"A verdade? Ora, a verdade era aquele
mar, o misterioso mar com suas ondas
espumejantes arrebentando nas pedras" .

Depois da sedução como pecado original tem-se o despertar do amor, que é o tema maior dos cortes seqüenciados. A sedução de Capitu aparece causando intensa emoção a Bentinho. Dom Casmurro, de Machado de Assis, escrito no ano de 1900, agora é transcrito ao cinema nacional por mãos sabedoras de Lygia Fagundes e Paulo Emilio Sales, num momento crucial onde a ditadura impele muitas das obras lançadas no período: novembro, 1969.
A adaptação livre para cinema remete um ponto de vista simulador, contando com um dos nomes mais respeitados do cinema, Paulo Emilio Salles.
Capitu existe pela transparência de sua própria imagem, a contar pelo romance Dom Casmurro, a leitura exige um grau amplo de entendimento psicológico, ou seja, a dissimulada com olhos de cigana engana de tal forma que a narrativa toma por liberdade um rumo que, algumas vezes, se corrompe com o enredo.
O roteiro é repleto de flash-backs, ou seja, como o texto é uma adaptação para cinema, existem permeados ao texto muitas imagens como migalhas de grandes sentidos com enunciados bastante simbólicos, de tal maneira que o sentido seja o mais visível possível.
Desde menina, Capitu tem por índole a insignificância das coisas a que se compromete para o resto da vida. Retarda o silêncio absoluto deixado pelas emendas de um estado como personagem, e transgride a um universo enigmático e sombrio, onde o pecado reina e comanda sua imagem como mulher de um século.

Capitu colhe uma pequena maça verdolenga. Leva a maçã até os lábios, sente-lhe o perfume. Parece agora distraída com o canto de um passarinho, é um sabiá? Inclina a cabeça para o peito de Bentinho. (1993, p. 28)

A aproximação entre o significado de relação entre Capitu e Eva se dá de forma ampla e dimensionada. A retração ao período (tempo) em que foi escrito o romance e o da adaptação é de mais de um século, portanto, algumas imagens por mais cuidado possível, ainda que não refletidas, são produtos de um meio moderno e instantâneo.
O poder sincrônico em todo o enredo se dá por flashes, então supõe-se a ausência de diacronia que dá lugar à sincronia em diversos tempos da narrativa.
Capitu é uma personagem completamente maniqueísta e sedutora. Retrata o pecado e sua invenção desde o início dos tempos. Mulher oblíqua que transforma um mundo em porções de imagens dentro de um caos fora do padrão.
Em alguns boatos desta mesma narrativa tem-se um relato em oposição: Bento como o ser que engana, que manipula todos os acontecimentos à sua volta a fim de inquiri-los ao favor da culpa de Capitu.
Todavia, é certo que Bento se leva por emoções e foge do controle consciente que exerce sobre o romance original. Neste caso ? por ser uma adaptação destinada ao cinema ? os autores almejam o máximo pela semiótica em lombadas de significados e reflexões a respeitos de cada um dos atos em particular.
No caso da defesa de Bento, tem-se o mesmo como vítima, ao invés de manipulador.
Adentra-se, por estas explicações, em um universo psicológico e filosófico cheio de inundações. O determinismo baseia-se no fato de que as personagens não possuem substância moral.
Não há em Bentinho a busca pela identidade como fundamento racional. Antes disso, torna-se uma necessidade emocional, porque um dos grandes problemas é a falta de noção da própria individualidade, e este é o pavio a lhe interferir em muitos dos acontecimentos da narrativa; o amor, ciúme e orgulho são manobras a transformá-lo em um ser irracional.




Sobre as personagens

Capitu, a enigmática Capitu, traiu ou não Bentinho? A pergunta que continua sem resposta. Ao longo da trama ela investe na conseqüência de ter certeza do amor pelo homem/Bento. Uma personagem dura e que, através do tempo, mesmo com o passar, não muda o seu trajeto, continua irrefratável e muitas vezes, pouco inquieta.
Inteligente e prática, ou esperta e manipuladora. Tem grande capacidade de dissimulação com seus olhos de ressaca e de cigana oblíqua e contribui para fortalecer a dúvida sobre a paternidade de seu filho.Ao fim, acusada pelo marido, não responde à acusações. Seu silêncio confere grandeza e contribui muito mais para acentuar a dúvida sobre seu possível adultério.

Bentinho. Seu perfil acompanha-se em três fases distintas: Bentinho, Doutor Bento Fernandes Gonçalves e Dom Casmurro. Revela-se uma criança marcada pela timidez. Formado aos vinte anos em Direito, com riqueza muito mais da herança do que do próprio trabalho. Enfim, marca-se pela fase de Casmurro, pela solidão e mágoa.

D. Glória. Mãe de Bentinho, com a morte do esposo assume cedo o comando da casa. Ao passar do enredo revela-se religiosa e apreensiva, comandante e apegada às tradições e passado. Exprime de forma exemplar a fidelidade aos bons hábitos. D. Glória representa uma grandeza espiritual, uma verdadeira santa ou, como diria José Dias, uma santíssima.

José Dias. Agregado da família, muitas vezes impertinente e evasivo com suas palavras. Ama os superlativos, que representam sua marca registrada. É bajulador e tem ideias explosivas com relação à família. Tem o hábito de estar sempre a culminar e interferir em planos e ideais da família.

Escobar. Amigo de Bentinho. Casado com Sancha, revela-se um tanto misterioso ao passar da trama. Teria participado de um trio amoroso? É antes de tudo tragado pela morte sem possibilidade de defesa. Um mistério.

Ezequiel. Filho de Bentinho com Capitu, chamado de "o filho do homem". Imita a todos e, principalmente com muita maestria, o Escobar. Eis a face do mistério em ser ou não filho de Bento.

Espaço e tempo na Narrativa

A narrativa se dá em muitos lugares que fizeram parte da realidade das personagens centrais. Como exemplo se tem o Engenho Novo, Casa de D. Glória, Casa de Bentinho, a casa de Escobar no Flamengo, Passeio público entre outros.
Os espaços se dão à medida que adentram na narrativa as lembranças, neste caso, através do foco fílmico. Assim sendo, o espaço no enredo é considerado predominantemente psicológico, onde a narrativa se irrompe para dar espaço às reflexões através de imagens que vão e voltam sob o olhar da câmera.
O tempo na narrativa é no presente. Neste caso de Capitu, como se a câmera fosse o narrador por detrás de um olhar que abrange todos os cantos do espaço. E, portanto, todos os fatos referidos fazem também parte do passado onde por denotação, os flash-backs representam as imagens em ilustração do foco. Os acontecimento da obra Dom Casmurro iniciam no ano de 1857 até a separação de Bentinho, em 1872.









Capitu travestida de Eva

Capitu trai ou não? Eis o que não há sentido se perguntar, sendo isso reflexo da fuga do verdadeiro sentido a que se a obra se detém. Existe sim, o predomínio e, além de tudo, a fusão por completa da traição de Capitu, porém, mesmo com algumas "provas" que não se falam, a angústia de Bento o torna Dom Casmurro, no caso do roteiro, um homem reflexivo, a que tal citação o reproduz significativamente:


Senta-se na cadeira de balanço e leva as mãos entrelaçadas á nuca. Recosta a cabeça no espaldar. Cerra os olhos e fica ouvindo o canto de um passarinho lá fora. A fisionomia relaxada vai tomando um ar de sonho. O canto do passarinho parece agora mais distante, abafado pelo rumor áspero do mar. (1993, p. 177)

Bento está em dois lugares ao mesmo tempo, na criança e nele mesmo. E resolve este problema mais tarde a decidir que o filho não é seu. Há ainda, uma noção precária de sua identidade e a felicidade interna é, assim afirmada por ele, vizinha da loucura.
Sente portanto, um tremor pelo filho que tem, pois descobre a semelhança entre Ezequiel e Escobar.
Segundo John Gledson, do livro Machado de Assis: Impostura e Realismo:

...Especialmente na imagem dos "olhos de ressaca", já examinada, as insinuações metafóricas invadem esse realismo. Evidentemente, Escobar é apresentado muito mais tarde e, no seu caso, a descrição física logo nos abre caminho para a contaminação metafórica. (1984, p. 43)

Procedem-se metáforas como fatores exclusivos do sentido dúbio do texto. Capitu esquiva-se através da retração de mulher desgostosa. Aflita e desesperada, engana através de sua índole criativa e necessária à trama.
Traveste-se Capitu de Eva, retoma o tema do pecado original sem ainda, se afastar do contexto bíblico e seu elementos mitológicos: ao adaptar ao universo ficcional uma serpente somando-se à maça.
Capitu engana sem tom pegajoso nem distração. Seu cuidado retórico é parte de sua natureza de ludibriar sem sofrer qualquer alteração no pragmatismo. Aflige-se no momento em que o universo conspira contra Bento, do livro, traz-se um exemplo de passagem:


Bentinho, atando rapidamente o laço da gravata, a voz alta, enrouquecida: - Eu disse que Ezequiel não é meu filho. Por um brevíssimo espaço de tempo, Capitu fica em silêncio. Do pasmo ela passa para a indignação, está indignada, mas se esforça, quer se controlar. (1993. p. 173)

Neste momento é que se nota a força de possuidora nas mãos de Capitolina. Seu silêncio, antes de responder ao marido, retrata sua ornamentação no diálogo em forma de paragem e nitidez, para, cada vez mais, deixar explícito sua fé, bondade e carisma, como se quisesse e pudesse se dispor e persuadir de forma inconsciente o telespectador.
Usa palavras categóricas, usa-se da coragem em dizer o nome de Deus e tenta, deste modo, levar o marido à loucura e execução da própria vida. Bentinho, que se torna ausente de si, ao comprar o veneno e, logo após uma tentativa de suicídio, tenta a morte de Ezequiel, porém, falta-lhe a coragem de matar a vida por detrás de Escobar, seu melhor amigo.












Sobre Tratado e Caos no cinema brasileiro contemporâneo

A primeira formulação do ser humano foi a linguagem como fator de organização do caos. Com relação à condição cultural, a clássica palavra do próprio Paulo Emílio Salles confirma uma introdução ao estudo do cinema. Isto reflete na busca interminável pela posição do povo enquanto fonte temática, como contrariedade ao estrangeirismo e seu cinema de constante entretenimento.
Ao analisar através de uma perspectiva contemporânea o estado do cinema nacional, se alinham o chamado neo-liberalismo (que liderou os debates sobre economia política após a ascensão de Collor ao poder), e, por outro lado, investigadores da identidade nacional que fortalecem o sentido do cinema autoral e de pesquisas de linguagem, pois existe em si um desejo de cuidado com o patrimônio.
Um projeto de modernidade é impensável sem a figura da radicalização do anseio moderno de preservação e de ligação com um passado. Nesta artigo, trata-se de um elo que compromete tanto a vida denotativa do romance de Machado de Assis como a interpretação austera e fragmentada de Lygia Fagundes com Paulo Emilio.
No roteiro Capitu, existe uma incorporação de personagens e temática através da retórica da câmera, ou seja, existe uma representação cujos aspectos são de uma realidade próxima de se tornar patrimônio.
O cinema atual se enlaça em um discurso que apregoa técnicas como forma de atingir o público. No caso da obra em análise, existem mesclas de imagens junto aos flashes e signos que refletem ao telespectador um olhar apurado de suspense e retração de sentidos a que a obra se converta.
Com estas paragens, o roteiro mostra-se profícuo, mas, de tal forma, concede imagens saudosistas. Não se defende a modernidade virando as costas ao passado e sim, muito do contrário, o tendo sempre como ponto referencial de partida à adaptações com cunhos frutíferos e culturais.


Condenação ou Absolvição?

Tem-se por atributo à Machado, antes de qualquer coisa, o estudo do ciúme. Por outro lado acusa-se como digno em analisar o estudo psicológico do adultério feminino.
Seja qual for a tomada de análise por parte do leitor, trai por sua vez na medida em que se identifica emocionalmente com um personagem, e esquece-se a grande proposição da obra: o pensante Dom Casmurro, que no caso da adaptação Capitu, reflete-se sob o olhar periférico da câmera.
Existem possíveis verdades sobre Capitu e sua cruel fantasia, mas acima de tudo, a verdade poderosa está em analisar sua figura como um retrato enigmático e sedentário dentro de uma sociedade soberba e cruel.
No caso, em Capitu, se identificar com ela mesma, que seja, ou até mesmo com Bento, é não compreender a reflexão exigida pelo autor (roteiro) por ter certa distância entre os caracteres dentro do conjunto textual.

O inferno como destino inevitável

Capitu se refere:

É horrível dizer isto, mas de vez em quando, lá no fundo, chego a pensar que o céu não existe, só existe o inferno, só o inferno, e este sim é inevitável. (1993, p. 93)

Este acontecimento se baseia na estrutura mitológica da invenção de um pecado acerca da fuga da realidade. O ser humano está condenado a ser livre, por isso almeja possibilidades de escapatória quando não se tem mais vestígios de realizações de boa natureza. No caso de Capitu, sua imaginação ficciona um inferno como ausência dos erros cometidos, e, no entanto, se contradiz ao hábito particular de ir à igreja a todo o momento.
Bento significa o posicionamento de frente à família, e depois do diálogo da esposa, ele transcorre ao silêncio:

Pois agora de castigo vai ter que rezar dois mil padre-nossos pelo mau pensamento! Minha quota-parte lá no seminário andava por aí... ? dá uma risadinha e procura, inclinando a cabeça para o ombro, tocar a face na face de Capitu. (1993, p. 93)

A coragem é parte integral do homem. A mulher age pela emoção, foge-lhe a razão. No entanto, é por um aspecto violado que Capitu relaciona o seu destino com o inferno. A violação de regras divinas, ou seja, se posiciona como acusada antes mesmo do tribunal de contas. Uma farsa que se adapta muito bem dentro da própria existência.
Adentra-se à análise outra pergunta que não se cala: Ezequiel era um extremo imitador? Ou era parecido som seu pai e sua possível irmã? Nem Escobar, nem mesmo Capitu deixam transparecer alguma disposição de desconfiança em exposição ao telespectador/leitor.
Capitu desaprova as imitações do filho, talvez este seja um dos signos que remetem à desconfiança de uma possível tortura com relação à trama e á sua vida. Porém, é no momento do velório de Escobar que Bento percebe e se detém a observar o olhar e forma de Capitu, a chorar como a esposa Sancha em seu enterro, à segurar as bordas de seu caixão e deixar resplandecer o fio atônito de angústia e tristeza dali à diante.













Possíveis conclusões

Como dito no início deste artigo, talvez a única verdade contida seja o misterioso mar com suas ondas arrebentando nas pedras. Ou até mesmo isso, talvez o mar seja alguma metáfora respingada de um sentido contrário ao que se pensa em dizer sobre qualquer dos personagens.
Se houve a traição por parte de Capitu, isto fica a critério de cada leitor/telespectador ou corrente ideológica.
Dom Casmurro, o velho Bentinho como advogado nato de notoriedade tinha desejos de aderir á absolvição ou condenação, à apoiar ou não qualquer pessoa que viesse, por sua vez, a ser um possível cliente de seu escritório.
Matacavalos tornou-se velha, longe, mais distante que o mais remoto desejo da consciência humana. este desejo sumiu, adentrou-se num mundo mágico onde todas as faces sobre o amor desde a infância esgotou com um horizonte nublado e cruel.
A adaptação para um roteiro confia uma simulação performática da obra e, com muita precisão, Lygia Fagundes e Paulo Emilio adaptam da obra Dom Casmurro uma fantástica e intrigante maneira de deixar Capitu ainda mais enigmática, com seu semblante mais estupefato e corriqueiro. Como à obra Monalisa, de Da Vinci, com seu olhar inebriado e longe, esta, transmite ao leitor/telespectador uma noção riquíssima de cultura e bel prazer.
Desconta-se a transposição da possível verdade, ou até mesmo, de uma das mais tenras mentiras de séculos atrás, mas mesmo com tantas histórias e relatos, tantos roteiros e tantas teorias sobre um mesmo tema, existe, de certo aspecto uma força centrífuga que retrai todas as formas de sentido da obra a um mesmo núcleo, chamado por imaginação, condecorado como possível análise de uma obra onde o tédio, o ódio, o ciúme e amor caminham de mãos dadas e discretamente poluídas por um destino mais tardio e cruel do que se imagina.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

- ASSIS, Machado. Dom Casmurro. Klick Editora, São Paulo. 2001;
- TELLES, Lygia Fagundes. & GOMES, Paulo Emilio Salles. Capitu. Editora Siciliano. São Paulo. 1993;
- GLEDSON, John. (tradução de Fernando Py) Machado de Assis: Impostura e Realismo. Editora Schwarcz LTDA. São Paulo, 1984;
- LAPERA, Pedro Vinícius. Cinema Brasileiro Contemporâneo- UNIrevista ? Vol 1, nº 03; São Paulo. (julho 2006);
- http://www.revistacriacao.net (acessado em 25/05/210, às 11h10min).