O AMOR NA OBRA LUCÍOLA DE JOSE DE ALENCAR TERIA SIDO UMA FORMA DE PUNIÇÃO OU REDENÇÃO?

 

Adriana Maria de A. Silva1 

Resumo

O presente artigo objetiva uma reflexão acerca da condição feminina em meados do século XIX, procurando compreender, através da obra Lucíola de José de Alencar, a posição do autor ao dar à personagem o fim trágico que deu, bem como  observando-lhes os motivos sociais que o levaram a tanto e, ao mesmo tempo , interrogando e refletindo o direito que coube ou não a Lucíola de viver seu grande amor, independentemente das críticas sociais da época.

Palavras-chave: sociedade – condição feminina – direito.

Abstract

This article aims to reflect on the status of women in the mid-nineteenth century, seeking to understand, through the work of Luciola José de Alencar, the author's position by giving the character that gave the tragic end, as well as watching them the social reasons that led to so much and at the same time, questioning and reflecting the right fit or not Luciola his great love of life, regardless of the social criticism of the time.

Keywords: society - womanhood - right.

 

___________________

1. Formada pela Universidade Federal do Piaui em Letras Português e aluna do curso de Especialização em Literatura e Estudos Culturais pela Universidade Estadual do Piaui.

José Martiniano de Alencar nasceu em 1829 em Macejana – Ceará, pertencente à Escola Romântica, sua obra é um retrato fiel  da política e da sociedade de sua época. Grande proprietário rural, político e conservador explorou uma linguagem brasileira e sobretudo, esboçou em suas obras um painel da sociedade brasileira do século XIX.

Tendo origem, na Alemanha e Inglaterra, nos últimos anos do século XVIII, coube à França, o papel de divulgadora do romantismo entre os brasileiros. Nascendo  no Brasil em um momento em que o país necessitava ajustar-se aos padrões de modernidade da época e com necessidade de autoafirmação da Pátria, onde a  imagem do português conquistador deveria ser banida, foi em Gonçalves de Magalhães que encontramos as primeiras bases românticas, marcadas com a exaltação da natureza, volta ao passado e construção de um herói que representasse nossa nação.

Tendo grande destaque na prosa romântica, Alencar traçou a vida burguesa do Rio de Janeiro do século XIX em obras como Senhora, Diva e Lucíola. Através destas, Alencar participou de um dos maiores acontecimentos relacionados ao romantismo – o surgimento de um público leitor representado pelas mulheres e pelos estudantes, fazendo nascer uma literatura de gosto mais popular.

O público leitor, por excelência, passou a ser o feminino. Primeiro porque o romance como  a literatura, encontrou seu espaço em nossa sociedade aristocrática e iletrada, no lazer das mulheres das classes altas. Desprovidas de poderem mostrar seus sentimentos, as mulheres do século XIX e meados do século XX eram reprimidas em seus desejos e vozes. Com sentimentos castrados voltavam-se para os romances em folhetins onde poderiam sonhar, pelo menos, com uma vida amorosa satisfeita. Lazeres, não tinham e a autoridade era estritamente masculina.

Tendo como destaque a obra Lucíola, parte central deste trabalho, Alencar retrata, como em Diva e Senhora, no entanto com mais profundidade em Lucíola, as novas mudanças pelas quais passariam o público feminino nas próximas décadas.

A história de Lúcia começa com sua vinda ao Rio de Janeiro, quando em 1850 houve um surto de febre amarela e toda sua família caiu doente. Não podendo pagar os medicamentos necessários para salva-los, Lúcia deixa-se levar por Couto, por quem sentirá o mais sincero desprezo, pois foi Couto quem a iniciou na vida de cortesã. Expulsa de casa fingiu sua própria morte, apoderando-se do nome Lúcia quando da morte de sua amiga. Agora com o dinheiro que conseguia como cortesã, passará a pagar os estudos de sua irmã mais nova, Ana, por quem nutria enorme amor.

Independente e altiva, assim nasceu Lúcia, a cortesã mais rica e desejada do Rio de Janeiro.

O desenrolar da narrativa de Lucíola e as mudanças da personagem Lúcia na obra de Alencar dão-se de forma lenta e graduada. Nascem de um olhar, mais precisamente do “olhar do outro”; esse outro que fará toda  a diferença na vida da personagem. “Como deve ser pura a alma que mora naquele rosto mimoso”. (p. 22). Assim descreveu Paulo quando a viu pela primeira vez, logo ao chegar ao Rio de janeiro.

Com a liberdade que outras mulheres da sua época não poderiam ter Lúcia freqüentava os salões e teatros do Rio, esbanjando beleza, sensualidade e desejo. Sua marca maior, era constranger seus amantes; “ ...passeávamos numa noite de luar claro como dia; vendo minha mulher na janela, escondi-me involuntariamente no fundo do carro com receio de que me reconhecesse. Era inútil, porque estava distraída olhando par ao mar. Entretanto, Lúcia, por maldade, mandou ao cocheiro que  parasse, saltou do carro, e esteve muito tempo, em pé, na grade, voltada para minha casa...”(p.33).

Alencar retrata em Lúcia duas facetas bem delimitadas da mesma personagem: ora anjo, ora demônio. Segundo Luis Filipe ( 1996),

 

“A personagem central é um ser biforme e tem mesmo dois nomes, Lúcia e Maria da Glória. A primeira é a cortesã; a segunda, a moça recatada e pura. E elas se apresentam não apenas numa sucessão temporal, o seu eu esquizofrênica, mas num amálgama complexo e que depende do olhar de quem as vê, para perceber o que é ganga e o que é diamante do mais alto quilate”. (p.93).

 

Havia em Lúcia algo de demoníaco, escandaloso demais para a sociedade do século XIX, algo proibido. Lúcia tinha vontade própria! Sentia prazer! Comportava-se como desejava. E ao mesmo tempoem que Paulodesejava a “mulher mimosa” se via perdido em pensamentos com a mulher cortesã.

“Lúcia não me disse mais palavras; parou no meio do aposento, defronte de mim... Era outra mulher....Lúcia sentia: sentia sim com tal acrimônia e desespero, que o prazer a estorcia em câimbras pungentes. Seu olhar queimava; e ás vezes parecia que ela ia estrangular-me nos seus braços, ou asfixiar-me com seus beijos!”. (p.30).

Ao mostrar Lúcia no mais completo desejo carnal, Alencar mostrava Maria da Glória, quando da descoberta de seu amor por Paulo. No mesmo momentoem que Lúciadespertava em Paulo seus desejos mais reprimidos, era com Maria da Glória que acalentava uma via a dois, na mais perfeita felicidade.

Para a sociedade da época, apenas uma mulher como Maria da Glória seria bem aceita, respeitada por todos. Já como Lúcia, era apenas uma mulher bonita, andava desacompanhada como bem desejava, não tinha pudores ao revelar-se como era.

 

“ O preconceito social se exprime na observação  de que uma mulher desacompanhada só poderia ser o que o seu desamparo social revelava...Ao afirmar que ela não era uma senhora desqualificava-a social e moralmente; mas ao dizer que é, ao contrário uma mulher bonita, está sugerindo que a beleza, o erotismo e o prazer só se encontram nessas “perdidas”. (FILIPE, 1996, P.95).

 

Desinibida, fogosa, altiva e dona de si! Ainda assim, Lúcia tinha seus medos, afinal, o coração quando descobre o amor verdadeiro tem suas vulnerabilidades! E Lúcia tinha.

 

“...Eu?...Que idéia! Para que amar? O que há de real e de melhor na vida é o prazer, e esse dispensa o coração....O amor para uma mulher como eu seria a mais terrível punição que Deus poderia infligir-lhe!”. (FILIPE, 1996, P.100).

 

E Lúcia amou! Um amor que tentou abafar nas noites em bailes na Corte, nos jantares com os amigos e entre conversas animadas com um e outro. Lúcia sabia o quão era cruel a opinião de uma sociedade preconceituosa, educada nos rígidos padrões de uma sociedade patriarcalista.

Mas seu amor por Paulo foi transformando-a, lenta e gradativamente. De um espaço aberto, condizente com sua situação de prostituta para um espaço mais particular, o espaço de seu lar e de si mesma!  Já que a sociedade da época apenas tolerava as prostitutas, Lúcia até poderia usufruir dos teatros e bailes como sempre fizera, desde que não tentasse se reintegrar ao seio puro e santo da família.

 Por vezes queria fazer nascer Maria da Glória, pois Paulo a merecia era diferente dos outros homens, nutria por ela respeito amor e compreensão. Paulo merecia algo puro, angelical e, esse lado só quem poderia oferecer-lhe era Maria da Glória! Mas como ressuscitar dentro de si uma pureza que pelas forças das circunstancias a fizeram matar!?

A sociedade não veria com bons olhos sua radical mudança, mesmo porque “uma vez cortesã, sempre cortesã”.  Lúcia não pode amar e está apaixonada, não pode  ser mãe e, no entanto, depois de uma noite de amor, descobre que está grávida!

A personagem se vê dividida entre um papel  de mulher livre e os sentimentos amorosos que brotam em sua alma, mas que precisa reprimi-los enquanto prostituta.

“Essa divisão entre alma e realidade é resultante da alma ser mais ampla do que todos os destinos que a vida lhe pode oferecer”. (LUCKÁS).

 

Uma das características marcantes do romantismo era o amor como redenção; o conflito consiste na oposição entre os valores da sociedade e  o desejo de realização amorosa. No caso de Paulo e Lúcia, o casal está impossibilitado de viver este amor, porque um deles não se adequa aos padrões da sociedade da época; ou seja, Lúcia não o merece moralmente.

Paulo representa para Lúcia a purificação de si mesma, de sua alma, pois ele a vê com o coração, antes desejada pelos homens como mulher objeto, Lúcia se vê desejada com amor, pois Paulo não trás em seu comportamento a alma contaminada pela corrupção da corte. Mesmo que Sá descreva Lúcia como devassa e impura, Paulo a corteja de maneira delicada.

Por muitos momentos Paulo se perturba com o comportamento de Lúcia, ora mulher angelical, ora mulher enigmática, ora com o coração sensível, outras vezes se apresenta dura, difícil de desvendar-lhe a alma. São papeis contraditórios da mesma mulher que encanta tanto princípios negativos como positivos da natureza feminina. Segundo Regina Pontieri:

 

 “Mulheres-esfinges, corpos de pedra aprisionando uma espiritualidade volátil e fugidia, em suas bocas dança a pergunta fatal: quem sou? Quem me decifrará?”. (PONTIERI, 1988, p. 16).

 

Tendo como sua maior fragilidade o amor verdadeiro, Lúcia passa a ser presa fácil diante da cortesia por parte de Paulo. Já não há como negar que ele é diferente.

Na tentativa de percorrer o caminho inverso e diante da imagem que a sociedade tinha de si, Lúcia decide resgatar Maria da Glória, pois Paulo merece um amor puro, casto, sem manchas. Mesmo diante das circunstancias, Lúcia trás à tona Maria da Glória, renunciando ao luxo e indo morar numa modesta casa a assumindo seu nome verdadeiro.

Para purificar sua alma de toda a sujeira, Lúcia passa a dedicar-se inteiramente a esse amor. Grávida e doente recusa-se a fazer o aborto, que poderia salvar-lhe a vida; acreditava que a doença era devido ao fato de seu corpo ser sujo e vergonhoso.

É a submissão do amor romântico onde a castidade é valorizada. A morte da personagem Lúcia, impõe no romance do século XIX, o que se denomina de “redenção”, conferindo à pessoa que o pratica uma postura exemplar de pureza.

José de Alencar, na ânsia de superar os valores provincianos da cidade do Rio de Janeiro do século XIX, lança romances como Diva, Senhora e Lucíola; no entanto, impossibilitado de ir contra toda uma sociedade com padrões enraizados nos moldes patriarcalistas, Alencar sugere em seus romances uma das características principais da escola romântica: “a redenção por amor”.

No decorrer da obra, Alencar representa os dois lados de uma cultura que necessita transformar-se sem maiores traumas. Ao mesmo tempo em que o autor encontra em Lúcia a cortesã, como uma mulher desinibida, forte, altiva e dona de si, fazem emergir essa ânsia de vê os valores provincianos superados.

Entrando no mundo particular de Lúcia com seus desejos e sonhos, como toda mulher os têm, não teria ela o direito de refazer sua vida e viver seu amor com Paulo? Teria ela o merecimento de ser punida por um passado manchado, onde a vida não lhe deu escolhas?

Na tentativa de realizar a passagem impossível do bordel ao lar, Lúcia percorre caminho inverso, com isso, passa por perseguições e discriminações, vindo até mesmo a afetar seu relacionamento com Paulo.  Diante da impossibilidade de ir de encontro os valores sociais da época, Alencar confere à personagem um fim trágico, até mesmo pela falta de saída da condição feminina naquele momento.

Sem pretensão alguma de criticar José de Alencar, muito pelo contrário, o que ele defendeu em Senhora, Diva e Lucíola, foi justamente uma sociedade como poderia ser, com mulheres desprovidas de preconceitos e não uma sociedade cristalizada nos valores morais rígidos da época. Ele desejou contribuir para solidificar valores que estavam por surgir, ainda que muito lentamente.

Buscou em suas obras escrever para “elas” e com total maestria conseguiu produzir cada página de seus romances para as mulheres.

Uma sociedade onde os valores morais eram rígidos demais e onde a voz masculina era tida como superior, não encontrou eco de libertação nos romances de Alencar e, por isso mesmo o escritor não teve como apagar o passado de Lúcia diante da sociedade machista da época, deu à personagem não “uma escolha”, mas a razão, o bom senso, que poderiam estar de comum acordo com as exigências da sociedade carioca do século XIX.

Ainda assim, me permito insistir que Lúcia, como qualquer outra mulher, teria sim o direito de escolher viver um amor puro e verdadeiro, sem preconceitos. No entanto, foi punida por amar, punida por ser livre em seus desejos e sonhos, punida por um passado que nem ela mesma escolher pra si, e sim as circunstâncias a fizeram traça-lo sem maiores escolhas. Punida por ser uma mulher dona de si.

 

REFERENCIAS:

ALENCAR, José de, 1829-1877. Lucíola de José de Alencar; orientação pedagógica Douglas Tufano – São Paulo: Moderna, 1993 – (Coleção travessias).

LUCKÁS, George. A Teoria do Romance. Lisboa: Presença, p. 119.

PONTIERE, Regina Lúcia. A Voragem do olhar. São Paulo: Editora perspectiva, 1988, p. 16.

RIBEIRO, Luis Filipe. Mulheres de Papel: Um estudo do imaginário em José de Alencar e Machado de Assis – Niterói: EDUFF, 1996.