Universidade do Estado da Bahia – UNEB

Departamento de Ciências Humanas e Tecnologias – DCHT

Campus XVI – Irecê-Ba

 

Patrícia Morais Rosendo[1]

Maria Aurinívea Sousa de Assis[2]

 

 

Aspectos do mito e do herói: representações de Brasil em “A volta do marido pródigo”, de João Guimarães Rosa

 

 

Literatura que desconstrói as verdades estabelecidas na sociedade ocidental, a obra de Guimarães Rosa põe em xeque a tradição da supremacia da racionalidade como única forma aceitável de apreensão do real. Mostrar que existem outras formas de apropriação da realidade e que estas permanecem juntas num conflito permanente, são maneiras de apresentar as diferentes camadas de um texto, bem como apresentar os diferentes aspectos de concretização das concepções de mundo, levando em consideração a forma peculiar da escrita rosiana abordar questões que se relacionam com o paradoxo da condição humana, assim como as relações de ambiguidade presente na formação social brasileira.

Objetiva-se, neste trabalho, realizar uma análise do conto “A volta do marido pródigo”, de Sagarana, publicada em 1946, levantando aspectos da reversão do mito bíblico, apresentada na visão monolítica ocidental, destacando os pontos em que acontece um processo de desestabilização a tudo aquilo que é estagnado e que segue uma ordem regular das coisas. Mythos e o Lógos estão presentes na escrita de Rosa, para demonstrar as tensões que se encontram constantemente em conflito nas diferentes dimensões de apropriação do real. Para tanto, o estudo pautou-se na reflexão de alguns teóricos que apresentam uma matriz estilística e investigativa da obra do autor, procurando entender as particularidades e as rasuras existentes em sua obra, assim como apreender alguns elementos que caracterizam o processo de formação brasileira presente no conto.

O conto “A volta do marido pródigo” trata-se de Lalino, um mulato muito vivo, típico malandro que não aprecia o trabalho; abandona o serviço na estrada de ferro e o meio rural para procurar na capital a prosperidade que tanto sonha. Vai para o Rio de Janeiro, abandonando sua mulher, Maria Rita, a Ritinha como é conhecida por todos. Após algum tempo, depois de ter desfrutado das aventuras e tentações da cidade, Lalino encontra-se diante de uma situação delicada; sozinho, em uma cidade grande, sem dinheiro e totalmente frustrado, ele acaba voltando. Encontra uma oportunidade de cooperar como cabo eleitoral do Major, que anseia ganhar as próximas eleições. Graças a uma série de artimanhas que, no primeiro momento, parecem ser desastrosas para a política do Major, mas que na verdade são intrigas muito hábeis contra o adversário político, Lalino garante o sucesso eleitoral do patrão. Acaba por recuperar a consideração do povo e o amor de sua mulher.

No texto “Discursos, fronteiras e limites na obra de Guimarães Rosa”[3] situado no livro A Poética Migrante de Guimarães Rosa, Eduardo Coutinho toma como apoio dois recursos presentes na obra Grande Sertão: Veredas, que possibilitam discutir questões relacionadas à perspectiva mítico sacral e lógico-racional, ambas as visões encontradas nas ações oscilantes do personagem Riobaldo. Guimarães Rosa apresenta elementos de diferentes concepções para demonstrar que a lógica racionalista não é a única maneira para que o real se concretize, pelo contrário, o autor introduz a possibilidade de outra lógica, a fim de apontar às interposições que são apresentadas em ambas as partes. É importante frisar que a presença dessas características não acontece somente em Grande Sertão: Veredas, não obstante, essas peculiaridades também estão presentes em outras narrativas rosiana e encontram-se relacionadas ao olhar central de toda a obra.

No conto “A volta do Marido Pródigo”, a relação entre mythos e logos é intuída na rasura do mito bíblico “A volta do Filho Pródigo”, que conta a história do filho que apanha sua herança e parte para uma vida de esbanjamento, tempos depois, após gastar todo o dinheiro ele retorna arrependido, e é recebido pelo pai com satisfação e alegria. No conto analisado Lalino representa a figura do esposo pródigo. Cabe aqui ressalvar que o significado da palavra “pródigo” não está de maneira alguma ligado ao arrependimento e ao remorso como acreditam algumas pessoas, seu denotativo está relacionado “àquele que despende com excesso; dissipador, esbanjador, que distribui, faz ou emprega profusamente e sem dificuldade” [4], portanto, o Filho da parábola bíblica retorna após um longo período de vida pródiga. Na parábola, é possível compreender que o Filho, ao voltar para casa tenha mesmo se arrependido, no entanto em “A volta do Marido Pródigo” isso não acontece. O marido pródigo, após ter vivenciado as aventuras voluptuosas do mundo e ter sofrido grandes decepções, ao decidir regressar para a pequena cidade de onde saiu e, posteriormente, para os braços da esposa, em momento algum ele demonstra sentimento de culpa, de remorso, tampouco de arrependimento, pelo contrário, ele continua utilizando-se de suas astúcias pra alcançar o que deseja.

O papel do herói mítico possuidor de uma bravura destemida, cujo comportamento é dotado de grandes valores, características positivas, superiores e caráter irrefutável, é invertido na figura de Lalino, que possui atributos longe de serem compatíveis com as características do herói idealizado pela vertente existente. Ao trazer a proposta de um herói esbanjador, egoísta, preguiçoso e totalmente sem caráter, Guimarães Rosa coloca em xeque a visão unificada e excludente que foi imposta durante muito tempo pela sociedade ocidental. O típico malandro e o “jeitinho brasileiro” são elementos marcantes na trajetória do herói de “A volta do Marido Pródigo”, como afirma Benedetti:

“Ao entrar em cena, Lalino introduz uma ruptura no clima de trabalho; chega atrasado, tenta driblar as regras a que os demais trabalhadores se submetem, vem trajando de modo inadequado ao exercício de atividades braçais, finge não ouvir ou entender o sarcasmo dos colegas: “Os colegas põem muito escárnio nos sorrisos, mas Lalino dá o aspecto de quem estivesse recebendo uma ovação” (p.71). Não tem escrúpulos em tapear o chefe e prejudicar os companheiros, mente de modo descarado. É descrito física e moralmente como um mulato preguiçoso, astuto, sem caráter e imaginativo. Conversa muito e faz pouco ou nada, quando não leva os outros a trabalharem por ele. Mas consegue que seu Marra lhe abone as horas de atraso [...]”[5]

       

A malandragem de Lalino é um traço alegórico encontrado em alguns aspectos da formação social brasileira, em que as relações pessoais são cingidas de questões que demonstram comportamentos equiparados aos do herói rosiano, nas quais as leis são burladas e indivíduos conduzem as dimensões hierárquicas do sistema de forma que os benefícios estejam voltados para si próprios. De acordo com Damatta[6], “é no espaço entre as leis e os amigos que surge a malandragem, e o famoso “jeitinho” que diante de um possível impasse as portas se abrem para uma resolução satisfatória”, por esses motivos a malandragem é elemento presente no processo de formação da sociedade brasileira, não sendo justificável apenas como um tipo de ação que se concretiza em desonestidade, mas, sobretudo, um costume social de utilizar as incoerências sociais e as leis para extrair vantagem em tudo.

Ao se envolver com a política, Lalino se transforma em cabo eleitoral do Major Anacleto, mais uma vez utiliza-se de toda sua esperteza na trajetória eleitoral e, em tempo hábil consegue investigar e levantar as estratégias políticas do adversário do Major, ganha dessa forma a confiança e a admiração do patrão. Por sua esperteza e presteza Lalino é amado e odiado ao mesmo tempo e suas ações e o jeitinho utilizados pelo malandro culminam na vitória do Major Anacleto. É nesta parte da trajetória da narrativa que os traços dos aspectos da cordialidade tornam-se mais evidentes, direcionando a discussão para uma perspectiva da problemática situação política brasileira, que tem seus indícios nos primórdios do Brasil republicano.

Neste sentido, o texto “O homem cordial” encontrado no livro Raízes do Brasil[7], de Sérgio Buarque de Holanda, é uma forma original de mostrar as relações de cordialidade entre as diversas esferas da sociedade, que segundo o autor, advêm do passado histórico de uma colonização estruturada política, econômica e socialmente vinculadas às raízes dos colonizadores europeus. O autor apresenta questões referentes ao público e ao particular, atentando-se para acontecimentos em que os detentores do poder utilizam-se do patrimonialismo, com alto teor autoritário e dominador, aproveitando-se do lugar de poder e da autoridade conferida, para usufruir e administrar a coisa pública como proveito pessoal e daqueles que os cercam, da melhor maneira que lhe convém.

A formação social brasileira também possui elementos tradicionais provenientes da instituição familiar. Para o autor, é na esfera doméstica que acontecem as manifestações de aconchego e satisfação de certas vontades particularistas que foram repassados para o meio público. Neste contexto, atenta-se pra as dificuldades relacionadas ao processo de desvinculação dos laços familiares existente nas mais diferentes esferas da sociedade e, sobretudo, no campo político brasileiro. Buarque afirma que “só pela transgressão da ordem doméstica e familiar é que nasce o Estado e que o simples indivíduo se faz cidadão, contribuinte, eleitor, elegível, recrutável e responsável, ante as leis da cidade”. [8]

O conto “A volta do marido Pródigo” é uma representação das oscilações de interesse pessoal perante as convicções políticas do interior. A cordialidade é elemento marcante na narrativa rosiana, representada pelo marido pródigo Lalino Salãthiel, que visa a política como realização dos interesses particulares. As ações de cordialidade do personagem são concretizadas na passagem em que ele percebe o risco gerado a partir da aproximação do adversário político do Major com o pároco da cidade. Utilizando-se de sua esperteza Lalino convence ao Major a presentear o vigário com cargo político, leitoa, dinheiro e material para a construção da capela, configurando na política da troca de favores tão presente na atualidade política brasileira

É neste sentido, que as verdades estabelecidas na sociedade ocidental são desconstruídas. Com a proposta de desfazer e rasurar a hegemonia da lógica da racionalidade como verdade única e absoluta, Guimarães Rosa adiciona outra lógica que permanece em constante articulação no processo de apreensão do real, bem como permite relacionar a sua obra com elementos da formação social brasileira. É valido ressaltar que as inúmeras possibilidades de análises não são esgotadas neste estudo, longe disso, a obra de Guimarães Rosa possui caráter universal, o que possibilita inúmeras e inesgotáveis leituras.

 

 

REFERÊNCIAS

 

BENEDETTI, Nildo Máximo. Sagarana: O Brasil de Guimarães Rosa. São Paulo: Hedra, 2010.

 

COUTINHO, Eduardo F. Discursos, fronteiras e limites na obra de Guimarães Rosa; In A poética Migrante de Guimarães Rosa. FANTINI, Marli de Oliveira. (org.) Belo Horizonte: UFMG, 2008.

 

DAMATTA, Roberto. O que é Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 2003.

 

ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo: Perspectiva, 2007.

 

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

 

ROSA, João Guimarães. Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

 

 

 

 



[1] Graduanda do 8º semestre do curso de Letras da Universidade do Estado da Bahia – UNEB -Departamento de Ciências Humanas e Tecnologias- DCHT – Campus XVI. Bolsista de iniciação científica PICIN/UNEB, pró-reitoria de pesquisa e ensino de pós-graduação. 

[2] Docente orientadora

[3] Coutinho (2008)

[4] Novo Dicionário Aurélio

[5] Benedetti, (2010) p.60

[6] Damatta, (2003)pp.40-1

[7] Holanda (1995)

[8] Holanda (1995) p. 141.