Pedro da S. Ramos Neto
A relação dialética entre personagem e espaço em "O Cortiço" de Aluízio de Azevedo.
Pedro da Silva Ramos Neto Universidade Federal do Pará O presente trabalho tem como finalidade analisar a relação dialética entre personagem e espaço na obra "O Cortiço", de Aluízio de Azevedo, sob a perspectiva da coabitação de conceitos que se opõem e caracterizam uma nova tendência estética do Século XIX, conceitos esses fundamentados na relação de idéias contrárias que serão tratadas mais adiante, tendo como eixo principal conceitos como ordem/desordem, natural/sobrenatural", lógico/ilógico (Nonsense) na interação entre os personagens e o espaço da obra em questão.
Tendo como base a obra de Aluizio de Azevedo, para apresentar essas relações, "O Cortiço" é considerado um dos principais representantes dessa literatura que demonstra formas tipológicas, caracterização de ambientes, veracidade da realidade e principalmente a crítica sobre a sociedade humana e o ambiente que os próprios personagens recriam. Essas características estão bastante presentes no que se refere à estética naturalista pois é fundamentada na idéia de que o homem é produto do meio, ligadas aos pressupostos teóricos do determinismo, esses pautados nas teorias do positivismo de Auguste Comte, Darwin, Emile Zole (evolução das espécies) e Hypolite Taine1. Notamos então, que a obra de Aluizio de Azevedo é dotada dessas caracteristicas que podem representar uma sociedade montada ou recriada baseada no critério de (co)vivem juntas, transformam ambientes e a si mesmas, como nos mostra o autor de "O Cortiço", em cuja obra o ambiente é o retrato do poder, da luxuria, da avareza e das formas tipológicas que são recriadas e ambientalizadas.
Ao se pensar no espaço físico desse romance naturalista, tendo o determinismo como influência principal deparamo-nos com vários aspectos que destacam bem essas idéias, como por se tratar de um ambiente hostil, o cortiço
1 Definiu o homem como produto do meio (social e/ou natural), do momento e da raça a que pertence O Método ou filosofia de Taine consistia em fazer história e compreender o homem à luz de três fatores: meio ambiente, raça e momento histórico. Estas teorias foram aplicadas no movimento artístico realista.
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se apresenta enquanto espaço físico como o "modelador" desse cenário, porém, não descarta também a interferência dos personagens neste ambiente. Pois o que se define por espaço físico é a estrutura do lugar, a descrição lógica e objetiva do espaço como cenário; a ambientalização que o transforma, decorre do fator social que se apresenta no meio, ou seja, o ambiente é caracterizado pela função que os personagens desempenham no romance, transformando o cenário inerte em um cenário que realmente participa da diegese2 em que seu personagem protagonista é o próprio espaço físico: o cortiço. Observamos, assim, que quando analisado o crescimento desse espaço, o Cortiço, destaca-se nesse ambiente um personagem: João Romão. Porém, quando o cortiço cresce, não é o personagem que o modifica e sim o próprio cortiço que modifica o personagem, assim, podendo ser definido como que o homem é o objeto desse meio, ou seja, há aí a idéia de coisificação3 do homem, processo pelo qual se dá a alienação.
Insere também nesse contexto a idéia de socialização, pois, no decorrer da obra, o ambiente cresce, gerando assim, o aparecimento de personagens que podem ser descritos de formas definidas, porém com características diversas, criando assim uma relação dialética entre esses o espaço e sendo essa interrelação4 passiva entre ambos. A relação que caracteriza o espaço com os personagens pode ser definida pelas próprias sensações sugeridas no texto.
Nesse aspecto o naturalismo também define as expressões sensoriais como meio de descrever com formas objetivas a ambientalização do lugar onde se dá a diegese.
Como se (re)constrói o ambiente de ficção de "O Cortiço" a partir da relação dialética entre personagem e espaço? Esse processo de (re)construção pode ser verificado por meia da relação de tensão, de conflitos de valores, de insinuações moralistas e libidinosas, como expressões, que definem um ambiente pela sua relação com o personagem; a tensão é aqui marcada, por exemplo, pela disputa entre João Romão, dono do Cortiço e Miranda, dono de uma estalagem.
Intrinsecamente a essa relação de tensão percebe-se um conflito de valores representado pela significação simbólica de dois estabelecimentos: um cortiço e
2 A diegese é a realidade própria da narrativa ("mundo ficcional", "vida fictícia"), à parte da realidade externa de quem lê (o chamado "mundo real" ou "vida real").
3 Coisificação no sentido de desumanização do humano.
4 Relação por dependência indireta, quando a falha de um sistema coloca outro em estado de insuficiência
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um sobrado. Esses conflitos de valores, também define essa relação dialética, quando personagens se corrompem como é o caso de Jerônimo, homem que representava o trabalho e a disciplina e se corrompe pelo desejo de ter riquezas e pelo desejo de possuir a mulata Rita Baiana, e se transforma em um malandro preguiçoso; esse exemplo de Jerônimo também se enquadra nas idéias moralistas que o mesmo obtinha antes de se corromper pelos seus desejos por Rita. Esta, por ser uma mulata com grandes expressões sensuais, despertou nele o a libido acentuando assim a idéia determinista descrita por Hypolite Taine, pois a personagem Rita Baiana, "com sua sensualidade e seu sangue quente", como descreve Aluizio de Azevedo, fez Jerônimo esquecer seus valores e tronar-se um produto do meio.
Além desses personagens há outros também que se inscrevem nessa concepção dialética entre personagem e espaço-objeto, Pombinha encarna essa relação de forma diferente, por exemplo: mesmo morando no cortiço era vista como a flor-do-cortiço, sem maldades, frágil e pura.
[...] As mãos ocupadas com o livro de rezas, o lenço e a sombrinha [...] é mesmo uma flor(...)orçando pelos dezoito anos, não tinha pago a natureza o cruento tributo da puberdade.[...] (pag. 76)
Porém, a personagem Leone, a prostituta, faz com que Pombinha se rebele a seus desejos e a insere nesse mundo. Essas a personagens, entretanto não se rebelam com a impulsividade sexual imposta pelos moradores do cortiço;
Pombinha e Leone são descritas como a não vulgarização dos impulsos sexuais, contrariadamente a descrição das outras personagens do cortiço, vistos como personagens escravos dos impulsos sexuais. Aquelas, retratam mais uma forma irônica de sexo comercial. Ou seja, deformam o meio em que vivem, descaracterizando-o. Porém, o que descreve a imposição do meio sobre a personagem Pombinha, é a forma como Leone seduz Pombinha descrevendo, assim, a relação dialética entre as personagens e o espaço, gerando um conflito de valores, pois afinal, o autor descreve também a homossexualidade como um dos atributos decorrente desse espaço.
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Essa descrição da realidade, define um aspecto de normalização que, no século XIX, era descrita com muita objetividade, de forma minuciosa, com particularismos, personagens e espaços marginalizados e a visão biológica do homem. Procedimentos esses que se inserem sob formas que se adaptam a conceitos que, no âmbito social, principalmente no que acerca a cultura brasileira, se definem com dualismos5 dialéticos6, descrito no ensaio de Roberto Da Matta7.
Esses códigos sociais no âmbito literário, especificamente na obra naturalista "O cortiço", nos mostram que o ensaio de Roberto Da Matta, interpretado para a sociedade da época é bastante significativo, sobretudo porque, neste mesmo ensaio, se destaca também o sobrenatural.
Nessa perspectiva, em que esse dualismo se apresenta na relação entre personagem e espaço na obra "O Cortiço"? Já que essa ordem se refere às classes sociais e aos processos históricos e econômicos: seria a presença da lei, do controle e da rotina, bem relacionados também com a "comunidade carente, sem futuro" 8. A dialética de Da Matta se põe de forma bem expressiva, primeiramente da forma que o autor da obra "O Cortiço" expõe os tipos humanos, o espaço físico e o ambiente. Tanto é que uma das observações feitas a respeito dessa dialética caracteriza-se como "inspiração de conjuntos", a coletividade, ou melhor, está fundado no poder, no prestígio, nas influências o que caracteriza o ambiente social da obra de Aluísio. E a desordem como se caracteriza na obra ? O código da esquerda, a desordem, está na segunda linha interpretativa, fazendo o oposto, fala uma linguagem inteiramente institucional, abordando macroprocessos9 históricos e econômicos. Focalizam-se as leis e a lógica, fatores políticos e econômicos , traçando num geral, um perfil acabado do país10, visto como uma comunidade carente, e às vezes, sem nenhum futuro, no qual o otimismo vira pessimismo. É o ambiente familiar, da amizade, dos costumes. É
5 Doutrina que admite a coexistência de dois princípios: o bem e o mal, alma e corpo, espirito e matéria; dualidade moral, linearidade teórica: Marxista
6 Esta atrelado a um dever do homem na concepção filosófica de sua existência, tomando a ciência com compreensão do artista fundido em sua obra, um conceito oriundo do Gnosticismo.
7 Roberto Da Matta caracteriza a cultura brasileira em categorias sociológicas, cujo o dualismo representa a bipolarização em que os oposto se superam de forma dialética por códigos que podem ser representados por dualismo como a ordem e a desordem.
8 Idéia do discurso da precisão, da denúncia, marcas de conceito de 'ordem'.
9 Grandes feitos; referente a cultura de massa (população);
10 Referente apenas a parte menos desfavorecida da sociedade brasileira;
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um discurso empírico e populista em que o pecado, a salvação, a festividade e o malandro estão sempre presentes.
A ordem e a desordem não se apresentam no enredo do romance com aspectos sobressaltados como crítica social, mas, estão descrita em seus personagens, reforçando a idéia do homem como representação do meio em que vive, logo, conceitos atribuídos à representação de ambos, são marcados pelo determinismo e assim também marcados por conceitos já descritos acima sob paradigmas também antagônicos, logo, a dialética da ordem e desordem, definida pelos personagens, se apresentam como uma "visão social" e, nessa visão, podemos também observar essa dialética da relação dos personagens com o espaço-objeto. Nesse contexto destacamos alguns personagens como formas de representar essa dialética. Bertoleza, por exemplo, é mulher trabalhadeira, que possuía economias e trabalhava em uma quitanda.
[...] Bertoleza também trabalhava forte; a sua quitanda era a mais bem afreguesada do bairro. De manhã vendia angu, e à noite peixe frito e iscas de fígado[...] (pag. 11)
Era negra cafuza, e morava com João Romão, português ambicioso, traquina, movido pelo dinheiro e poder.
[...] Aquilo já não era ambição, era uma moléstia nervosa, uma loucura, um desespero de acumular; de reduzir tudo a moeda, tudo em dinheiro [...] (pag. 24)
Esses dois exemplos, podem definir bem, o que chamamos de dualismo dialético da ordem e da desordem no romance de Aluizio de Azevedo, nota-se ai esse dualismo representa um único ambiente, em um único espaço. Essas relações dialéticas da ordem e desordem, nos é mostrada na obra no diz respeito ao aspecto moral representada na personagem de Pombinha, em que a ordem é assim representada:
[...] Andava sempre de botinhas ou sapatinhos com meias de cor, seu vestido de chita engomado; tinha as suas joiazinhas para sair à rua, e, aos domingos, quem a encontrasse à missa na igreja de São João Batista, não seria capaz de desconfiar que ela morava em cortiço.[...](pag. 47)
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E a desordem se articula no mesmo nível espacial de dualidade:
[...] Pombinha soltou um ai formidável e despertou sobressaltada, levando logo ambas as mãos ao meio do corpo. E feliz, e cheia de susto ao mesmo tempo, a rir e a chorar, sentiu o grito da puberdade sair-lhe afinal das entranhas, em uma onda vermelha e quente [...] (pag. 171)
Diante dessas classificações explícitas, esbarramos na idéia do lógico, pois essas características são comuns, baseadas no contexto de vida dos personagens. E esse lógico caminha atrelado com o ilógico. Como considerar essa relação dialética sem levar para o lado incoerente da narrativa? Aqui o Nonsense, como algo que não possui diâmica lógica própria, porém, dotado de significância tendo ou não coerência. A ordem é coerente em qualquer discurso, pois ela distingue a normalidade e a funcionalidade de uma ação ou dialogo, já a desordem, foge desse conceito, não que ela seja necessariamente incoerente, mas se desvia do que é comum e trivial. O nonsense pode ressalta nesse caso essa relação dialética entre personagem e espaço físico, pois a lógica poderia definir a personagem Pombinha como uma representante fiel dos costumes do cortiço, uma vez que essa personagem não assimilou tais costumes criando assim o ilógico incoerente ao ambiente. O nonsense cria então na obra uma intencionalidade, uma significação. Outro exemplo disso é o personagem Libório, um velho que pedia esmolas no cortiço e vivia na miséria, porém era dotado de uma fortuna, essa situação ilógica e absurda se define também como nonsense, o ilógico com sua dinâmica lógica e dotada de significado.
Essas características tipológicas que acercam a obra, nos remetem também a influências que Aluízio de Azevedo obteve de Emile Zola, que também caracterizava seus personagens com tipologias agregadas a teorias darwinistas.
Além dessas influências observa-se em Aluizio de Azevedo influências baudelairianas no que se refere à simbologia do bestiário moderno para caracterizar seus personagens e o cenário de "O Cortiço". Trata-se aqui de uma representação alegórica de características marcantes com papel significativo na diegese da obra.
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[...] depois de correr meia légua, puxando uma carga superior às forças, caiu morto na rua, ao lado da carroça, estopado como uma besta [...]
[...]Leandra... a 'Machona', portuguesa feroz berradora, pulsos cabeludos e grossos, anca de animal do campo [...]
[...] Rita Baiana ... uma cadela no cio [...] (pag. 150)
Contrariamente ao que afirmam alguns críticos sobre os personagens de "O Cortiço" de Aluizio de Azevedo, caracterizando-os como personagens pobres e superficiais, essa zoomorfização do ambiente enriquece a representação desses personagens dentro do espaço coletivo do cortiço. Destaca-se, assim, múltiplas caracterizações desse meio no qual nos é revelada uma atmosfera quase sobrenatural do cenário:
[...] E naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade quente e lodosa, começou a minhocar, a fervilhar, a crescer um mundo, uma coisa viva, uma geração que parecia brotar espontânea, ali mesmo, daquele lameiro e multiplicar-se como larvas no esterco [...] (pag. 27)
[...] As corridas até a venda reproduziam-se num verminar de formigueiro assanhado[...] (pag. 42)
[...] Daí pouca em volta das bicas era um zunzum crescente; uma aglomeração tumultuosa de machos e fêmeas.[...] (pag. 41)
A relação dialética entre os personagens e o espaço revela o nonsense atrelado aos ideais estéticos do naturalismo, pois essas representações do bestiário é marcante e nos remete a um ilógico de finalidade sobrenatural. Daí o dualismo do nonsense em que o sobrenatural esta presente em uma obra eminentemente naturalista, dotada de pressupostos teóricos que negam o fantástico visando tão somente demonstrar a realidade.
A sensação do irreal é marcada pela própria estética naturalista que envolve a obra, pois, se levarmos em conta os personagens, sendo eles seres e tipos bem caracterizados e de grande representatividade, ao compararmos zoomorficamente suas atitudes, podemos nos desligar do efeito de real. Nesse ambiente, o espaço físico interage com esses personagens, fazendo com que o próprio leitor se sinta em outro lugar, no qual o ambiente se personifica e interage com os personagens e com o leitor.
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[...] Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas alinhadas.Um acordar alegre e farto de quem dormiu de uma assentada sete horas de chumbo. Como que se sentiam ainda na indolência de neblina as derradeiras notas da ultima guitarra da noite antecedente, dissolvendo-se à luz loura e tenra da aurora, que nem um suspiro de saudade perdido em terra alheia
[...] (pag. 40)
Então, essa atmosfera, que envolve o leitor, transporta-o para um lugar imaginário causando também uma desordem na narrativa e uma ruptura na diagese. Logo, esse efeito de real se distingue das formas emblemáticas que assume a estética naturalista, afirmando ainda mais a relação dialética do personagem e espaço do cortiço.. Assim, não devemos nos ater apenas em análises estruturais da narrativa e seus estilos poéticos; devemos levar em conta sua diversidade estética sofrida também pelo autor, suas tendências e sua visão de mundo. Retorna-se então nessa perspectiva os conceitos de nonsense, traduzidas pela relação dualista entre ordem e desordem que no final da obra é representada pela reconstrução do cortiço que simbolicamente nos remete à idéia de uma nova ordem da desordem, ou seja, a lógica da desordem transcende a idéia da reconstrução, mostrando então uma visão romanesca do cortiço REFERENCIA BIBLIOGRAFICAS
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