A PERSONIFICAÇÃO DA AMÉRICA E O MITO FUNDADOR PRESENTES NA OBRA IRACEMA, DE JOSÉ DE ALENCAR.

 

Flávio Loiola Frota

Maria Sheila Silva de Sousa

 

RESUMO:

 

O presente artigo trata da personificação da personagem Iracema, como ocorrem em determinados fatos no contexto da obra, as comparações feitas pelo autor José de Alencar à América, de acordo com importantes autores como Ribeiro (2008), que destaca os pontos principais de Iracema ser a América colonizada. Outro aspecto importante destacado na obra é o mito fundador, que explica o autor criar toda aquela mitologia a respeito da criação do Ceará, com base nas ideias da autora Moreira (2010), expressando os fatos principais de fundação mitológica do Ceará.

 

Palavras-chave: Iracema. América. Ceará. Mito. Fundação.

 

ABSTRACT:

 

This article is about the personification of character Iracema, as certain events occur inthe context of the work, the comparisons made ​​by the author José de Alencar to America, according to major authors such as Ribeiro (2008), which highlights the main points of Iracema be America colonized. Another important aspect highlighted in the work is the founding myth, which explains José de Alencar create whole mythology about the creation of Ceará, based on the ideas of the author Moreira (2010), expressing the main facts of the founding mythology Ceará.

Keywords: Iracema. America. Ceará. Myth. Foundation.

 

 

O referido artigo, com base nas ideias de Ribeiro (2008), Moreira (2010) e Brend (1992) trata da personificação da personagem da América através da personagem Iracema da obra de José de Alencar, a protagonista retrata a América e o sofrimento no tempo da colonização e prevalecendo as ideias europeias, de forma crítica o mito fundador é visto e discutido neste artigo, o qual Moreira (2010) e Brend (1992) discutem que o ceará surgiu da miscigenação europeia, e Moacir, personagem da obra, é o cearense que vai criar o novo mundo.

Quando José de Alencar idealizou Iracema, tinha em mente um ousado projeto criar uma literatura que demonstrasse a identidade brasileira e que ao mesmo tempo despertasse o orgulho de uma nação.

Através de Iracema, o autor idealiza toda uma nação, contando através dela todo processo de colonização do continente americano e principalmente do Estado do Ceará, terra natal do autor, em que o mesmo vai relatar as consequências desastrosas desse processo.

Ribeiro (2008) em seus estudos levantou a hipótese de que Iracema poderia tratar-se de um anagrama da palavra América, já que ambos os nomes têm as mesmas letras. O que nos leva a acreditar nessa teoria é o fato do autor não mencionar em hipótese alguma o nome da mãe de Iracema, iniciando o enredo da seguinte forma: “Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema” (ALENCAR, 2007, p.10), dando-nos a entender que ela nasceu da própria terra americana, sendo constituída da própria natureza, como as palmeiras, o mel, a graúna, como se percebe no início do capítulo II “Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos negros como a asa da graúna e mais longos que seu talhe de palmeira [...]” (ALENCAR, 2007, p.10).

A forma com que Alencar descreve o primeiro contato da índia com o homem branco, relata inicialmente a forma com que o continente e o estado começaram a ser colonizados:

 

Foi rápido, como o olhar, o gesto de Iracema. A flecha embebida no arco partiu. Gotas de sangue borbulhavam na face do desconhecido [...] Porém a virgem lançou de si o arco e a uiraçaba, e correu para o guerreiro sentida da mágoa que causara. A mão que rápida ferira, estancou o sangue que gotejava. Depois quebrou a flecha da paz. (ALENCAR, 2007, p.15)

 

Nesta passagem percebe-se que os índios reagiram ao branco, colonizador, por extinto natural e mostrando-se vulneráveis ao colonizador, rendendo-se aos encantos dos brancos.

Ribeiro (2008, p.225) sintetiza nossas palavras da seguinte forma:

 

O co-protagonista Martim - um português, branco e colonizador – invade o espaço físico, cultural e nacional de Iracema – uma brasileira, indígena e colonizável – para aí levar a língua, a cultura e a dominação branca.

 

 

Vários são os exemplos encontrados no decorrer da obra que remete a esse pensamento de dominação dos índios brasileiros, a forma com que Iracema é descrita nos traz a ideia de exaltação da pátria, e podemos ver através do seguinte fragmento:

 

Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que as asas da graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira. O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado. Mais rápida como a ema selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu, onde campeava sua guerreira tribo, de grande nação tabajara. O pé grácio e nu, mal roçando, alisava apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas. (ALENCAR, 2007, p.10)

 

 

Podemos observar que com uma maestria impressionante, o autor faz o uso frequente de comparações das características físicas da personagem com elementos na fauna e na flora do continente americano e mais especificamente aos elementos naturais presentes nas terras cearenses, mostrando claramente a busca de um elemento nacional através da personagem indígena.

Segundo Ribeiro (2008, p.226):

 

Num sistema contínuo de comparações, a personagem é fundida e confundida com a própria natureza americana, num movimento característico de nosso romantismo que, em geral, sobrepunha ao conceito de paisagem.

 

 

Assim como a pátria é exaltada através da figura da índia, é por meio dela que Alencar prevê o fim da raça indígena, pois Iracema ao final da obra morre para que seu filho Moacir, que representa a mistura das raças, a origem do nosso povo passa a sobreviver e assim funda toda uma pátria. Um dos aspectos importante da obra é o afastamento da cultura indígena, como o batismo do índio Poti, que ao ser batizado, troca seu nome e suas crenças para seguir apenas a cultura de seu amigo europeu.

Dessa forma, fica bem claro que Iracema não é só uma simples índia tabajara, ela vai muito além disso, representando de maneira fiel o continente americano, relatando os conflitos e a formação de uma sociedade.

Na obra também está presente o mito fundador, de que o Ceará surgiu do primeiro miscigenado, Moacir, filho da índia com o europeu, “Alencar inicia seu projeto de orquestração da identidade nacional, ambientando seus personagens em um passado distante, que coincide com o início da colonização [...]” (BREND, 1992, p.37-38), começando a discutir este outro assunto, tem-se a palavra mito, que busca explicar a identidade cearense.

A palavra mito vem do grego mythos, e é a mais antiga forma de conhecimento utilizado pelos mais velhos para explicar o surgimento de algo, ou forma de contar fatos do cotidiano, por exemplo, algo relacionado à natureza. Pois de acordo com Eliade (1989) apud Xisto (2002, p.87) “o mito é uma realidade cultural e extremamente complexa, que pode ser abordada e interpretada através de perspectivas múltiplas e complementares.”

O mito não é apenas relato de acontecimentos imaginários, mas também uma narração transmitida de geração em geração. O mito é formado de imagens e símbolos, nascidos através de experiências de um profundo processo cultural da humanidade, vem explicar o surgimento de algo, como por exemplo, o mundo.

Como afirma Xisto (2002, p.88):

Os mitos são a concepção e a resposta humana ao acontecimento da totalidade da manifestação, são o modo originário dos homens lidarem com o espanto, de compreender sua existência em meio à epifania do cosmo e de explicarem a gênese, o ordenamento e a distinção de cada elemento constitutivo da realidade.

 

Percebe-se que José de Alencar cria em sua obra um contexto mitológico para explicar a colonização, fundação e povoamento do Ceará, através da miscigenação de raças (indígena e europeia), surgindo assim os miscigenados cearenses.

A obra narra a história de Martim Soares Moreno, colonizador português, que se alia aos índios Potiguaras, através de Poti, acaba conhecendo Iracema, Alencar acaba romantizando o processo de colonização do Ceará, por meio do amor impossível entre a índia guardiã do segredo da Jurema e o colonizador europeu.

De acordo com Moreira (2010, p.123):

 

O romance fundacional de Alencar, escrito [...] a história do nascimento do povo cearense, simbólica do povo brasileiro. Trata-se, de fato, da coleção de uma tradição popular ligada a um ato fundacional [...] no momento da própria necessidade de consolidação do ato de independência nacional.

 

 

A fascinante narrativa de uma origem em Iracema, acentua a obra como primitiva em que José de Alencar aborda toda uma linguagem dos primórdios indígenas, na qual a personagem principal, que detém todo saber espiritual da tribo, apaixona-se pelo invasor e para se tornar sua esposa deve renunciar a si mesma, ocorrendo todo o martírio da personagem até a morte. Iracema é o símbolo do qual se tem o mito da fusão das raças e o início da sociedade.

O romance alencarino se dá através do mito fundador do Ceará. Como se pode captar no contexto do nascimento do filho de Iracema, ao qual o pai Martim tem que se ausentar. A índia fraca e solitária tem que cuidar e alimentar o filho, sendo que seu leite havia secado, devido as lagrimas que foram derramadas, “as lagrimas de Iracema percorrem a parte final do romance, num pathos que faz da heroína épica uma vitima da tragédia” (MOREIRA, 2010, p.127). Iracema recorre a uns cachorrinhos na mata para ter que alimentar Moacir (filho da dor), que é nutrido com o sangue da raça guerreira que luta até a morte. Compreende-se claramente esta passagem na obra:

 

Iracema arrastando o passo trêmulo [...] aí parou: quando o grito da jandaia de envolta com o choro infantil a chamou à cabana, a areia fria onde esteve sentada guardou o segredo do pranto que embebera. A jovem mãe suspendeu o filho à teta; mas aboca infantil não emudeceu. O leite escasso não apojava o peito. O sangue da infeliz diluía-se todo nas lágrimas incessantes [...] Põe no regaço um por um os filhos da Irara [...] os cachorrinhos famintos sugam os peitos avaros de leite [...] Iracema curte dor [...] mas os seios vão se intumescendo, e o leite ainda rubro do sangue de que se formou, esguicha [...] mata a fome do filho, ele agora é duas vezes filho de sua dor, nascido dela e dela também nutrido. (ALENCAR, 2007, p.91-92)

 

 

A índia faz de tudo para nutrir e fortificar seu filho, para que ele possa crescer forte, a pobre mãe quase sem forcas nutre o miscigenado com seu próprio sangue, para que funde com seu pai um novo mundo.

O romance apresenta Moacir como o símbolo da identidade nacional, resultante do branco e do índio, a obra remete ao leitor a existência de um consenso e fundação de uma nova nação resultante do hibridismo, ou seja, Moacir é a nova raça do país.

Quando Alencar escreve “Além, muito além daquela serra que ainda azula no horizonte” (2007, p.10), começa a tecer bases que vai levar o leitor a organizar o lendário e a convenção ideológica presente na obra e no romantismo brasileiro, “a literatura atua em determinados momentos históricos no sentido da união da comunidade em trono de seus mitos fundadores, de seu imaginário ou de sua ideologia, tendendo a uma homogeneização discursiva” (BREND, 1992, p.21).

Contudo, o autor constrói a simbologia e a origem de sua terra natal, a mãe nutridora, as metáforas que identificam Iracema como mito fundador do povo cearense, que surge aí “dois mundos: o da velha civilização européia e o Novo Mundo da América” (MOREIRA, 2010, p.121). De modo mítico, Iracema é a melhor metáfora do Ceará, por meio da qual se entende a exuberância e a tristeza que passou a personagem principal e o povo colonizado.

Afirma Moreira (2010, p. 134) que:

 

Entroncando aqui a noção de mito sacrificial, a índia morre, sacrifica-se em favor do outro, deixa seu fruto, o pequeno mestiço, e ao final, o português sai vencedor, vivo e pronto para colonizar e cristianizar estas terras.

 

 

Martim ao regressar de sua pátria para fundar o Ceará, implanta o cristianismo e cria um novo sangue com cultura da Europa. José de Alencar tenta endeusar os índios, representando a raça indígena de sua terra, mas acaba por enaltecer os europeus, prevalecendo a cultura do branco sobre os colonizados, como um exemplo é a cristandade em que os índios acabam aderindo.

Contudo, o relacionamento de Martim e Iracema é uma espécie de aliança entre brancos e índios, que será visto como símbolo de fundação do Ceará e de todo país, de forma mitológica a morte de Iracema, mortifica a cultura indígena, e a implantação dos interesses do branco e do miscigenado resultam na nova forma de país, na formação do Brasil. Moacir o primeiro morador do Ceará, Moacir é filho da America (Iracema) e os colonizadores europeus, surgindo uma população forte e batalhadora, que luta contra a pobreza nordestina tentado vencer os desafios.

Para finalizar, Iracema é a obra regionalista mais importante da literatura cearense, por meio também da personificação e nomeação que foram dadas a vários lugares cearenses, como a praia de Iracema entre outros, a America constitui Iracema através de traços e termos regionais. José de Alencar mostra através da personagem Moacir, a romantização do processo de colonização cearense, e a luta de franceses e portugueses para chegarem ao Brasil, para difundirem a religião e os costumes europeus, tudo isso é a forma com que José de Alencar trata sua terra, tentando dar uma explicação para todos.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

ALENCAR, José de. Iracema: Lenda do Ceará. São Paulo: Paulus, 2ed, 2007.

BREND, Zilá. Literatura e identidade nacional. Porto Alegre: Ed da UFRGS, 1992.

ELIADE, Mircea. Mito e realidade. Trad, de Pola Civelli. São Paulo: Perspectiva, 2002.

MOREIRA, Viviane Pinto. Mito e Literatura: Academia Cearense de Letras. Fortaleza: Expressão Gráfica Editora, 2010.

RIBEIRO, Luis Felipe. Mulheres de papel: um estudo imaginário em José de Alencar e Machado de Assis. 2ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária: Fundação Biblioteca nacional, 2008.

XISTO, Daniela Taibo Ribeiro, Mito: a fala originária e sempre imperante. Leopoldianum, revista de estudos e comunicação da Universidade Católica de Santos, ano 27 de abril/2002-n° 76.





 

 

 

 

Artigo elaborado como pré-requisito para aprovação na disciplina de Tópicos de Literatura Cearense, referente à nota de AP3.

Alunos do 6° período do Curso de Letras Plenas Hab. em Língua Portuguesa pela Universidade Estadual Vale do Acaraú – UVA.