A perspectiva propriana e os “contos de magia”

“Inteiro é o que tem começo, meio e fim. Começo é aquilo que,

 em si, não se segue necessariamente a outra coisa, mas

 depois do quê existe  outra coisa, à qual, necessariamente,

ele estará unido. Fim, ao contrário, é o que, por natureza,

acontece depois de alguma coisa, quer de modo necessário,

 quer porque assim é na maior parte das vezes, mas,

 depois dele, não há mais nada. Meio é aquilo que se segue

 a outra coisa e após o quê outra coisa vem”.

                                               ARISTÓTELES IN A POÉTICA

 

À perspectiva propriana da estreita relação entre personagem ação-função, tempo cronológico e narrativa monológica, cujos pontos teóricos estão ligados à  concepção tradicional e linear do texto narrativo, sobretudo por decompor as frases-motivo* dos “contos de magia” russos, analisando a caracterização específica do conto popular pelo viés da fragmentação do sistema verbal da fábula de magia, observando os elementos variantes e elementos sujeitos a contínuas variações de conto para conto; engendra-se, neste escrito, o estudo das ações-funções das personagens do conto A Princesa e o Gigante de Luís da Câmara Cascudo.

O ponto nodal configura-se em mostrar as personagens ação-função como uma estrutura rígida e lógica: trazer à baila a tessitura que erige o plano estrutural de algumas das 31 funções estudadas por Propp. Vale dizer que são as funções em sua invariabilidade que permitem a Propp definir os seres narrativos, e não seus inconstantes atributos. Na verdade, os elementos invariantes são as orações narrativas que correspondem aos predicados de ação, identificados com as ações da personagem de acordo com sua importância para o desenvolvimento da intriga. Esses sintagmas narrativos são aqueles que contam a história, compostos por sujeito agente, verbo de ação e predicado paciente.

Já os variáveis, são sintagmas descritivos, ou seja, as orações adjetivas que correspondem àqueles componentes das frases narrativas (substantivo, adjetivo ou equivalentes), dando informações sobre a personagem:  qualidade, estado. Atributos físicos e psíquicos. São esses traços característicos que dão “o tempero, a peculiaridade e a beleza” de cada fábula.

A descrição é uma forma de retardar e atrasar a ação para criar a atmosfera e o clímax da narrativa.

O que caracteriza essas orações adjetivas é a dependência do sujeito não agente, que não apresenta um verbo de ação, portanto essas orações não contam a história, apenas descrevem as personagens.

Logo, entende-se, que os seres ficcionais  não se definem pelo seu nome ou qualidades, mas sim, por suas ações.

Desse modo, para Vladimir Propp, os seres narrativos que perfilam o  plano monológico, buscam sua funcionalidade no sistema verbal compreendido pela narrativa, além de submetidos aos movimentos de tempo e espaço, e às regras da trama que  se encontram  explícitas desde a arquitetura da personagem ao modo de narrar.

Antes, porém, da aplicação das acões-funções no conto de Câmara Cascudo um breve comentário sobre a esfera de ação das personagens distinguidas como constantes por Propp.

1. Quem são as personagens e sua esfera de ação

 

1.1 O herói

“Sua alta missão é julgar com calma

os pequenos acontecimentos da vida

diária dos povos. Sua Sabedoria deve

prevenir as grandes cóleras por pequenas

causas, ou por acontecimentos que a voz

do renome transfigura, levando-os longe.”

                                                      GRATIUS.

O herói é aquele que assume a responsabilidade pela solução do problema, do dano ou malefício, sendo ele sempre uma pessoa jovem, pois as narrativas dos contos mágicos falam de rituais de inicialização, referindo-se a vida humana como um grande ritual de passagem.

Teoricamente, a pessoa velha já passou pelas provas de iniciação, adquiriu experiência e tornou-se sábia, portanto o herói deve ser jovem para submeter-se  aos testes. A resposta do herói aos desafios sempre é positiva, pois as realiza com sabedoria. Os gestos do herói propriano têm a finalidade coletiva, o olhar desse ente narrativo é voltado para as necessidades do “outro”.

Dessa maneira, o herói circula na seguinte esfera de ação:

  • A partida para procurar.
  • A reação as exigências do doador.
  • O casamento.

1.2 O doador

“O importante é saber vencer o desafio.

 O tamanho dele é uma questão

de circunstância.”

                                   BUAL SCHIMIDT.

 

O doador desafia o herói  a passar por grandes provas. Quando o herói resolve o problema, o doador lhe presenteia com um objeto mágico, que o auxiliará nas futuras dificuldades de sua missão.

O provedor está na seguinte esfera  de ação:

  • A percepção da transmissão do objeto mágico.
  • A colocação do objeto mágico à disposição do herói (a transmissão do objeto mágico).

1.3 O agressor ou malfeitor

“ O mal é uma passageira fase de

experiência humana, e, por isso,

 serve de instrutor aos que têm

vontade de aprender.         JAMES ALLEN

O vilão é o agente que faz, provoca e arma o dano ou malefício. Esse ente narrativo não é elemento exclusivamente negativo, pois ao provocar a desequilíbrio da história faz com que esta aconteça. O malfeitor desempenha as seguintes ações:

  • O malfeito ou privação.
  • O combate e outras formas de luta contra o herói.
  • A perseguição.

1.4 O auxiliar

“Ajuda teu semelhante a levantar

sua carga; porém, não a carregá-la”.

                                        PITÁGORAS

O auxiliar pode ser um personagem da narrativa, um objeto mágico que auxilie o herói a transpor obstáculos, promovendo a transfiguração do herói. A esfera de ação do auxiliar é:

  • O deslocamento do herói no espaço.
  • A reparação do malfeito ou privação.
  • O socorro durante a perseguição.
  • A realização das tarefas difíceis.
  • A transfiguração do herói.

1.5   Pessoa procurada e de seu pai

 

Trata-se do objeto de procura do herói, ou seja, sua grande missão é salvar este ser ficcional. A esfera de ação da pessoa procurada e de seu pai é:

  • A exigência de realização das tarefas difíceis.
  • A imposição de uma marca ou sinal de identificação.
  • A descoberta do falso herói.
  • O reconhecimento do verdadeiro herói.
  • A punição do segundo agressor (ou  falso herói).
  • O casamento.

1.6   Mandante ou remetente

“Realize mesmo chorando,
aquilo que prometeu
sorrindo.”

                         ADÁGIO POPULAR

 

Nem sempre o mandante aparece nas narrativas dos contos. Sua função é de aconselhar, convocar e eleger o herói. Essa personagem possui  a seguinte esfera de ação:

  • O envio do herói (momento de transição).

De fato, é evidente que os seres ficcionais reduzem-se a  um “corpus” de predicados de ação. Segundo Propp, os elementos funcionais obedecem a um rigoroso esquema de ações com limitadas possibilidades de variação de um conto para outro.

Nuança importante de ressaltar é, que não só a ação narrativa, mas também as personagens por serem reduzidas a um conjunto de ações, tendem a um caráter temporal.

Partindo desse pressuposto, considera-se um princípio coerente afirmar que a personagem propriana da ação-função caminha para a narrativa monológica, pela sucessividade das ações dos seres narrativos, apresentando-se também como uma estrutura submetida ao tempo cronológico, no qual os fatos transcorrem na ordem natural do enredo, isto é, do começo para o final, sendo mensurável em horas, dias, meses, anos, séculos  etc.

Entende-se, assim, que os personagens proprianos não são interessantes como fenômeno da realidade, pois apresentam uma imagem determinada e previsível, livre dos questionamentos e das inquietações tão comuns à realidade humana. Porém, vê-se nitidamente a referencialidade, isto é, a capacidade de nos remeter através da organização de suas ações-funções, a um referente humano, e não apenas por seu caráter de mera representação do homem.

     

2. As funções de Propp no conto A princesa e o gigante

 

No conto A princesa e o gigante de Luís da Câmara Cascudo, nota-se um exemplo adequado à teoria vista anteriormente. Com efeito, essa narrativa enquadra-se nos procedimentos dos contos de magia estudados por Propp. Dessa maneira, a obra será reduzida e apresentada por meio de seus componentes funcionais:

1- Situação inicial-  apresentação do grupo familiar: Um casal que tinha três filhas muito bonitas e um filho.

Obs.: A narrativa já começa narrando um grande desequilíbrio, à história é iniciada com um clímax.

2- Afastamento- Ocorre o afastamento de um ou mais personagens da  história que se inicia- as três filhas do rei foram raptadas.

3- Dano-  Nesse momento já ocorre o dano ou malefício, que é o rapto das filhas do rei.

4- Início da reação-  O herói aceita o desafio.

Obs: O herói é o próprio mandante-  o rapaz que era forte e valente (já possuía as marcas do herói), disse aos pais (rei) que queria correr mundo, procurando notícias de suas irmãs. Seus pais apenas o abençoam.

5- Partida- O herói faz uma viagem em busca de solução : “Ia atravessando o descampado quando avistou um grupo de bichos discutindo e soube que era a divisão de um boi que morrera”.

6- Primeira função do doador- Depois que parte, o herói é submetido a uma grande prova: o rapaz ofereceu-se para partidor, e os três animais aceitaram, o herói esquartejou o boi.

Obs: Doadores- no início da história aparecem como um vilão tríplice: leão+ águia + peixe . Percebe-se, depois, que esses animais não são vilões, mas sim. Doadores, pois na verdade eram príncipes encantados, que raptaram as filhas do rei buscando uma tentativa de se livrar do feitiço.

 

7- Reação do herói- O herói reage diante das ações do futuro doador. (Vence a prova).

Obs: Nessa situação o rapaz faz um  papel de juiz e demonstra que sabe dividir com sabedoria, fazendo uma divisão organizadora, dividindo as partes do boi de acordo com as possibilidades de cada animal. O herói desempenha aqui o papel de “Demiurgo”, que são deuses organizadores. Dessa forma, o herói apresenta sua vocação para organizar e pacificar as situações.

Prova qualificante

8- Fornecimento- O herói ganha um objeto mágico, um prêmio: um fio da cabeleira do leão, uma pena de águia e uma escama de peixe.

9- Deslocamento no espaço entre dois reinos- O herói é levado, transportado ou conduzido ao lugar onde se encontra o objeto que procura, ou seja, o mundo do vilão.

O herói desloca-se utilizando os objetos mágicos que lhe foram oferecidos até chegar ao Reino de Acelóis, onde ficava a casa do gigante (vilão). Lá o herói conhece uma princesa aprisionada pelo gigante.

10- O combate- (prova principal)- o  herói enfrenta o vilão em combate direto. O herói descobre onde o gigante guardava sua vida, e com a ajuda dos doadores se apodera da vida do gigante e o destrói.

11- Vitória- O herói vence o vilão- os príncipes encantados livram-se do feitiço do gigante.

12- Casamento- O herói se casa e sobe ao trono.

Observa-se nos elementos em questão a ausência de algumas funções (as referentes ao retorno do herói, que nesta fábula não acontece), e o  desprendimento de outras como o dano e o início da reação, desencadeados pela ausência acima mencionada. Mesmo assim, esse conto de magia obedece ao esquema rigoroso das funções desenvolvidas por Propp.

Em concernência, a  narrativa monológica de A Princesa  e o Gigante, desenvolve-se pela ordem lógico-temporal a que estão submetidas às funções na obra, condicionada pela linearidade do conto; cujo enunciado está empenhado em falar das personagens e suas manifestações na história.

Últimas palavras 

De tudo exposto, fica evidente que para Propp, a personagem  ação-função  se  desprende  das moletas de suas relações com o ser humano e passa a ser encarada como um ser de linguagem, ganhando uma fisionomia própria, e explorando suas possibilidades estruturais. Já o plano monológico e o tempo cronológico são elementos  que em suas particularidades completam o âmbito do conto de magia.            

Bibliografia        

BRAIT, Beth (2004). A personagem. São Paulo: Ática.

LEITE, Lígia Chiapini Moraes (1985). O foco narrativo. São.Paulo: Ática.   

MESQUITA, Samira Nahid (1994). O enredo. São Paulo: Àtica.

SEGOLIN, Fernando (1999). Personagem e anti- personagem. 2ª ed. São Paulo: Olho D’água.