Alessandra Ferreira Vieira*[1] 

Resumo 

O presente artigo,  têm como proposta refletir a respeito do discurso ideológico presente no romance Vidas Secas (1937) de Graciliano Ramos. Na narrativa da obra citada, pode-se notar que o autor alagoano, assim como diversos escritores do regionalismo de 30, procura traçar a imagem do Nordeste como território da seca, da fome, de homens e mulheres marginalizados, vivendo em um cenário mórbido e condicionados a uma vida (des) humana. 

Abstract

This analysis, as are proposed to reflect on the ideological discourse in this novel Barren Lives (1937) Graciliano Ramos. In the narrative of the cited work, you may notice that the author of Alagoas and several writers of regionalism, 30, seeks to draw the image of the northeastern territory as drought, famine, men and women marginalized, living in a morbid and scenario conditioned to a life (un) human.

 

Palavras Chave: Vidas Secas, Ideologia, Graciliano Ramos, Discurso.

 

Entende-se por ideologia um conjunto de idéias que orientam as ações de um grupo, uma pessoa. Percebe-se que esse termo denota grande amplitude, pois a ideologia pode estar impregnada em vários aspectos da vida humana, como os sociais, culturais, religiosos, entre outros. A ideologia da classe dominante, representada na obra pelo fazendeiro, se propaga principalmente numa cultura que é incorporada por uma população, na sua maioria, limitada a reproduzir o discurso do outro, do dominante.

Evidencia-se no decorrer da narrativa a presença do silêncio como forma de linguagem. Em Vidas Secas, é possível percebê-lo nas falas dadas pelo narrador aos protagonistas, principalmente Fabiano. Silêncio este que vem carregado de significados, a exemplo do que emana de Fabiano, expondo uma opressão como uma maneira de denunciar o contexto social em que este se insere. O silêncio apresentado na narrativa é uma forma de revolta como também de defesa frente às atitudes opressoras da classe latifundiária.   

             A idéia de nordeste apresentada no livro traz uma carga semântica envolta num ar de morbidez: uma região seca, de miséria e de linguagem pobre, fonte de uma ideologia tanto social quanto cultural, adquirida ao longo da historia, sem qualquer questionamento, sem qualquer discórdia ou impasse.

Não se pode criticar ou detalhar fatos e histórias sem antes conhecê-los. É relevante que se investigue a teia de discursos que projeta um universo de idéias, a exemplo de um nordeste de mitos, de abundância, chuvas e um povo que enfrenta no dia-a-dia seus conflitos com a natureza, e contribuem, ainda que no anonimato, para um novo retrato do nordeste, contrapondo-se a um cenário típico dos romances que fazem parte de uma produção literária que teve ascensão na década de 30.

 

A obra Vidas Secas (1937) retrata pessoas que se encontram numa condição desumana em meio à sociedade injusta, tendo como tema a luta pela sobrevivência diante do flagelo da seca. Graciliano insere nos seus personagens traços da alma nordestina, explicitando a realidade social do Brasil e a condição existencial do sertanejo.

Através de uma linguagem áspera, o narrador evidencia a paisagem árida do sertão brasileiro. Paisagens e personagens se confundem em meio ao silêncio, a miséria e a ideologia que emana da linguagem que emerge na obra.

             Será dentro do viés do nosso instrumento teórico: o discurso ideológico, que nortearemos nosso tema, além de caracterizá-lo como matéria significante dentro da obra. Nesta é possível identificarmos também, como base do discurso, o silêncio de Fabiano, sendo uma ferramenta em prol da comunicação, contemplação e existência de pensamento, o que nos conduz a uma análise cuidados sobre o discurso ideológico perceptível na linguagem do narrador, que procura delinear uma relação entre dominante e dominado, deixando transparecer o poder latifundiário que silencia o sertanejo.

A ideologia apresentada nessa obra inverte os valores atribuídos a um romance que, apresenta o embrutecimento do sertanejo, inserindo-o num processo de zoomorfização, reduzindo-o à imagem de um animal irracional, atribuindo-lhe forças instintivas.

                                      (...) “Sinhá Vitória acomodou os filhos, que arriaram como trouxa cobriu-os com molambos. O menino mais velho, passada a vertigem que o derrubara, encolhido sobre folhas secas, a cabeça encostada a uma raiz, adormecia, acordava. E quando abria os olhos, distinguia vagamente um monte próximo, algumas pedras, um carro de bois. A cachorra Baleia foi enroscar-se junto dele.
Nesse ponto Baleia arrebitou as orelhas, arregaçou as ventas, sentiu cheiro de preás, farejou um minuto, localizou-os no morro próximo e saiu correndo.
Iam-se amodorrando e foram despertados por Baleia, que trazia nos dentes um preá. Levantaram-se todos gritando. O menino mais velho esfregou as pálpebras, afastando pedaços de sonho. Sinhá Vitória beijava o focinho de Baleia, e como o focinho estava ensangüentado, lambia o sangue e tirava proveito do beijo.
Sinhá Vitória remexeu no baú, os meninos foram quebrar uma haste de alecrim para fazer um espeto. Baleia, o ouvido atento, o traseiro em repouso e as pernas da frente erguidas, vigiava, aguardando a parte que lhe iria tocar provavelmente os ossos do bicho e talvez o couro.
Baleia agitava o rabo, olhando as brasas. E como não podia ocupar-se daquelas coisas, esperava com paciência a hora de mastigar os ossos. Depois iria dormir”. (...) (RAMOS, p.52)

 

Ao longo do romance, enquanto os homens se colocam num patamar infra-humano, baleia esta num nível supra-animal, ou seja, situa-se no mesmo plano de Fabiano, Sinhá Vitória, o menino mais velho e o menino mais novo. O discurso deixa ouvir as vozes do narrador e de baleia. A cachorra pode passar por estados de incerteza, expectativas, etc. próprio do ser humano, porque está num nível supra-animal. No entanto, não chega ao nível humano.

            O autor registra além da ideologia, os costumes nordestinos, envolvendo a sonoridade dos termos regionais, ou seja, o dialeto sertanejo e o latim vulgar.

Embasando-se na teoria de Backhtin, sobre ideologia, o mesmo considera que o sujeito é fruto do meio em que vive, afirmando que a ideologia é um fato de consciência, da realização interior da compreensão. Com base nesta definição, o discurso ideológico que faz parte dessa obra se caracteriza na constituição do sujeito e dos sentidos.

 

                                               "Agora Fabiano era vaqueiro, e ninguém o tiraria dali. Aparecera como um bicho entocara-se como um bicho, mas criara raízes, estava plantado. Olhou os quipás, os mandacarus e os xique-xiques. Era mais forte que tudo isso, era como as catingueiras e as baraúnas. Ele, sinhá Vitória, os dois filhos e a cachorra Baleia estavam agarrados a terra.
(...) Entristeceu.
Considerar-se plantado em terra alheia! Engano. A sina dele era correr mundo, andar para cima e para baixo, à toa, como judeu errante. Um vagabundo empurrado pela seca."(RAMOS,p.25)

 

Fabiano, como protagonista do romance, é interpelado pela ideologia para que se reproduza à realidade desumana e as reações do homem (sujeito) diante dos estereótipos desse “mundo” em que apesar da submissão, o protagonista anseia pelo poder de liberdade. Um exemplo dessa afirmação é a leitura de Fabiano, face à situação de vida próspera do amigo Tomás, uma vez que este sabia se expressar, organizando suas idéias.

No entanto, a força do discurso ideológico é tamanha que finda por fazer Fabiano  aceitar e a assumir a dominação que esse discurso veicula, ou seja, sua redução ao silêncio. Ele não consegue divisar claramente os limites que lhe impõem, ainda que tenha consciência da existência deles.

O não dizer tem sido objeto de reflexão de alguns lingüistas dos quais, toma-se como exemplo o trabalho desenvolvido por O. Ducrot (1972). Nas diferentes formas de não dizer (implícito) o pressuposto, o subentendido, este autor separa aquilo que deriva propriamente da linguagem (pressuposto) daquilo que se dá em contexto (subentendido).

       Segundo Orlandi, 1993, há outra forma de trabalhar o não dito. Trata-se do silêncio. Este pode ser pensado como a respiração da significação, lugar de recuo necessário pra que se possa significar, para que o sentido faça sentido.

É o silêncio como horizonte, como eminência do sentido. Esta é uma das formas do silêncio, a que chamamos silêncio fundador: silêncio que indica que o sentido pode sempre ser outro. Mas há outras formas de silêncio que atravessam as palavras, que “falam” pó elas. Deste modo distinguimos o silêncio fundador do silenciamento.

Graciliano em seus romances retrata a imagem de um sertão agreste, e a degradação humana, porém, ao mesmo tempo, é fiel às suas ideologias, aos hábitos e valores do nordeste, investigando com perspicácia o interior do ser humano. Mais do que o enredo, mais do que o meio físico, importa a personagem.

É nela que esta centrada a sua narrativa. Seus protagonistas mergulham em si mesmos para refletir sobre suas ações, sua miséria, seus dramas, seus sonhos, enfim, sobre o grande conflito humano que é existir.

      A linguagem como se vê é enxuta, econômica de adjetivos, ressecada feito o homem nomeado por ela, feito à natureza que o cerca, ao destino cruel que o espreita.

O romancista é impar, evita propositalmente os diálogos, porque os seres que habitam esse universo são rudes demais para se exprimirem por meio de palavras. Eles apenas apontam, indicam com os beiços e resmungam. Usam interjeições e gestos. Pertencem às suas próprias vidas secas, ao mundo de espinhos e seixos, de mandacarus e arbustos retorcidos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Referências:

 

 

ALBUQUERQUE, Durval Muniz. A Invenção do Nordeste e Outras Artes. Editora Cortez. 2ª ed. 2001.

 

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 10ª edição. Annablume. São Paulo, 2002.

 

RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. Rio de Janeiro. Recorde, 1998

 

 



[1] Graduada pela Universidade do Estado da Bahia e Pós- Graduada em Estudos Linguisticos e Literários pela Universidade Federal da Bahia. Professora de Literatura da Rede Particular de Ensino.