a poesia a partir do seu conteúdo lingüístico.

A recepção da linguagem se dá através de vias sensoriais, envolvendo o receptor de forma total e fantástica. José Paulo Paes, com toda sua singularidade, conseguiu consagrar-se através do jogo verbal e lúdico, colocando a poesia em favor do corriqueiro, do cotidiano e criando inusitadas situações de fantasia e sonho. O poeta demonstra compreender que só dessa forma o texto literário alcança o leitor infantil.

A poesia de José Paulo Paes surge na década de 80, obra que veio para varrer de vez paradigmas que nortearam os poemas de outrora, marcados pelo pedagogismo e submissão adulta, e lançar o ludismo como foco na poesia para infância. É na perspectiva do sonho e do imagético que se enquadram os poemas de Paes, resgatando valores infantis e o respeito por esse público, que muito foi marginalizado pelas produções de décadas anteriores.

A fruição poética acontece através da interação leitor e texto, estabelecida pelo trabalho com a linguagem em que é dispensado as produções desse autor. Sons, ritmos, imagens e movimentos visuais, é nessa organização estrutural (sensorial e imagética) que o receptor integra totalmente o texto.

Nossa atenção se voltará, nessa comunicação, para dois trabalhos de José Paulo Paes: Uma letra puxa a outra (1993), composta por 23 poemas sobre o alfabeto e, Um número depois do outro (1999), que explora os números de 1 a 12, através de poemas recheados de jogos e reinvenção de brincadeiras no universo dos signos (letras e números).

Os livros são caracterizados por repetições e aliterações provocando sonoridade e ritmo, fruindo assim um gostoso dinamismo que seduz o indivíduo. Daí a relevância dada a este aspecto, que torna o prazer de ler numa construção e desconstrução de sentidos, fomentando a comunicação, objetivo maior das obras literárias.

1. O jogo com a linguagem

O jogo com as palavras consta no folclore da humanidade desde tempos remotos, quando se podia gozar da companhia das amas e contadores de história, embalando-nos o sono (BORDINI, apud GOMES, 2004).

O jogo verbal faz parte de nossa história, nossa cultura, século XVIII: amas de famílias aristocratas e burguesas traziam em suas tradições esse modo de segmentar à linguagem, através de seus contos e clichês culturais. Expressividade experimentada através de quadrinhas populares, que como todo modo de cultura da época visava ensinamentos e a presença constante da voz adulta disciplinando a infância.

Contrapondo tais procedimentos, percebe-se notoriamente, na obra de Paes, a preocupação em apropriar os textos ao universo do leitor mirim, oportunizando brincadeiras feitas a partir de movimentos com fonemas e palavras, intencionando o envolvimento e a partilha com o mundo infantil. Veja como esse jogo acontece no poema destinado à letra L, por exemplo:

O L é uma letra louca

E faz a uva andar de luva

Transforma a nota mi em 1000

Cabra descobrir o Brasil.

Nesses versos apreciamos os jogos com o fonema /l/, que sugere vários sentidos. No verso inicial a repetição intencional enfatiza a letra, estimulando o ritmo "letra", "louca", trazendo sonoridade, aspecto que facilita a memorização e instiga o gosto pela leitura, constituindo ainda um dos principais atrativos na poesia para infância.

No segundo e no terceiro versos o jogo se dá com o acréscimo do mesmo fonema originando outros vocábulos "mi" em "mil", podendo ser nota musical transformada em dinheiro, "mil" e "uva" em "luva", "cabra" em "Cabral". Tudo isso é sugerido pela "loucura" dessa letra.

Já no último, a redução do /l/ motiva a imaginação e graça em sugerir "Cabra descobrir o Brasil?!". Pode-se verificar no desfecho uma suave mistura de humor e realidade que casa bem com a passagem do animal "cabra" por "Cabral", personagem histórico, propondo ainda, uma descoberta, já que "Cabral" não está expresso na quadra, sendo apenas sugerido.

No poema dedicado à letra /j/ também é recorrente a presença da aliteração.Veja:

__Já jantou, Jabuti? __Ora essa!

Jantei jaca e jabuticaba.

Jabuti janta depressa

Com jabuticaba e jaca.

A freqüência da letra /j/, evocando uma forte presença da infância, o correr na pronúncia das palavras, pode ser assemelhado ao trava-língua, de preferência se o poema for lido em voz alta e de maneira rápida. Pode-se ainda observar que a quadra remete para o ato de comer, necessidade básica presente no verso: "Já jantou, jabuti?", que responde: "jabuti janta de pressa". Veja que a relação entre a ação "comer" é traçada através das repetições do "J" e o contexto da quadrinha, indicado na repetição de ações. A palavra "depressa" apela para rapidez com que as palavras devem ser ditas, abrindo infinitas possibilidades através da brincadeira. Chamo atenção para a presença de animais em grande parte de seus poemas, elemento bastante presente na imaginação infantil, bem como no seu universo.

Na referida quadra, chama ainda a atenção a ilustração criada para o poema, que expressa um sorridente jabuti com o casco cheio de jabuticabas, numa sutileza que promove um diálogo entre texto e ilustração, ou seja, linguagem verbal e não verbal, possibilitando a inferência e a antecipação, recursos da leitura que favorecem a recepção.

Outra característica do trabalho de Paes é a evocação a culturas orais como parlendas, como acontece nos versos dedicados ao "X":

Quem bebeu o chá da xícara?

O chá. Mas ponha sentido:

É com x o bebedor.

Com ch o bebido.

Os sons são explorados de modo que explicitam sentidos diferentes. Com x, de "xícara", temos o "bebedor"; com ch temos o "bebido", ou seja, o "chá", destacando-se ainda traços de uma advinha, quem será o "bebedor com x?" e o "bebido com ch?" A retomada da parlenda se dá ligeiramente no verso inicial, semelhante às perguntas como a que compõe a seguinteparlenda :

Dedo-mindim

Seu vizinho

Maior de todos

Fura-bolo (...)

Cadê o bolo que estava aqui?

(...)

Esse trabalho com a linguagem surge nos poemas de Paes e ingressa na alma infantil, dando-se também com os números, que são enfocados no livro Um número depois do outro, de 1999, conforme observaremos a seguir.

2. Intertextualidade

Como sugere o título, Um número depois do outro, os poemas tematizam os números. A exploração destes se dá de forma cômica e divertida, retomando contos de fadas e cantigas. Essa intertextualidade se apresenta de forma tênue, pois as forças que antes se contrapunham, bem e mal, bruxa e fada, aparecem sob outro prisma: personagens são resgatadas apenas para fantasiar a brincadeira e envolver o leitor, na medida em que este reconhece nos poemas seres mágicos que se fazem presentes em vários poemas.

Reconhece-se em Paes elementos que embevecem a alma infantil, marcando seus textos com a presença dos sonhos veiculados nas personagens dos contos e na sua abordagem inovadora, já que as personagens vêm originando novas reflexões, principalmente no que diz respeito à inventividade e à imaginação de novos contextos, onde estão imersos as figuras dos contos. A fantasia se abre com o poema que evidencia o número 1:

Olhem bem o número 1

Não parece um soldadinho

De fuzil ao ombro?

Veja uma fileira:

11111111111

Não parece um batalhão marchando!

Só que, como é hora do almoço,

Eles vão cantando:

"1, 2, feijão com arroz.

1, 2, feijão com arroz".

No poema acima, os aspectos visuais são o destaque. De um lado da página, a ilustração, do outro o poema, harmonizando-se e tecendo sentidos. A imagem do número "1" lembra a figura de um soldado de fuzil na mão, enfatizada na comparação: "olhem bem o 1/ Não parece um soldadinho / De fuzil no ombro?".

Essa comparação retoma o clássico personagem o "soldadinho de chumbo", que encheu os sonhos de muitas mentes infantis: quem não desejou sê-lo? Quem não o incorporou em brincadeiras? Quem não o representou em desenhos? Temos ainda o resgate da canção "marcha soldado cabeça de papel..."

Nos últimos versos o escritor "costura" numa perfeita sintonia uma gostosa parlenda: "1, 2, feijão com arroz....". Essa mistura de clássico e popular transcende o que se explicita na página, convidando a criança a envolver-se na brincadeira, presente nas interrogações e expressões imperativas ("Olhem bem", "vejam agora").Faz-se necessário observar o efeito imediatista expressos nas palavras "hora" e "agora", num implícito "é hora de brincar". Tal recurso deixa em aberto nos últimos versos a parlenda para que a criança dê continuidade, deixando-se seduzir pelo poema, através da identificação emocional e afetiva, inscritas no desejo e na ânsia de brincar e sonhar. Características infantis concretizadas na ludicidade de ir "cantando" e "marchando", referenciando uma brincadeira infantil muito comum. A mesma que também vai se estendendo a outros poemas, explorando a continuidade na diversão em textos que se seguem. Veja agora o como o poeta revela o 7:

Lá se vão – escutem esta—

7 anões pela floresta.

2 a 2 de braços dados

Cada um com seu machado

Só Mestre é que vai sozinho

Pra amostrar o caminho

Pela floresta vão

Buscar lenha pro fogão

7 anões de braço dado,

Cada um com seu machado

E o 7 – olhem com cuidado –

Não parece mesmo um machado!

Novamente aparecem personagens dos contos de fada, dessa vez os anões de Branca de Neve. O destaque desse poema é o ritmo, ocasionado pelas rimas: "esta-floresta", "dado-machado", "caminho-sozinho", "vão-fogão", "cuidado, dado e machado". Vale enfocar a idéia de movimento nas ações dos anões "caminhando, indo buscar lenha" e o jogo de imagens proposto pela comparação do machado com o número 7, suavizando assim a imagem do instrumento, tornando-o no texto mais um brinquedo. Lança ainda um desafio, visualizar a simbologia, não o nome, mas o aspecto visual e representação do mesmo, reiterada na contagem dos sete anões. Há também o vocativo "mestre", condutor do grupo, transportando todo o contexto a situação inicial, Branca de Neve, já que Mestre é o nome de um dos anões, solidificando a idéia do conto de fadas, entretanto deixando-nos á vontade para prosseguir a magia de contar e ouvir histórias, ou seja, tecendo uma ponte entre vivência e linearidade no conto e a imaginação e sonho na poética.

No decorrer de todo este dinâmico movimento de imagens e número aparece o 5:

Quantos dedos eu tenho na mão?

Mindinho,

Seu vizinho, pai-de-todos,

Fura-bolo,

Cata-piolho.

Quantos são, me diga?

Senão os meus dedos

1,2,3,4,5,

Os meus 5 dedos

Vão fazer cosquinhas

Na sua barriga!

No poema acima, Paes retoma outra parlenda, focalizando de forma concreta nosso folclore. Enfatiza ainda o convite para contar e brincar, ao lançar o enigma: "Quantos são, me diga?" O desfecho resulta numa constante na vida das crianças, a brincadeira de fazer "cosquinhas" abrindo possibilidades a uma gargalhada.

Toda inventividade é o que tende a envolver a criança, por se debruçar sobre poemas que reinventam seu mundo real numa dinâmica diversão representada no trabalho com a linguagem. Considerando a sensibilidade, multiplicidade e leveza dos poemas de José Paulo Paes, percebe-se o conceito de poesia que goza a obra do autor, encontrando ressonância na subjetividade da alma infantil, pois a criança pode degustar o poema como se provasse ou saboreasse a um doce ou ainda descobrisseo milagre em situações cotidianas. A poesia permite que o leitor mirim receba o texto como um brinquedo, procurando descobrir seu interior, envolvendo-se no contexto, interagindo de forma íntima e particular, própria de nossos "pequenos leitores" dotados de alma poética, segundo Josualdo (apud RESENDE, 2004).

Enfim, o trabalho realizado nas obras de Paes o torna peculiar, pois estas nos dão infinitas possibilidades de vivências poéticas, alémde para nós, educadores abrir um leque de expectativa de trabalho em sala de aula.

 

REFERÊNCIAS

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MICHELETTI, G. Aprender e Ensinar com textos didáticos e paradidáticos. São Paulo: Cortez, 1997.

PAES, J. P. Poesia par crianças: um depoimento. São Paulo: Giordano,1996.

________.Quem, eu? Um poeta como outro qualquer. São Paulo: Afiliada,1996.

________. Um número depois do outro. São Paulo: Companhia das Letrinhas,1999

________. Uma letra puxa a outra. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 1993.

KHEDE, S. S. (org). Literatura infanto-juvenil: um gênero polêmico. Porto Alegre: Mercado Alegre, 1986.

RESENDE, V. M. Literatura Infantil e Juvenil: vivências de Leitura e Expressão Criadora. 2. ed. São Paulo: Saraiva,1997.

RIBEIRO, E. M. Brincadeiras de palavras: a gênese da poesia infantil de José Paulo Paes, São Paulo: Giordano, 1996.

SILVA, V. L. Brincando com a linguagem: leitura da poesia Infantil de José Paulo Paes. Campina Grande?PB (Dissertação de Mestrado), 2001.

ZILBERMAN, R. e LAJOLO, M. Um Brasil para crianças - para conhecer a literatura infantil brasileira: história, autores e textos. 4. ed. São Paulo: Global,1993.

________.Literatura Infantil Brasileira: história e histórias, 6. ed. São Paulo: Ática, 2004. (Série Fundamentos).