A raça na palavra.
( OS BRUZUNDANGAS)

Traçar um paralelo entre literatura e realidade a partir do texto OS BRUZUNDANGAS.O que interessa é o confronto entre a visão critica de um escritor negro e a realidade da sociedade brasileira de sua época.Porém, para se entender a crítica em Lima Barreto sem cair nas armadilhas que a todo instante se depara em muitos livros de literatura, que erroneamente insiste em colocá-lo como, autor de pouca instrução,ou ainda de que o caráter profundamente crítico de sua obra decorreria ou decorre dos "ressentimentos de um derrotado".das amarguras de um homem de cor",dos " desequilíbrios de um alcoólatra", essas são as arapucas armadas contra o autor, e para que escapemos delas é necessário um levantamento da formação de nossa sociedade desde que os portugueses por aqui desembarcaram até nossos dias, pois Lima Barreto não é passado, é tão presente quanto o Brasil de hoje e sua sociedade.Uma sociedade que tem suas raízes fincadas na discriminação,na exclusão do negro, do índio e do mestiço, essa é a sociedade que Lima Barreto critica em seus livros e que Graça Aranha contempla, desejando-a ainda mais branca e desenvolvida.
Olhando para trás é fácil entender e perceber que Lima Barreto cria em sua Literatura, estratégias para poder enfrentar os desafios do ser negro nessa sociedade que pensava " branca". Era a virada do século XIX e início do século XX,um período dos mais tumultuados , marcado pelos ranços da exclusão social,herança do colonialismo,e uma República da elite, indefinida e também excludente, era ou é.
É quando se encontra o homem e o escritor Lima Barreto,é vivenciando e experimentando esse período ( tão pouco diferente de hoje) que ele desenvolve no âmbito ficcional , a consciência do trauma coletivo e de suas conseqüências na vida cotidiana, é o momento inicial de sua luta e suas denúncias vistas por muitos como dissabores.Lima, enfrenta os intelectuais do Café Colombo,



ao colocar conscientemente as questões racistas em seus artigos e livros, questões que até então só tinham servido como escada para engendrar enredos de romances e contos,num total apoio dos intelectuais as oligarquias, das quais praticamente todos faziam parte .Lima desmancha o jogo de faz de conta e incomoda ao trazer para o centro do palco o negro,o pobre, enfim o feio,o sujeito étnico como dono do discurso, baseado em suas observações e experiências , dando a este sujeito vida, voz e vez.
Dessa forma o escritor realiza um enfrentamento ideológico e estético, quando ao construir uma identidade, ele a constrói plural,capaz de assumir as vivências de diversos segmentos sociais oprimidos por meios de projetos libertários que incorporavam a contradição e a ambiguidade da sociedade da época, como é o caso da república, do projeto de imigração e também o de urbanização, somente para citar alguns, os de hoje são marcados pela política da "inclusão."
É com o olhar nessa sociedade e nesse país que Lima Barreto cria a sua comicidade, não o cômico que apenas provoca risos ,mas o cômico que incomoda por estabelecer relações com a vida social inclusive literária.O cômico em Lima Barreto é para punir, para levar todos nós a uma reflexão sobre a sociedade de ontem, de hoje e de amanhã.
Os Bruzundangas demonstram a inquietação do escritor frente ao descaso de todos àqueles que mandam e fazem o Brasil,por isso o autor opta pela sátira por ser esta uma linguagem cômica que ameniza ou não, a realidade, como diria Caetano Veloso.
O que está impresso em Os Bruzundangas são perguntas como as quais conviveu Lima Barreto ; O que é Literatura- O que é ser escritor- O que é ser negro- O que é ser branco- O que é cidadania- O que é identidade- O que é inclusão- O que é sociedade-...( Enfim, o que é ser brasileiro no Brasil...)
Com a palavra Lima Barreto;


" Eu sou Afonso Henrique de Lima Barreto.Tenho vinte e dois anos.Sou filho legítimo de João Henrique de Lima Barreto.Fui aluno da Escola Politécnica. No futuro escreverei a História da Escravidão Negra no Brasil e suas influências na nossa nacionalidade".( in BARBOSA, 1979;33)




HISTÓRIA E EXCLUSÃO.

Farei um rápido passeio pela história do Brasil na virada do século XIX e início do século XX para situar Lima Barreto frente aos valores cristalizados na sociedade brasileira em seu longo percurso.
Essa contextualização tem como objetivo tentar explicar o intelectual Lima Barreto e assim possibilitar sua desconexão com a critica, que o tomou como " o cão de patologia do indivíduo", quando o mais sensato seria analisar a patologia da sociedade com a qual a obra do autor dialoga desde sua estréia em 1909, com o romance Recordações do Escrivão Isaias Caminha, em que critica tanto a sociedade, como a política e a literatura.
Ora, se todos os criticados faziam parte dessa hipócrita e doente sociedade, é fácil entender porquê não aceitar um mulato pobre, filho de escrava, como literato, equiparando-se assim aos seus " medalhões" literários.
Vejamos que nos diz a História:
1888, ano da Abolição; negros livres e felizes.

O que a História não diz:

"Juridicamente, a nação estava livre.Novas perspectivas se abriam,mas as estruturas tradicionais persistiam inalteradas.
Herdara-se uma economia: o latifundiário exportador e escravista, e uma tradição cultural: a mentalidade senhorial.
Os africanos e seus descendentes foram atirados para fora da sociedade,a abolição exonerou de responsabilidades os senhores, o Estado, e a Igreja.Tudo cessou,extinguiu-se todo o humanismo, qualquer gesto de solidariedade ou de justiça social: o africano e seus descendentes que sobreviveram como pudessem." (NASCIMENTO,1978,p.65)

1889,Proclamação da República, um golpe liberado pelo mal.Deodoro da Fonseca.

O que a História não diz:

Que não houve participação popular, pois o povo nem sequer sabia o que estava acontecendo, enquanto o exército passava em direção ao Palácio do Governo o povo aplaudia com; viva o Imperador!

" O Brasil da república não é o brasileiro,mas daquele que vem de fora,enfim do imigrante... nunca tivemos aqui movimentos populares da massa.As alterações sociais ocorreram como produto de conciliações entre o novo e o velho, conforme os desejos das classes dominantes e não com a participação do povo. Eram sempre conciliações excludentes.." ( HOLLANDA,RAÍZES DO BRASIL, DVD).

1894- 1930: República do CAFÉ COM LEITE
Um acordo entre as oligarquias de São Paulo e Minas Gerais.

O que a História não diz:

Que houve um brutal empobrecimento do povo nordestino , pois aqui reinava com mais poder o Coronelismo que já vinha dos tempos do Império ,como conseqüência tivemos uma generalização de miséria entre o povo que dependia cada vez mais dos donos absolutos das terras.Surge então o Cangaço e Canudos,este último serviu de mote para Euclides da Cunha em, Os Sertões, autor contemporâneo de Lima Barreto.

1904,Revolta da vacina e urbanização do Rio de Janeiro:

Com a urbanização toda a população pobre foi enxotada de suas casas para se amontoarem nos subúrbios e quanto ao progresso não lhes sobraram absolutamente nada ,pois a maioria não sabia ler.Portanto, não havia para ele vagas nas fábricas,passaram a viver pelas ruas atrás de biscates.A maioria negros.A vacina veio para limpar e sanear a cidade,os pobres não aceitaram a obrigatoriedade esse rebelaram e sobre esses fatos nos fala Lima Barreto em os Bruzundangas.

"O visconde era ministro para evitar aos estranhos,aos turistas, contratempos e maus encontros com javaneses.Por isso chegou a limpar a cidade e até a preparar uma guerra criminosa para ver se dava cabos destes últimos."( BZ,133).

Vejamos o que nos fala Monteiro Lobato, também contemporâneo de Lima Barreto,pouco ante da urbanização do Rio:

"Estive uns dias no Rio. Que contra- Grécia é o Rio!O mulatismo diz que traz desonra de caráter.Dizem que a mestiçagem liquefaz essa cristalização racial que é o caráter e dá uns produtos instáveis .Isso é normal.Floriano, da gente que volta para os subúrbios, perpassam todas as degenerescências ,todas as formas humanas- todas menos a normal .Os negros da África,caçados a tiros e trazidos à força para a escravidão, vingam- sedo português da maneira mais terrível- amulatando-o e liquefazendo-o, dando aquela coisa residual que vem dos subúrbios pela manhã e reflui para os subúrbios à tarde.[...}Como concertar essa gente ... que problemas terríveis o obre negro da África nos criou aqui na sua inconsciente vingança!... talvez a salvação venha de São Paulo e outras zonas que intensamente se injetam de sangue europeu".( Broca, in NASCIMENTO, p.110).


Como se vê, é uma história calcada na exclusão.São seus acontecimentos que Fazem de Lima Barreto um homem consciente e sensível aos problemas da discriminação social,por isso seu grito não pode ser entendido como individual ,mas um grito coletivo, grito de uma raça, de uma cor, um grito da verdadeira gente que fez e faz o Brasil.É o grito de todos os brasileiros excluídos, é o retrato do país.