GABRIELA: UMA REPRESENTAÇÃO DA SENSUALIDADE DA MULHER MULATA NA OBRA DE JORGE AMADO


Autora: Cláudia Thais Souza Novaes
[email protected]

Orientadora: Profª. Maria Angélica Rocha Fernandes
[email protected]

Resumo: O presente trabalho tem por finalidade analisar a representação da mulher mulata na literatura brasileira, sempre caracterizada pelo sensualismo e até mesmo como símbolo sexual, tendo como foco de estudo o livro Gabriela, Cravo e Canela de Jorge Amado. Faz-se necessário saber o porquê da mulher mestiça ser abordada na literatura brasileira como símbolo da beleza exótica e sua imagem está sempre associada ao objeto de desejo masculino. Na verdade, este artigo busca a origem de determinados estereótipos vinculados aos negros no discurso literário desde sua formação até a contemporaneidade.

Palavras-Chave: Literatura Brasileira; Gabriela; Sensualidade.

Abstract: The present work is to analyze the representation of the mulatto woman in Brazilian literature, always characterized by sensuality and even as a sex symbol, focusing on study the book Gabriela, Clove and Cinnamon by Jorge Amado. It is necessary to know why the mixed-race woman be addressed in Brazilian literature as a symbol of exotic beauty and its image is always associated with the object of male desire? In fact, this article seeks the origin of certain stereotypes linked to the black literary discourse from its formation to the contemporary.

Key-Words: Brazilian Literature, Gabriela; Sensuality.


_______________________________
* Graduanda do curso de Letras Vernáculas da Universidade do Estado da Bahia ? UNEB, Campus XX ? Brumado - Bahia.
** Docente do curso de Letras Vernáculas da Universidade do Estado da Bahia ? UNEB, Campus XX ? Brumado- Bahia.

INTRODUÇÃO


Este artigo tem por finalidade analisar a construção da imagem da mulher mulata durante o percurso da Literatura Brasileira, caracterizada por estereótipos negativos que circulam no discurso literário desde sua formação até a contemporaneidade. A partir de pesquisas e estudos, é possível perceber que a ampla maioria dos escritores brasileiros retratou a mulata da mesma forma, isto é, com preconceito. Devido a sua origem, de raça negra considerada inferior, é que se compreende o papel de submissão aos trabalhos domésticos e habilidades culinárias, pois o papel das negras no contexto histórico sempre foi de subalternidade. Para melhor expor sobre o tema, foi selecionada uma das personagens mais sensual da Literatura, ou seja, Gabriela de Jorge amado que representa o símbolo da mulher nacional, portadora de uma beleza exótica, morena tropical que encanta a todos com sua alegria e vigor. As personagens Bertoleza e Rita Baiana também são mencionadas, pois a primeira representa a negra submissa e a segunda a mulata, que como Gabriela tem sua imagem sexualizada. É discutida ainda, a condição da mulata como a companheira de aventuras, de relacionamentos extraconjugais que deu sentido ao cruel ditado popular que diz "branca para casar, negra para trabalhar, mulata para fornicar". Contudo, o texto propõe uma nova imagem, um novo perfil para a mulata, protagonizando na literatura como um protótipo de mulher ideal.

GABRIELA: UMA REPRESENTAÇÃO DA SENSUALIDADE DA MULHER MULATA NA OBRA DE JORGE AMADO



Ao longo da Literatura Brasileira, isto é, desde a sua formação até a contemporaneidade, é possível perceber a construção da imagem da mulher mulata significativamente associada ao objeto de desejo e prazer, que atende aos ímpetos sexuais dos homens. Na verdade, essa é uma imagem que veio sendo construída desde o período da literatura colonial e que perpetua de diferentes modos na literatura contemporânea, apresentando um discurso que insiste em proclamar uma diferença negativa em relação às mestiças e as negras. A representação literária da mulher negra ainda surge ancorada nas imagens de seu passado escravo, de corpo procriação ou corpo objeto de prazer que saciava aos desejos de seu senhor, é como nos salienta Gilberto Freire (2006), que nos remete a lembrança da vinculação direta da negra africana na vida dos brasileiros, desde a fase da mama, do andar, da fala, do canto de ninar, em tudo o que é expressão sincera de vida, ele acrescenta ainda, que todos têm a marca da influência negra, "da mulata que nos tirou o primeiro bicho-de-pé de uma coceira tão boa. Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama- de - vento, a primeira sensação completa de homem" (p.367). Esse trecho evidência a subserviência da mulher negra sempre condicionada às atividades subalternas, e a mulata, condicionada ao papel de mulher objeto sexual.
A mulata é figura recorrente na nossa literatura, muitas vezes apresentada como mulher alegre, trabalhadeira, bela, exótica e dotada de uma irresistível sensualidade, o que de fato a tornou um símbolo do Brasil por trás do padrão de beleza e de uma imagem sexualizada. Ilana Seltzer Goldstein (2003), nos comenta sobre uma viagem que fizera à Europa e sobre um problema inusitado, ou seja, duvidaram de sua ?brasilidade? em diversas situações.

Uma vez, um conhecido na Alemanha comentou que eu era tímida, calada e não dançava muito bem. Mas o mais estranho, na sua opinião, era a minha palidez. Como isso era possível se eu era realmente habitante de um "país tropical"? Comentou ainda- em Alemão, pensando que eu não entenderia- que um homem esperto deveria saber extrair de mim o ?fogo? peculiar da mulher brasileira (GOLDSTEIN, 2003p. 19).


Diante este relato fica evidente que a mulata realmente é o símbolo brasileiro, que a cor de sua pele traduz o bronzeamento de um país tropical e que sua alegria e sua habilidade com a dança, transmitida durante os carnavais para todo o mundo é traduzida como fogo típico da mulher brasileira, sendo que as demais que não apresentarem tais características têm sua nacionalidade duvidosa.
Em Gabriela, Cravo e canela, Jorge Amado constitui uma das maiores representações da sensualidade da mulata na literatura do Brasil, e como ele mesmo confessa em entrevista de 1990 "Queria criar uma mulher que fosse símbolo da mulher brasileira". No entanto, Gabriela era uma bela morena, descrita, como mulher irresistível, com olhos insolentes e provocador, lábio de pitanga e um sorriso alucinante, seu perfume exalava o cheiro de cravo, despertando o desejo não só do patrão, mas de outros homens da cidade. Era uma talentosa cozinheira que agradava aos clientes não só com os seus deliciosos quitutes, mas também com sua presença encantadora. Desde o segundo dia na casa de Nacib, já dormiam juntos à noite, e assim, ele morria em seus braços ardentes e corpo insaciável. Para Nacib, o fogo de sua pele morena cor de cravo e cheiro de canela estava cravado no seu corpo, que não queria perder.
Ao se analisar o titulo da obra Gabriela, Cravo e Canela, é possível perceber ao apelo de sentido a que se remete, improvisando - se saboroso com exaltadas sugestões de paladar (cravo, canela), a que não pode ser considerada estranha insinuação, assim como (cor) que evidencia uma preferência de estilo, a morena, como tipo ideal de mulher, de fêmea. Gabriela é a morena tropical, cor de canela que se constitui no tipo ideal de beleza mestiça, reunindo encantos físicos peculiares da branca e negra, expandindo beleza e sensualidade.
Era uma mulher que aspirava por liberdade e a todo o momento resistia aos padrões patriarcais da sociedade vigente. Seus modos representavam uma rebelião contra o moralismo da época, além de expressar um caráter libertário que não se enquadrava diante as boas condutas. Audaciosa, ela germinava novos princípios de comportamento que até então eram inadmissíveis para as mulheres, pois Gabriela primava pela vida de solteira e por sua liberdade.

Tão bom ir ao bar, passar entre os homens. A vida era boa, bastava viver. Quentar-se ao sol, tomar banho frio. Mastigar as goiabas, comer manga espada, pimenta morder. Nas ruas andar, cantigas cantar, com um moço dormir. Com outro moço sonhar. (AMADO,1959 , p. 201).

Gabriela nutria sentimentos por seu Nacib, era contente "Era bom dormir com ele, a cabeça descansando em seu peito cabeludo, sentindo nas ancas o peso da perna do homem gordo e grande, um moço bonito" (p.180), mas, não queria ver-se casada com ele, questionava os moldes patriarcalistas, como exemplo, o casamento. Não entendia certas convenções sociais e não queria adaptar-se a elas, gostava de manter relações amorosas com seu patrão, mas não queria assumir uma postura de mulher casada, até mesmo, por sentir-se inferior a ele, pensava que não possuía atributos de uma senhora.

Seu Nacib era para casar com moça distinta, toda nos "brinques", calçando sapato, meia de seda, usando perfume. Moça donzela, sem vício de homem. Gabriela servia para cozinhar, a casa arrumar, a roupa lavar, com homem deitar. Não velho e feio, não por dinheiro, por gostar de deitar. (AMADO, 1959, p. 181e 182).

O comportamento sustentado por Gabriela, ou seja, a renúncia ao matrimônio, o prazer em manter vários parceiros sexuais sem compromisso com os sentimentos, está estreitamente relacionado com o passado histórico da negra de subserviência e da mulata como objeto de desejo e cobiça sexual, o que refletiu no percurso da literatura, sempre retratada como a "outra", a companheira de aventuras amorosas e extraconjugais, cujo fascínio seduz os mais virtuosos, mas, desmerecida do compromisso de esposa e senhora. Diante a história da literatura, um aspecto a observar é a ausência de representação da mulher negra como esposa e mãe, matriz de uma família negra, perfil delineado para as mulheres brancas em geral. No discurso literário a mulher negra e mestiça surge sempre em papel secundário, e representando perigo para a virtude dos homens e suas famílias.
Ao analisar o livro O cortiço de Aluísio de Azevedo, que retrata a vida social no século XIX com uma visão naturalista, é possível perceber, como a mulher ganha uma nova configuração frente à literatura, deixa de ser idealizada como no Romantismo e passa a ser representada de forma realista, com suas implicações e defeitos, de modo a reproduzir os valores e a ideologia da classe dominante da época. Dessa maneira, pode-se entender o modo como as personagens Bertoleza e Rita Baiana são retratadas pelo autor. A primeira, uma negra sempre submissa a João Romão, sujeitando-se ao papel tríplice de caixeiro, de criada e amante, sendo que a segunda é a mulata caracterizada como bela, sensual, perfeita e perfumada, que hipnotiza o português Jerônimo tornando-o brasileiro. Fazendo uma analogia entre as mulatas Gabriela e Rita Baiana, ambas são dotadas de sensualidade, beleza, graça e vigor, possuindo habilidade doméstica e culinária, retratadas como incapazes de se adequarem aos moldes sociais, questionando algumas convenções, como o casamento, optando pelo relacionamento livre.
Verifica-se que a visão do autor referente à Rita Baiana, segue de acordo a sociedade da época, repleta de preconceito, que julgava os negros e mestiços como sendo de uma raça inferior, visão esta mantida pelo discurso literário, que apresenta a personagem Gabriela da literatura contemporânea com as mesmas características e de igual forma, inferior a mulher branca. Dessa forma, é lícito tomar por conclusão, que o desenho da mulata tornou-se um dos símbolos da brasilidade mal disfarçado, por trás do estereótipo de beleza e alegria, reflete uma imagem feminina sexualizada e racializada, inadequada para protagonizar um perfil ideal de mulher.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante de tudo o que foi exposto, fica evidente que a imagem atual da mulata reflete todo o contexto histórico percorrido pelo negro, a um passado de submissão, exclusão, humilhação e desvalorização humana. A mulher branca, sempre ocupou uma posição privilegiada segundo os valores da sociedade patriarcal, sendo útil para interpretar o papel de mãe, mulher e dona de casa, relevante para dar à família um status oficial e continuidade à linhagem familiar. Quanto às mulatas, assinaladas como mais dóceis, vigorosas e bonitas, assumiam o papel de coadjuvantes no cotidiano da vida social, dentro das casas-grandes, atuando como mucamas, submetidas muitas vezes a objeto sexual do senhor ou como iniciadoras das práticas sexuais dos filhos deste. Já as mulheres negras, sem os predicados que as tornassem passíveis de agradarem sexualmente o senhor patriarcal, cabiam exercer o papel animalesco, suportando tarefas exaustivas, suando nas tarefas diárias das fazendas e dos engenhos e esgotando-se nas cozinhas sob os gritos das sinhás. É nesse contexto, que percebemos o porquê da mulata está vinculada ao sexualismo, é pelo seu passado de opressão e abusos de variadas formas que ainda hoje surge como secundária tanto na literatura como na vida social. A literatura não só expôs a ideologia da sociedade burguesa oitocentista, como também reproduziu personagens marginalizadas, perpetuando valores preconceituosos e excludentes.
Para que se possa efetuar uma mudança de valores, banindo o preconceito quanto à representação da mulata, faz-se decisivo um novo discurso literário, em que a mulata não mais seja vinculada a imoralidade, não mais construída como rebelde, incapaz de adaptação aos valores morais e sociais, não mais sendo a coadjuvante familiar, mas sim, a senhora, a mãe do lar, uma mulher reconhecida pelos seus valores e conduta, não pela formosidade do corpo ou pelo ardor. A mulata pode ser retratada como símbolo da beleza brasileira, mas também como perfil de mulher ideal para as realizações humanas.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


AMADO, Jorge. Gabriela, Cravo e Canela: crônica de uma cidade do interior: romance. 9. ed. São Paulo: Martins, 1959.

AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. 36ª ed. São Paulo: Ática, 2005.
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 51ª ed. São Paulo: Global, 2006.

GOLDSTEIN, Ilana Seltzer. O Brasil best seller de Jorge Amado: literatura e identidade nacional.- São Paulo: Senac, 2003.

PATRICIO, Rosana Ribeiro. Imagens de mulher em Gabriela de Jorge Amado. ? Salvador: FCJA, 1999.