A PROCISSÃO DO SAYRÉ:
A ANÁLISE DRAMÁTICA DA OBRA DE PAES LOUREIRO

Camila da Fonsêca Aranha
Márcio Franco Barroso
Rebeca Luíza Abreu Pereira


Resumo: Este artigo consiste na análise da obra dramática de João de Jesus Paes Loureiro intitulada A procissão do Sayré conforme as leis do drama formuladas por Augusto Boal ? apoiado na dialética de Hegel ? e apresentadas por Renata Pallottini em seu livro O que é dramaturgia. Dessa forma, as leis dramáticas que fundamentam nossa análise são: lei do conflito, lei da variação quantitativa (ação dramática), lei da variação qualitativa e lei da interdependência. Ressalta-se que este trabalho resulta um estudo referente à disciplina Literatura Amazônica, ministrada pelo Prof. M.Sc. José Denis Bezerra.
Palvras-chave: A procissão do Sayré; Análise dramática; Leis do drama.


1 - Introdução:

Tendo como base a obra O que é Dramaturgia, de Renata Pallottini (2005), buscamos desenvolver, neste trabalho, uma análise dos elementos dramáticos presentes no texto A Procissão do Sayré, do escritor paraense João de Jesus Paes Loureiro.Para tanto, tomaremos como fundamento as quatro leis do drama postuladas por Hegel/Boal, devidamente abordadas por Pallottini.
Antes de iniciarmos a análise, porém, apresentamos uma breve biografia de Paes Loureiro, com o intuito de mostrar sua intensa produção literária. Feita tal apresentação, faremos, em seguida, um resumo da obra, a fim de melhor direcionarmos nossa análise, para, então, entrarmos, de fato, na abordagem sobre a obra.


2 - Apresentação do Autor:

João de Jesus Paes Loureiro nasceu na cidade de Abaetetuba, município paraense da região nordeste do estado, em 23 de junho de 1939 onde passou a infância e adolescência. Ao sair de sua cidade natal e ir para capital, Paes Loureiro cursou as Faculdades de Direito e de Letras, Artes e Comunicação na Universidade Federal do Pará, tornando-se anos mais tarde professor desta.
No período do regime militar, de 1964 até 1976, o poeta, em decorrência de suas idéias e experiências vanguardistas foi perseguido, preso e torturado pela ditadura militar, além de ter convivido com a privação de oportunidades profissionais.
No final dos anos 70, tornou-se professor de Educação Artística da Escola Técnica Federal do Pará e de História da Arte, Introdução à Filosofia e, depois, Estética, Cultura e Comunicação na UFPA. Tem Mestrado em Teoria Literária e Semiologia pela PUC de Campinas em 1984 e Doutorado em Sociologia da Cultura pela Sorbonne de Paris, França em 1990. Em 1983, exerceu o cargo de Secretário Municipal de Educação e Cultura de Belém, Superintendente e criador da Fundação Cultural do Pará Tancredo Neves, Secretário de Cultura do Pará e, mais recentemente, Presidente e também criador do Instituto de Artes do Pará (IAP).
João de Jesus Paes Loureiro é um profissional respeitado não só dentro, como fora do estado. Suas obras são estudadas em universidades da Europa e dos Estados Unidos, além de terem sido traduzidas na Alemanha, China, EUA, Itália e Japão. Por seu trabalho como dramaturgo, Paes Loureiro foi premiado pelo Instituto Nacional do Teatro (1975-76) com as peças Ilha da Ira e A Procissão do Sayré e também recebeu o prêmio de melhor poesia do ano por Altar em Chamas pela APCA (1984).
A extensa obra de Paes Loureiro não deixa dúvidas a respeito da genialidade desse grande observador da cultura amazônida, que é poeta, professor, dramaturgo.

2.1 - Obras publicadas:

Tarefa (1964); Cantigas de amar de amor e de paz (1966); Epístolas e Baladas (1968); Remo Mágico (1975); Enchente amazônica (1976); Porantin (1979); Deslendário (1981); Pentacantos (1984); Cantares Amazônicos (1985); O Ser Aberto (1987); Romance das três flautas ou de como as mulheres perderam o domínio sobre os homens: poesia. (1987); O Poeta Wang Wei (699 ? 759 AD) Na visão de Sun Chin e João de Jesus Paes Loureiro: poesia (1988). Artesão das Águas (1989); Iluminações/Iluminuras (1988); Altar em chamas e outros poemas (1989); Elementos de Estética (1989); Cinco palavras amorosas à Virgem de Nazaré (1989); Cantares Amazônicos: coletânea de poemas. Ed. Bilíngüe. Português e Italiano (1990); Cantares Amazônicos. Berlin, Alemanha (em português e alemão), (1991); Cultura Amazônica ? uma poética do imaginário. (1991); Un Complainte pour Chico Mendes. Tradução Lyne Strouc. Foire International Terres de L'Avenier-CCFD. Paris, França, (1992); A poesia como encantaria da linguagem ? Hino Dionisíaco ao Boto. (1992); Altar em Chamas: poesia, (1992); Belém. O Azul e o Raro. (1998); Pássaro da Terra: teatro. (1999).


3 ? Resumo da obra A Procissão do Sayré:

Na cena I, ocorre a apresentação e breve descrição das personagens que constituem a Procissão do Sayré, as quais são: o Menino, o Velho Pajé, o Juiz e a Juíza e as Mulheres do Sayré, além de dois músicos e do homem do mastro. Há, nessa cena, um detalhamento da procissão, apresentando-se, através das "vozes" das personagens, os cânticos que a compõem. Os integrantes da procissão se dirigem para a nova terra, a República Mineral, entusiasmados por deixar os sofrimentos e tristezas que viviam nos seringais. Na cena II, aparecem as figuras de Dioniso, o dirigente da República, de seu Assessor e do Uirapuru, personagem que, preso em uma gaiola, possui, na peça, a função de ironizar e fazer comentários críticos através de seu canto. Nessa cena, enquanto o Uirapuru canta, aparecem, ainda, as seguintes personagens: os Sete-Sábios, os Sim-Senhores, as Carpideiras, os Centuriões e os Financistas, que possuem, cada um, determinada função na república. Dioniso rebatiza a República Mineral de República Numeral.
A cena III consiste no canto do Uirapuru. Na cena IV, por sua vez, há a expulsão dos artistas (um poeta, um músico e um pintor) da República, pois estes retratavam, por meio da arte, a realidade do local. Dioniso propõe uma censura em suas produções. Porém, os artistas não aceitam (Daí decorre sua expulsão). Dioniso, então, decide nomear artistas oficiais, que terão sua produção regulada por um decreto. A cena V, mais uma vez, é o canto do Uirapuru.
Posteriormente, na cena VI, surgem, novamente, os componentes da Procissão do Sayré, dando continuidade em sua jornada. Na cena VIII, o Assessor alerta e aconselha Dioniso sobre os riscos da poluição. O Assessor diz que já são muitas as consequências da poluição da indústria sobre a região. Quase todos os pescadores e habitantes estão com a pele rugosa e dezenas de pessoas já ficaram cegas, em virtude do ar extremamente poluído. Dioniso afirma que também está sentindo incômodos nos olhos, mas não atribui tal fato à poluição.
A cena IX se constitui no canto do Uirapuru. Há na cena X o conflito de Dioniso com os Financistas. Um deles diz que os Financistas adquiriram terras correspondentes a três quartos da área de todo território. Depois, ocorre na peça a audiência de Dioniso com os habitantes da República. Muitos estão deformados, descabelados e cegos. Dioniso sofre cada vez mais dos olhos. Nesta cena, Dioniso apresenta à população o robô-alegre, que, segundo ele, deve servir como modelo para os habitantes, uma vez que não discute, não contradiz e não reclama. Somente faz aquilo que deve ser feito e aceita o mundo como ele é.
Um dos Sim-Senhores está prestes a morrer de sede, pois não bebe água há muito tempo, com medo de adquirir alguma doença. Um centurião aparece com um balde de água. No entanto, o Sim-Senhor recusa-se a beber. Dioniso, sentindo-se ofendido pela desobediência do que tem sede e profundamente irritado, derrama a água no rosto do Sim-Senhor. Após muitas queixas da população, surgem os Financistas decretando que toda população seja transferida para outra área da região, a qual os efeitos da industrialização ainda não se fazem presente.
A cena termina com os Financistas saindo e deixando todos surpresos e atônitos diante da notícia. Enquanto todos se retiram, exceto Dioniso e o assessor, o Uirapuru canta novamente.
Na cena XII, o Assessor e Dioniso dizem que os números agora são seus piores tormentos e, na cena XIII, os romeiros da Procissão do Sayré continuam sua jornada rumo à terra nova. Por fim, na cena XV, os habitantes da República Numeral se encontram em um território delimitado, o único espaço de terra que lhes resta para viver. Entram os romeiros da Procissão do Sayré, que são fortemente hostilizados pelos habitantes da República, que os impedem de entrar, pois o consumo de ar não pode aumentar.
Dioniso, completamente cego, reclama por mais espaço. Porém, os habitantes lhe negam. Posteriormente, após iniciarem conversa com os integrantes da procissão, todos os habitantes da República dizem que não é possível que eles (os romeiros da Procissão do Sayré) fiquem naquele local. Dioniso também argumenta, afirmando que só resta um metro quadrado para cada habitante. Se os números aumentarem, todos morrerão. Os sobreviventes da República assumem atitude de defesa, com o intuito de não permitir a entrada de mais ninguém. A peça termina com a seguinte fala do Velho Pajé:

Na minha longa viagem
só vi a tristeza remar.
Vi barcos de solidão
pelas margens encalhar.
Agora que aqui cheguei,
sou só um número. Nada
que tenha sonho e uma alma
nessa estranha tabuada.
Sou alguém, que por ser mais,
é de menos, só divide,
e multiplica as parcelas
do medo que, então, progride.

As horas são lacrimosas
Nos tempos do verbo ir
Mito não é o que existe,
mas o que passa a existir.


4- Análise:

A primeira lei do drama aborda que o teatro é conflito, sendo que este elemento é o pressuposto básico de uma obra dramática, uma vez que é do conflito que partem todas as ações. O conflito é o cerne de toda peça de teatro, portanto, nosso primeiro passo, nessa análise, é identificá-lo. Para Pallottini (2005), apoiada nos pressupostos de Hegel, o conflito é uma ação que surge de uma vontade, tendo sempre em mira determinado objetivo.
Na obra aqui analisada ? A Procissão do Sayré -, identificamos que há, como conflito central, a oposição entre a vontade das personagens que compõem a procissão do Sayré, que seguem em busca de uma terra melhor, com a vontade de Dioniso - o dirigente desta terra - e seus habitantes.
Há, no entanto, outros conflitos que ocorrem enquanto os integrantes da procissão caminham em direção à sua jornada. Tais conflitos se dão na República Mineral, terra objetivada pelos componentes da procissão, e surgem em razão de diversos motivos. Dentre eles, podemos citar o conflito entre Dioniso e os Financistas, que decretam que toda a população da República Mineral deve encaminhar-se para outra área do território, originando, assim, uma colisão com os interesses de Dioniso, que governava a região de acordo com suas próprias vontades. Outro conflito ocorrente na Procissão do Sayré é o que se estabelece entre Dionísio e os artistas, uma vez que estes, ao retratarem a realidade da região, através de sua arte, expõem para o povo todos os males escondidos pelo governo, antes desconhecidos pela população.
Dessa forma, esses conflitos secundários existentes na peça, todos ligados ao conflito principal, e que garantem a unidade de ação dramática do texto, caracterizam a segunda Lei do Drama, concernente à variação quantitativa dos conflitos. De acordo com Pallottini (2005, p.82):

Existem e devem existir, portanto, num texto dramático, conflitos variados e de toda espécie, subordinados a um conflito central, principal. Uma peça de teatro é um grande conflito, e cada cena é um conflito pequeno. No entanto, esses conflitos não podem ser estáticos, imutáveis, imóveis. Eles devem nascer, instalar-se, crescer, aumentar em quantidade.

A terceira lei do drama, chamada Lei da variação qualitativa, sugere que algo novo deve acontecer, é o ponto de mudança para o qual caminha o conflito em seu apogeu. Em A Procissão do Sayré, percebemos que o ponto máximo do conflito ocorre no momento da chegada dos integrantes da procissão na República Mineral.
Nesse momento de realização de seu objetivo, a procissão depara-se com a hostilização dos habitantes, que resulta, deste modo, na decepção dos que seguem a procissão, alterando, assim, todo o percurso do enredo dramático. Houve, portanto, o salto qualitativo sobre o qual nos fala Pallottini, ocorrendo também, simultaneamente, ação dramática.
A quarta e última lei que utilizamos como embasamento para a análise do texto, refere-se à interdependência dos elementos que compõem a obra dramática. Para Hegel, tudo deve estar interligado e se mover em conjunto, os conflitos devem estar unificados e a ação dramática deve ser una.
Desse modo, verificamos que as personagens do texto de Paes Loureiro estão todas ligadas umas às outras, sendo imprescindíveis às ações que se desenvolvem no decorrer da peça, correspondendo, então, ao princípio aristotélico da unidade de ação.
Feitas tais considerações, concluímos que a obra aqui analisada atende a cada requisito proposto pela teoria de Hegel/Boal com relação às obras teatrais da dramaturgia. Ademais, ação e conflito aparecem como elementos fundamentais na peça, ambos carregados de tensão e unidade. Essa ação e esse conflito, evidentes imitações de atos humanos, aumentam quantitativamente até chegar a uma mudança qualitativa, a qual determina a variação da ação dos atos que viriam a seguir no drama. Portanto, a obra A Procissão do Sayré é constituída pelos elementos essenciais à construção da obra dramática.


5 ? Conclusão:

Após termos desenvolvido a análise da obra dramática A procissão do Sayré, do escritor paraense João de Jesus Paes Loureiro, foi possível verificar de que modo o drama se correlaciona com os elementos teatrais ? mais especificamente com as leis do drama ? postuladas por Hegel/Boal e adaptadas por Renata Pallottini. Dessa forma, o Sayré presente na obra de Loureiro e nas próprias palavras do autor (2001, p. 150):

[...] reafirma o sentimento de unidade do grupo, realimenta auto-estima e o sentimento que esse grupo tem de um viver em comum, como porque mobiliza a união de todos em torno de uma expressão de crença e beleza ? uma forma de aparência que tem papel fundamental no acontecimento. O Sayré motiva a população, congrega em torno de si uma série de manifestações de cunho artístico que compõem a festividade, torna o belo distrito de Alter do Chão um vitral artístico atravessado pela luz da tradição popular.

E Paes Loureiro ainda acrescenta que (2001, p. 150):

As cores, os cânticos e as etapas rituais do Sayré são constituidores da paisagem de Alter do Chão. Ao mesmo tempo são, também, formas formantes da paisagem emocional tapajônica e componentes dessa necessidade universal de identificação ontológica do homem.

Comentando, pois, acerca da festividade do Sayré tal qual é descrita em sua obra A procissão do Sayré.


6 ? Referências:

PALLOTTINI, Renata. O que é dramaturgia. São Paulo: Brasiliense, 2005.

LOUREIRO, J. J. P. A procissão do Sayré. Rio de Janeiro: Inacen/MEC, 1977.

________. João de Jesus Paes Loureiro: obras reunidas: poesia I. São Paulo: Escrituras Editora, 2001.