UNIVERSIDADE ESTADUAL DE GOIÁS
UnU-SÃO LUÍS DE MONTES BELOS
CURSO DE LETRAS PORTUGUÊS/INGLÊS


Daniel Reis


MRS. DALLOWAY & THE HOURS: A reescrita Palimpsestica










SÃO LUÍS DE MONTES BELOS
2010









Daniel Reis














MRS. DALLOWAY & THE HOURS: A reescrita Palimpsestica























SÃO LUÍS DE MONTES BELOS
2010


RESUMO:

A intertextualidade é uma característica marcante na construção de The hours (1998) obra de Michael Cunningham, que reescreve Mrs. Dalloway (1925), obra de Virgínia Woolf. Além desta, que não é a principal característica, há outras como o fluxo de consciência, o universo feminino, os sentimentos reprimidos, entre outras, que estabelecem uma relação de proximidade, fazendo de uma a reescrita da outra, manifestando, assim, a reescrita palimpsestica. O presente artigo apresenta essas duas obras destacando as peculiaridades e temas que constituem a obra de Virginia Woolf e sua fantástica reescritura através do autor americano Michael Cunningham.

Palavras chave: Palimpsesto, Reescrita, Intertextualidade.




ABSTRACT:

Intertextuality is a striking feature in the construction of The Hours (1998) Michael Cunningham's work, which rewrites Mrs. Dalloway (1925) Virginia Woolf's work. Besides this, it is not the main feature; there are others like stream of consciousness, the female universe, repressed feelings, among others, establishing a close relationship, making a rewriting of the other, in order to express the rewriting palimpsest. This paper presents these two works highlighting the quirks and issues that constitute the work of Virginia Woolf and her fantastic rewriting by American author Michael Cunningham.

KEYWORDS: Palimpsest, Rewritten, Intertextuality.






INTRODUÇÃO

Em Mrs. Dalloway, obra da escritora inglesa Virgínia Woolf, publicada em 1925, existem características estéticas e temáticas que pontuam um novo estilo de romance para o contexto da escritora. Trata- se do foco dado à representação feminina na sociedade inglesa do pós-guerra e do entrelaçamento entre tempo e espaço através da técnica de fluxo de consciência. A história de Clarissa Dalloway, protagonista do livro de Virgínia, passa-se em um único dia, mas através das reflexões da personagem, o leitor pode sondar todo o seu mundo interior e conhecer seu passado, suas fantasias, sonhos e angustias. Assim são representados o papel da mulher na sociedade inglesa do início do século XX e os conflitos sociais e psicológicos da Inglaterra no pós- primeira guerra mundial.
Virgínia Woolf foi uma talentosa e bem sucedida escritora inglesa. Influenciada pelos cuidados e pelo tratamento intelectual esmero dado pelo pai, Virgínia tornou-se uma grande escritora, mas a vida lhe deu um destino cruel e inesperado. Sofrendo de transtornos psíquicos já a certa altura de sua vida, mais ou menos cinquenta anos, ela se suicidou mergulhando em um rio com os bolsos do vestido cheios de pedra.
Mrs. Dalloway é um romance de forma distinta dos romances tradicionais. A história se passa em um único dia na vida de Clarissa Dalloway, uma senhora casada com um membro da alta sociedade inglesa, está dando uma festa em sua casa quando se depara com ex- pretendente seu e começa a refletir sobre sua vida e pensar como poderiam ter sido as coisas se ela tivesse seguido caminhos diferentes. Clarissa Dalloway, durante o decorrer das páginas do livro, vai nos levando para o seu universo interior, onde descobrimos seus sonhos, suas angustias e o seu próprio passado. A dimensão temporal dos fatos se dá em dois planos. Um que se constitui da própria consciência da personagem e outro que é marcado pelas batidas do Big Bem e este a desperta para o presente como se a trouxesse de um sono profundo.
Há ainda no livro de Virgínia outro enredo paralelo ao de Clarissa, a história de Septimus, um ex-combatente que saiu da guerra carregando uma carga de traumas que o deixa em situação parecida com a de Clarissa; vivendo em um mundo de reflexões e preso pelos seus próprios medos e angustias. As duas histórias só se intercruzam no fim do livro, quando Clarissa estando em casa, durante uma festa fica sabendo do suicídio de Septimus e isso lhe causa um desconforto que a faz se afastar da festa para refletir sobre o que aconteceu com o rapaz e ponderar sobre os seus próprios pensamentos e desejos.
Paralelamente ao estilo da obra de Virgínia, encontramos já no final do século XX a obra do escritor americano Michael Cunningham. Esse livro se intitula The Hours e além de prestar uma homenagem à escritora inglesa, trata-se de um fantástico projeto de reescritura que perpassa as orientações baseadas em simples cópias até mesmo o plágio. Cunningham se vale de uma extensa pesquisa sobre a vida e obra de Virgínia e consegue recriar três enredos distintos no espaço e no tempo com a intenção de unir a história, a vida, os temas e os dramas da escritora em um único livro.





























CONCEITO DE REESCRITA PALIMPSESTICA

Palimpsesto é uma palavra que vem do grego antigo, que surgiu no século V a. C, παλίμψηστος / palímpsêstos quer dizer riscar de novo (πάλιν "de novo" e ψάω, "riscar"), também designado como linguagem arquétipa para fazer uma leitura do mundo. Palimpsesto é um pergaminho ou papiro cujo texto foi eliminado para permitir a reutilização por outro texto.
Com o sentido metafórico de texto sob o qual se adivinha outro texto, processo conceituado literalmente de "o antigo sob o novo" em uma conhecida obra de Gérad Genette Palimpsestes, publicada em Paris em 1982, sobre as relações de hipertextualidade.
Nesta mesma obra Genette define:
"Um palimpsesto é um pergaminho cuja primeira inscrição foi raspada para se traçar outra, que não a esconde de fato, de modo que se pode lê- la por transparência, o antigo sob o novo. Assim, no sentido figurado, entenderemos por palimpsestos (mais literalmente hipertextos), todas as segunda mão, que se escreve através da leitura, o lugar e a ação no campo literário geralmente, e lamentavelmente, não são reconhecidos. Tentamos aqui explorar esse território. Um texto pode sempre ler um outro, e assim por diante, até o fim dos textos. Este meu texto não escapa à regra: ele a expõe e se expõe a ela. Quem ler por último lerá melhor". (GENETTE, 1982, p. 5)














A RELAÇÃO PALIMPSESTICA ENTRE THE HOURS E MRS. DALLOWAY.

A partir da definição de palimpsesto, de Genette, partiremos agora para uma discussão sobre o que The hours tem de palimpsesto de Mrs. Dalloway. A primeira relação entre as duas obras é a que Cunningham faz ao abrir seu livro com um prólogo, que ficcionaliza o célebre e trágico suicídio da escritora Virgínia Woolf no ano de 1941 em uma cidade do condado de East Sussex, na Inglaterra. Para a reconstrução desse episódio biográfico, bem como de alguns outros que Cunningham reconstituirá ao longo de seu romance, ele nos informa que se baseou em uma série de fontes: duas biografias, os diários e as cartas de Virginia, alguns livros e artigos sobre a autora, e ainda introduções e prefácios à obra Mrs. Dalloway. Mas os pontos que mais contribuíram para que Cunningham realizasse o entrelaçamento entre essas duas obras, depois de ter feito estudos longos e profundos, foram a vida, a loucura e as palavras de Virgínia Woolf que o levou a uma experiência e uma maneira de se criar uma nova história literária, a chamada reescrita palimpsestica.
Outra relação entre elas é o tempo, também um dos principais motivos que levou Cunningham escrever The hours. Segundo o mesmo, nesta a sua pretensão era trazer da década de 1920 Mrs. Dalloway e lavá-la para a década de 1990. Mas a questão do tempo não está presente somente em The hours, em Mrs. Dalloway esta questão se faz como presença marcante pelas batidas do relógio Big Bem, assim como em The hours, que em ambas as obras têm a função de trazer as personagens para a realidade, já que a fuga desta é manifestada pelo fluxo de consciência.
O fluxo de consciência é uma técnica literária inicialmente formulada pelos russos Dostoievsky, Tolstoi, Gogol, etc., no século XIX. Mas, somente no início do século XX, com James Joyce e Proust, logo após os estudos freudianos, é que esta técnica literária chegou ao auge, pois foram com estes autores que conseguiram alcançar o "subterrâneo" da mente.
Por isso que o fluxo de consciência é considerado uma das maiores descobertas literárias dos últimos tempos, por ter aberto caminhos para uma nova perspectiva literária universal, além de ter se tornado uma ficção psicológica, onde nunca será considerada ultrapassa, por tratar-se do que o ser humano tem mais de íntimo e profundo, sua alma.
Contudo, assim como os palimpsestos podiam ser raspados por até quatro vezes para que uma nova escritura pudesse ser feita, não é muito diferente de The hours, que é a reescritura do romance Mrs. Dalloway recriando seus temas através de três gerações de mulheres, as quais, de uma forma ou de outra, tiveram de lidar com os mesmos dramas da protagonista de Woolf.
CONFIGURAÇÕES INTERTEXTUAIS

As transformações dos personagens de Mrs. Dalloway que Cunningham faz em sua obra, giram em torno de teias semelhantes entre seus personagens, não só as suas vidas se sobrepõem no romance, mas fora dele, bem como, se cruzam com as vidas de seus antecessores literários.
No entanto, esse trazer Mrs. Dalloway da década de 1920 de Londres para a década de 1990 como Clarissa para a Nova York contemporânea, não quer dizer que tem que ser mesmo jeito, mesma maneira e mesmas características, porque Cunningham não esconde por completo, assim como nos palimpsestos, as características de Mrs. Dalloway de Woolf, já que sua obra deriva dela, seja por transformação ou por imitação, diferentemente de plágio. Sendo assim, a relação que Cunningham faz de seus personagens com os personagens de Mrs. Dalloway, também gira em torno da intertextualidade, um campo de relevância dentro do quadro atual dos estudos literários. Pensando nas inúmeras diferenças que permeiam as produções poéticas da modernidade, faz-se necessária uma teorização do emprego da intertextualidade nessas obras, já que as principais características são a valorização da digressão, do fluxo de consciência das personagens e dos seus conflitos diante do tempo.
Esta noção de intertextualidade permite verificar como a questão da "fidelidade" não pode ser reduzida à pobreza de um conceito de transposição "literal", mas deve antes ser considerada como a fecunda e inovadora (re)criação interpretativa de quem se identificou previamente com a obra literária. É o caso do próprio Cunningham que afirmou em uma entrevista em 1999 que a personagem Laura Brown seria sua mãe.
Virgínia Woolf, Laura Brown e Clarissa Vaughan são mulheres diferentes, vivendo em lugares e épocas diferentes. Cada uma dessas três personagens (a primeira histórica e as outras duas fictícias) tem em comum a preocupação de justificar suas próprias existências dentro do contexto restritivo em que vivem. Cada uma sofre com as próprias limitações das mulheres de sua época e sociedade, pois são consideradas personagens ex-cêntricas da época.
O ex-cêntrico como aquele que, socialmente, está fora do centro, isto é, que não pertence ao grupo de origem europeia, masculino, heterossexual e de classe média. Embora, a mulher seja a maioria em termos de números, é ainda, minoria em termos de participação econômica, social e política. (OLIVEIRA apud HUTCHEON, 1991)

Assim como Clarissa Dalloway e Septimus Smith, personagens de Mrs. Dalloway, também podem ser considerados ex-cêntricos.
Todos esses personagens pertencem a uma única classe, a média. Elas estão marginalizadas devido às relações de gênero e também devido à posição antagônica e conflituosa com o centro ao qual pertencem. Como os sujeitos fragmentados são forçados a situarem-se reconhecendo suas próprias diferenças e a redefinir uma concepção de subjetividade, são também sujeitos isolados. Por exemplo, em Mrs. Dalloway o único momento que há um contato da protagonista, Clarissa Dalloway, com a vida exterior, é o momento que se dá a partir da presença de Septimus, um ex-soldado que pode ser visto como sua consciência diante dos horrores da Primeira Guerra; que ela procura esquecer com suas festas e sua dedicação à família. É como se Clarissa procurasse o isolamento para algo que está fora da sua compreensão.
Em relação à fragmentação do sujeito Cunningham divide a ação em três estórias que ocorrem em tempos diferentes: Virgínia Woolf e o processo de criação de Mrs. Dalloway, durante a década de 1920; Laura Brown, uma mulher casada com um herói da Segunda Guerra Mundial que lê o romance de Woolf na década de 1950 e Clarissa, uma editora homossexual, que está preparando uma festa para um amigo soropositivo (AIDS) no final do século XX.






A segurança financeira se opõe à insegurança afetiva e à psicológica. Ou seja, todas elas são bem estruturadas financeiramente, têm boas condições de vida por pertencerem à classe média. Virgínia Woolf que mora em uma casa enorme em um bom bairro londrino; Laura Brown sustentada pelo marido, um herói da Segunda Guerra Mundial; Clarissa Vaughan é uma mulher que se sustenta, além de independente.
A insegurança afetiva e psicológica de Virgínia Woolf tem relação com um transtorno mental muito avançado que aliado a mudança de Londres para Richmond, gera uma insatisfação muito grande, isolando-a ainda mais da realidade em que vive; Laura também repleta de inseguranças vivenciava a angústia de uma mulher que perdeu a chance de ousar ser diferente do que a sociedade lhe exigia, com isso ela tentava se consolar através dos livros, mas não os livros fúteis que as outras donas de casa e esposas liam, e sim livros de peso escritos por escritores célebres; por último, Clarissa, por mais que tenha tido a ousadia de se juntar a outra mulher e criar uma filha, numa sociedade mais moderna, também é cobrada e infeliz por suas antiquadas noções sobre lesbianismo e por não ter dado a sua filha a chance de saber quem é seu pai.





























CLARISSA DALOWAY X SEPTIMUS

O equilíbrio entre a vida interna com o mundo externo se dá a partir do momento em que Clarissa Dalloway celebrando uma festa fica sabendo do suicídio que um jovem desconhecido havia cometido. Este é um momento de contraste entre a morte e o momento de felicidade onde Clarissa passa a refletir sobre a importância de sua vida. No entanto a identidade da heroína do romance de Woolf é preservada, ou seja, no final do livro ela acaba se sujeitando à vida que tem. O tema da morte e da loucura acaba culminando no suicídio de Septimus. Percebe-se, então, que em Mrs. Dalloway o momento de catarse de Clarissa, causado pela morte de Septimus, não causa descentralização, mas sim leva a protagonista a se reconciliar com as suas circunstâncias. A solução para os problemas desses dois personagens se dão em sentidos opostos: a de Clarissa se dá de forma feliz e suave, enquanto que a de Septimus se dá de maneira tortuosa e infeliz.





















CONSIDERAÇÕES FINAIS

A construção do romance Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf, trata, sobretudo, das condições da mulher na sociedade inglesa no século XX. Com uma estratégia pouco conhecida na literatura de seu tempo, Virginia faz acontecer em um dia na vida de uma mulher uma tempestade de reminiscências e reflexões que carregam o leitor para o mundo até então impenetrável do individuo, a alma. Contando com um aporte contextual como as relações sociais depois da Primeira Guerra Mundial, a história de Clarissa é revelada tanto externamente quanto internamente. Clarissa pensa sobre sua condição, suas escolhas e seus desejos e está constantemente vigiada pelas horas que batem e que vão levando todo o tempo que ainda resta da vida. O desejo de mudança, de independência e de um lugar reconhecido entre o sexo masculino eram os ideais latentes da época. Tudo isso faz com que a obra de Virgínia ganhe destaque na Literatura inglesa e seja considerada uma escritura rica e inovadora em todos os aspectos.
Não se pode falar em Mrs. Dalloway sem também falar de The Hours. Conhecer essa obra implica fazer uma leitura mais concisa de Virginia Woolf. A estratégia espetacular usada neste livro para reescrever Mrs. Dalloway já é bem reconhecida entre os críticos e a obra tornou-se um marco tanto na literatura quanto no cinema. Cunningham além de retratar a vida da própria autora de Clarissa, também a reconstruiu. Reconstruiu também sua personagem e a deu vida em tempos e espaços diferentes. Não bastasse isso, entrelaçou-as não só pelas suas características e seus dramas, mas também pela representação do antigo Septimus através de Richard. Assim, Virginia Woolf transcorreu e perpassou por tempos, lugares e pode optar por mais de um destino para si e para suas personagens. No livro de Cunningham, o drama de Clarissa, e não menos o de Virginia, é representado por uma mãe inconformada com a vida de dona-de-casa que opta pela vida própria, pelas angustias de uma mulher que se volta a sua juventude perdida quando vê seu amigo e amante perdendo-se nas alucinações de uma doença fatal. E representa também Virginia Woolf em As horas como uma escritora atormentada pela loucura que decide encher os bolsos de pedra e entrar em um rio, porque não pôde mais suportar as horas que deve seguir.





REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AUERBACH, E. A meia marrom In: Mimesis: a representação da realidade
na literatura universal. 4º ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 1998.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade.
Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. Acessado em 05 Dez 2010. Disponível em : www.uesc.br/.../anais/PDF/MARIA%20A%20%20OLIVEIRA.pdf

DEGENHART, C. Michael Cunningham author interview. Lycos, [S. L],
12 nov 2010 Disponível em:< http:/entertainment.lycos.com/thehours_int.asp>.
Acessado em:12 nov 2010.

GENETTE, G. Palimpsestes: la litératture au second degré. Paris: Seuil, 1982. Acessado em: 03 Dez 2010. Disponível em: prope.unesp.br/xxi_cic/27_35212548870.pdf

HUTCHEON, L. Poética do pós-modernismo: História, teoria e ficção. Rio de Janeiro:
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OLIVEIRA, Maria Aparecida de. As ex-cêntricas personagens femininas de as horas e mrs.
Dalloway. Acessado em: 12 nov 2010.
Disponível em: <www.uesc.br/.../anais/PDF/MARIA%20A%20%20OLIVEIRA.pdf >.

WOOLF, Virginia (1980). Mrs. Dalloway. Rio de Janeiro: Nova Fronteira