A literatura nunca é apenas literatura, o que lemos como literatura é sempre mais é História, Psicologia, Sociologia. Nela está envolvido muito mais, ao lermos um texto literário encontramos história, geografia, sociologia há sempre diálogos entre diversas áreas, neste sentido é preciso recorremos a diversas estratégias para análises e reflexões de textos literários, entre elas entender a tensão entre o discurso literário e o histórico.

Entre as várias estratégia podemos também conceber a literatura em uma  perspectiva problematizadora da história, pois neste sentido possui, sem dúvidas, um esquema de referências ao passado. O resgate de um acontecimento feito através da obra de arte sempre gera polêmica, pois nesse com um novo olhar ao passado podem-se descobrir “verdades” até então não reveladas, devido às relações de interesse e poder de “grupos” conservadores.

A História da Literatura contemporânea, aliada aos modelos progressistas de retratar a arte pelas diferenças, como é o caso da literatura pós-colonialista, verificou que era necessário problematizar, a sua maneira, seu contexto social ou seja, ter a consciência de que a história vinha sendo contada “de cima”, sob um misto de interesses e ideologia dos historiadores.

E neste contexto que podemos citar as obras de Saramago ”Memorial do Convento” e “Jangada de Pedra” e também a obra de Agualuza “Nação Criola”. Estas obras despertam novos horizontes, que mostram de forma bem diferente a história. Nelas as verdades históricas são problematizadas e ainda são contestadas.

O discurso literário presente nas obras tanto de Saramago como de Agualu reside em contrastar a visão da parte dominante com a visão dos subjugados. Em Memorial do Convento percebemos que através da íntima relação entre a narração ficcional e a histórica, o romance critica a exploração dos pobres pelos ricos que origina a guerra entre os indivíduos e a corrupção pertencente à natureza humana com especial foco à corrupção religiosa.

No Memorial do Convento de José saramago existe diversas e vastas personagens que formam dois grupos opostos: A aristocracia e o alto clero representam o grupo do poder, enquanto o povo e os oprimidos representam o grupo do contra-poder. Os primeiros são forrados pela falsidade, ridículo, ostentação e indiferença pelo sofrimento humano ou crueldade mal disfarçada de religiosidade. Os segundos são os heróis esquecidos pela História oficial, que ganham relevo e rebeldia através da ficção do romance.

aparece o bispo debaixo do pálio rico, e depois as imagens nos andores, o regime intermináveld e padres , confrarias e irmandades, todos a pensarem na salvação da alma, alguns convencidos de que a não perderam, outros duvidosos...Lisboa cheira mal, cheira a podridão, o incenso dá um sentido a fetidez, o mal é dos corpos, que a alma essa é perfumada.(SARAMAGO, 1997, P. 28)

 

            No trecho percebe-se a ironia utilizada para representar uma crítica a um dos grupos que se encontravam no poder, ou seja, o alto clero sendo o foco de crítica de saramago. Uma visão ficticia construída dos fatos históricos construídos a partir de uma visão particular.

            Para representar o segundo grupo Saramago cria Baltasar um soldado de guerra, foi mandado embora do exército por já não ter serventia nele, depois de lhe cortarem a mão esquerda pelo nó do pulso, estraçalhada por uma bala.( SARAMAGO 1997, p. 34)

O rei vigente de Portugal, que vive apenas de formalidades encenadas, sem qualquer espontaneidade ou emoção. Representa o absolutismo e a consequente repressão no povo miserável. Assim a faceta de Déspota Esclarecido é revelada quando este, ao desejar ser lembrado por uma obra magnificente tal como o Rei-Sol, manda construir um enorme palácio e um convento de Mafra para franciscanos, com o pretexto de cumprir a promessa que fez ao clero -influência que justifica e "santifica" o seu poder - para garantir a sucessão ao trono.

 

Então D. João, o quinto do seu nome, assim, assegurado sobre o mérito do empenho, levantou a voz ...prometo pela minha palavra real, que farei construir um convento de franciscanos na vila de Mafra se a rainha me der um filho no prazo de um ano a contar deste dia em que estamos. (SARAMAGO, 1997, P. 14)

 

As suas atitudes revelam então que é vaidoso, egocêntrico, megalómano e que governa consoante os seus desejos e sonhos, em que os meios justificam o fim, desprezando assim a miséria dos pobres e sacrificando o povo e a riqueza do país em nome da concretização do seu sonho maior.

A obra Memorial do Convento em duas histórias paralelas: remonta a história de Portugal através da construção do Convento de Mafra por D. João V; e paralelamente conta a história de amor entre Baltazar e Blimunda  envolvidos na construção da Passarola  máquina de voar,  idealizada e projetada pelo Padre Bartolomeu Dias. A história é irônica e crítica, revela episódios da história portuguesa no tempo da construção do Convento de Mafra, um grandioso monumento construído pelo rei D. João V, que persuadido pelo clero, oferece a obra a Deus para que a rainha engravide e lhe dê um herdeiro. A construção do Convento de Mafra envolve o sacrifício da população pobre, fazendo muitas vítimas no carregamento da grande pedra para o pórtico. Saramago satiriza e ridiculariza os hábitos da realeza, desnudando o poder exercido pela elite e pelo clero sobre o povo oprimido.

 

O narrador do Memorial do Convento opera, ao retirar da origem de Mafra  sua parte de eco nacional, para reduzi-lo ao voto pessoal do rei, uma outra perda se impõe: a ausência de justificação do monumento como símbolo da nacionalidade.(SILVEIRA, 1999, P. 245)

 

 

A obra de Saramago faz a relação da história, incluindo passado e presente. Segundo Maria da Alzira Seixos que fala sobre o espaço do romance português contemporâneo o espaço   deste romance é um espaço em que a noção de terra pátria continua a ser problematizada sobre tudo na sua relação passado /presente, ou seja, no processo de perguntar a história que visão nos dá do presente( SEIXOS 1984, p78)

Outra obra de Saramago que podemos citar e analisar levando em consideração o discurso literário e o histórico é a Jangada de Pedra (1986) constitui face exemplar, já que nesse romance o autor deixa transparecer suas dúvidas sobre a União Européia e propõe abertamente uma vinculação da Península Ibérica a sua área historicamente natural de integração: África e América Latina.

 

A Península parou o seu movimento de rotação, desce agora a prumo, em direção ao sul, entre África e América Central ..., E a sua forma, inesperada para quem ainda tiver nos olhos e no mapa a antiga posição, parece gêmea dos continentes que a ladeiam. (SARAMAGO, 2006 p. 284)

 

 

 

O fato de a referida obra vir à luz no mesmo ano em que Portugal e Espanha aliaram-se à Comunidade Econômica Européia, 1986, confere a ela densos ares de oposição a União Europeia.

Nesta obra Saramago problematiza a sua maneira, seu contexto social. O autor revela no romance uma leitura alternativa da história como uma crítica ao lugar que Portugal ocupou na União Europeia.

Na obra está presente a visão por meio do discurso literário a realidade nacional de povo empobrecido, atrasado social e economicamente, com percentuais de analfabetismo únicos na Europa, Saramago parece crer que Portugal e Espanha, embora esta se encontre melhor colocada no ranking mundial, constituem os dois lados de uma mesma moeda de pouco valor engastada na Europa.

 

Os europeus desde os máximos governantes aos cidadãos comuns, depressa se tinham acostumados, suspeita-se que com um inexpresso sentimento de alivio, á falta das terras extremas ocidentais, e se os novos mapas rapidamente postos em circulação para a actualização cultural do popular, ainda causavam a vista um certo desconforto ,seria tão somente por motivo de ordem estética...Na continação do século a Europa nem se lembrará mais do tempo em que foi grande e se metia pelo mar dentro. (SARAMAGO, 2006, p. 138)

 

À história de Portugal e Espanha, tão semelhante na gesta conquistadora e insidiosamente corruptora, opõe-se o ato sem história que é o nascimento da Península flutuante, ilha migradora, barca do pretérito histórico para o futuro utópico:

 

Vêem na aventura histórica em que nos achamos lançados a promessa de um futuro mais feliz e, para tudo dizer em poucas palavras, a esperança de um rejuvenescimento da humanidade. (SARAMAGO, 2006, p.160)

 

           

Para Saramago, o desgarramento da Península Ibérica haveria de obrigá-la a um encontro com sua autêntica realidade, de modo a desmascarar a ficção representada pelas tentativas de recriar a alma ibérica à moda do século XIV. Apagar vestígios, seja da consciência de uma fraqueza congenial, seja da convicção de uma congenial destinação a quintos impérios, para se pensar uma Península Ibérica outra.

A reflexão na obra  voltada para os desdobramentos das significações implicadas no desgarramento da Península Ibérica, enquanto fato real e construção simbólica, permite concluir que em Jangada de Pedra os movimentos fundante e último são de esperança. A expressão mais visível dessa esperança é o engravidamento coletivo das mulheres da Península.

 

Foi o caso que, de uma hora para outra, descontando o exagero que estas fórmulas expeditas sempre comportam, todas ou quase todas as mulheres férteis se declararam grávidas, apesar de nãos e ter verificado qualquer importante alteração nas práticas conceptivas delas e deles. (SARAMAGO, 2006, P. 280)

 

Uma reflexão sobre os torneios dessa negação e da defesa utópica de uma reconquista da própria identidade, numa configuração ideal em que Portugal e Espanha se reencontram e se reconhecem em si e entre si, constitui o propósito da obra de saramago. Quando, em Portugal, Joana Carda riscou o chão com uma vara de negrilho, Joaquim Sassa atirou ao mar uma pedra de peso descomunal, José Anaiço passou a ser acompanhado por um bando incontável de estorninhos e Maria Guavaira começou a desfazer um pé de meia, enquanto, em Espanha, Pedro orce batia os pés no chão, produziu-se uma insólita conjunção, que deu início a um rompimento geológico dos Pirineus, que se tornaria responsável pelo desligamento total da Península Ibérica, convertida em jangada, em útero pronto a gerar um novo destino.

Dentro desta perspectiva temos a obra de Agualusa “Nação Crioula” esta obra é um romance que apresenta uma versão periférica do comércio de escravo.  Nação Crioula mostra o romance que ocorreu no século XIX entre Fradique Mendes, um aventureiro português e Ana Olímpia Vaz de Caminha, uma figura capaz de enriquecer qualquer narrativa pela vida cheia de situações diferentes e antagônicas, pois embora nascida escrava foi uma das mulheres mais ricas e poderosas daquela região africana de cultura portuguesa, ou seja, Angola.

Ao mesmo tempo, lembramos que Fradique é um personagem que já Eça traçara sobretudo como um viajante, um turista do mundo, que vaga entre Paris, centro onde fixou residência, e a “exótica” periferia planetária  na qual também incluiria Portugal. Mas, o mais importante na imagem e no nome do navio (em) Nação Crioula, é que ele também é a figura mestra da história do tráfico negreiro, romanticamente fixada pelo famoso poema de tintas épicas de Castro Alves.

O próprio nome nos indica a amplitude do seu conteúdo, pois nação não está afeita a limites territoriais, mas sim a sentimento coletivo; crioula nos remete à mestiçagem. Mestiço é um outro sujeito que se constitui a partir de dois sujeitos distintos, guardando em si elementos de cada um, mas que se constitui em uma terceira voz distinta daquelas que o formou.

Fradique Mendes, ao contrário do que fizeram seus antepassados colonizadores, deslocou-se para fora do centro, “calibanizou-se”. É nessa condição, de sujeito híbrido, intermediário entre o centro de onde provém e a margem à qual progressiva se integra, a bordo de um navio negreiro chamado Nação Crioula, que Fradique acompanha a ex-escrava Ana Olímpia em fuga para o Brasil. “Desembarquei ontem em Luanda às costas de dois marinheiros cabindanos. Atirado para a praia, molhado e humilhado, logo ali me assaltou o sentimento inquietante de que havia deixado para trás o próprio mundo” (AGUALUSA, 2001, p. 11).

 

Desgraçadamente Portugal espalha-se , não coloniza. Somos assim enquanto nação, uma forma de vida mais rudimentar que o Bacilo de Koch. Pior uma estranha perversão faz com que os portugueses onde quer que cheguem e temos chegado bastante longe, não só esqueçam sua missão civilizadora, isto é colonizadora, mas depressa se deixam eles próprios civilizar, isto é descivilizar. ( AGUALUSA, 2001, P. 134)

 

No passado, a viagem fora para ele um exercício de elegante cosmopolitismo, mas agora ela se transforma em errância. O contrário da casa/pátria patriarcal é o deslocamento, a perda da fixidez do lugar – o fim da casa. A bordo do Nação Crioula, Fradique e Ana Olímpia erram pelo Atlântico., o Nação Crioula pode ser uma bela metáfora deste Fradique em versão pós-colonial inventado por Agualusa, desta espécie de Prospero calibanizado em que o personagem se vai transformando. O que nos leva a pensar no particular jogo identitário que Portugal estabeleceu com suas colônias

Nos três romances apresentados percebemos uma característica em comum que é apropriar-se de personagens e/ou acontecimentos históricos sob a ordem da problematização dos fatos concebidos como “verdadeiros”. Isto é, apresentam-se como  romances histórico e fazem a auto-reflexão causada pelo questionamento das “verdades históricas”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGUALUZA, José Eduardo, Nação Crioula: a correspondência secreta de Fradique Mendes. Rio de Janeiro: Gryphus, 2001

SARAMAGO, J. A jangada de pedra. São Paulo: Companhia da letras,2006.

_____________. Memorial do convento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.

SEIXO, Maria Alzira. A palavra do romance. Faculdade de Letras, 1984.

SILVEIRA, Jorge Fernandes da (org). Escrever a casa portuguesa. Belo Horizonte: UFMG, 1999.

SILVA, Teresa Cristina Cerdeira. Da batalha a Mafra: viagens pelas casas fundadoras da nacionalidade portuguesa.