A OBRA DE MARIANA ALCOFORADO PELA PERSPECTIVA FEMINISTA

Giulia Pereira Santos 
Nayara Mandarino

RESUMO

Propõe-se neste artigo uma análise das Cartas Portuguesas de Mariana Alcoforado pela perspectiva da teoria feminista. Para tal finalidade, foram feitas pesquisas e apreciações dos tipos qualitativa e bibliográfica da obra em análise, levando-se em consideração seu contexto de publicação e de outras que abordam o feminismo, de autores como Beauvoir (1970), Nascimento (2015) e Santos (2010).

Palavras-chave: Literatura. Cartas Portuguesas. Mariana Alcoforado. Feminismo.


1 INTRODUÇÃO

As questões que inquietam o movimento feminista vêm de longa data. Por que homens e mulheres não recebem o mesmo tratamento? Várias respostas foram elaboradas para responder perguntas como essa. As teorias que giram em torno dela, são de interesse dos estudiosos do “campo feminista de gênero” nomenclatura utilizada por Matos (2008 apud MATOS, 2010, p.1).
As diferenças de gênero circundam inúmeros âmbitos da sociedade, inclusive a literatura. A produção literária feminina reconhecida é minoritária, como afirma Nascimento (2015). Neste artigo trataremos da obra de Soror Mariana Alcoforado, mulher e freira.
Para pensar em como a publicação da obra de Alcoforado foi apreciada pela crítica e pelo público no geral, é preciso pensar nos papéis sociais da mulher e da freira no século XVII. Como elas eram vistas? E, qual o efeito de uma obra publicada por alguém com tais características sociais? Qual a explicação da teoria feminista para isso?
Dessa maneira, este artigo tem como objetivo geral analisar a obra Cartas Portuguesas de Mariana Alcoforado pela perspectiva dos estudos vinculados ao feminismo. Para tal fim, faz-se necessário dissertar acerca do que é o feminismo, contextualizar a publicação da obra e analisar os efeitos da obra para o movimento feminista, explicando como este aborda a reação do público. 
Esse estudo, se trata, então, de uma pesquisa qualitativa bibliográfica baseada na apreciação dos textos de Beauvoir (1970), Nascimento (2015), Santos (2010), entre outros que abordam os temas propostos e na análise da obra em questão.

2 MOVIMENTO FEMINISTA

Simone de Beauvoir (1970) argumenta que “o mundo sempre pertenceu aos machos” e não há explicação suficiente para tal. Ela argumenta que

quando duas categorias humanas se acham em presença, cada uma delas quer impor à outra sua soberania; quando ambas estão em estado de sustentar a reivindicação, cria-se entre elas, seja na hostilidade, seja na amizade, sempre na tensão, uma relação de reciprocidade. Se uma das duas é privilegiada, ela domina a outra e tudo faz para mantê-la na opressão. (1970, p. 81)

A autora, então, questiona quais são as circunstâncias que restringem a liberdade feminina e como superá-las. O feminismo vem com a perspectiva de quebrar os paradigmas patriarcais existentes na sociedade e que silenciam diariamente a voz da mulher tornando-a suscetível à diversos ataques a sua integridade. Branca Moreira Alves e Jacqueline Pintaguy (1985) desenvolvem uma definição objetiva desse movimento ativista. O feminismo busca repensar e recriar a identidade de sexo sob uma ótima em que o indivíduo, seja ele homem ou mulher não tenha que adaptar-se a modelos hierarquizados, e onde a qualidades "femininas" ou "masculinas sejam atributos do ser humano em sua global idade. Que a afetividade, a emoção, a ternura possam aflorar sem constrangimentos nos homens e serem vivenciadas, nas mulheres, como atributos não desvalorizados. Que as diferenças entre os sexos não se traduzam em relações de poder que permeia a vida de homens e mulheres em todas as suas dimensões: no trabalho, na participação política, esfera familiar, etc. (1985, p. 9)


3 CONTEXTO DE PUBLICAÇÃO DA OBRA

Cartas Portuguesas é um romance epistolar publicado pela primeira vez em 1669 em Paris por Claude Barbin, em francês. Foi muito bem aceito pelo público parisiense e extremamente criticado e até desmentido por grande parte da crítica literária, devido à explícita voz feminina desesperançada da autora. Essa obra foi escrita em um tempo extremamente patriarcal e conservador. Sóror Mariana Alcoforado, de família abastada, foi destinada à vida religiosa desde os onze anos. Em meados de 1666 se apaixonou por Nöel Bouton que retornou à Paris abandonando-a no convento e desencadeando as tão famosas 5 cartas. 
A vida monástica de Alcoforado possivelmente foi fruto de um costume social de preservação patrimonial, onde, de acordo com Michele Leite dos Santos (2010, p. 110), "O destino de filhos de algumas famílias era determinado pelo interesse em conservar os bens, no intento de não se desmantelar o patrimônio familiar por meio de um matrimônio desvantajoso em termos financeiros", esse é um sinal claro da imposição religiosa e social na vida da autora e de muitas outras mulheres. 
No entanto, Mariana é claramente uma voz feminina atemporal e diferenciada, exatamente por ser uma das primeiras mulheres a ter coragem de escrever uma obra tão densa e por não deixar seus deveres como filha e freira impedirem seus sentimentos e sua escrita
Apesar disso, não estou arrependida de te haver adorado. Ainda bem que me seduziste. A crueldade da tua ausência, talvez eterna, em nada diminuiu a exaltação do meu amor. Quero que toda a gente o saiba, não faço disso nenhum segredo; estou encantada por ter feito tudo quanto fiz por ti, contra toda a espécie de conveniências. E já que comecei, a minha honra e a minha religião hão de consistir só em amar-te perdidamente toda a vida. (Cartas de amor de uma freira portuguesa, p. 17).

Existem muitas discussões e mistérios sobre o texto, muitos dizem que não foi a própria Mariana quem o escreveu. As especulações são tantas que os críticos chegam até a duvidar da existência da autora, todavia, alguns autores (MENDES, 2007, pg. 14 apud SANTOS, 2010, pg. 114) voltam a confirmar que realmente existiu um convento em Beja, uma freira com este nome na época e que o capitão Nöel Bouton esteve em serviço nesse mesmo período por dois anos ao Conde de Shoemberg. 
 O texto em questão também aborda uma temática de controvérsias e dualidades referentes ao contexto voltado para o Barroco em que a autora se encontrava. Ela está sempre trocando de remetente, no sentido de em um momento estar escrevendo para o seu amado e em outro escrevendo para si própria, além da constante mudança de sentimentos, ora está esperançosa quanto à volta de Bouton ora sente um remorso enraizado por esperar por ele.
O fato de Alcoforado escrever e ser a voz atuante da obra é quase um ato político de libertação, levando em consideração todo o passado trovadoresco que pesa sobre Cartas Portuguesas, no qual a mulher era extremamente idealizada e não tinha voz: era mero objeto do interesse masculino.

4 UMA VOZ FEMININA

Como afirma Nascimento (2015), Mariana Alcoforado pode ser considerada uma das primeiras vozes femininas da literatura portuguesa que expressou suas denúncias, angústias e reivindicações quanto ao seu próprio corpo. A autora, mesmo submetida à um regime político autoritário e às normas da Igreja, que reforçavam a submissão da mulher, utilizou-se da arte da palavra para quebrar o silêncio feminino que era tão prescrito socialmente. 
Ela se envolveu emocionalmente com um militar estrangeiro e esse envolvimento, fora do contrato social e religioso, o casamento, pode ter sido físico, segundo hipóteses. Isso configura transgressão às normas da época, tanto da figura da mulher quanto, e principalmente, da freira. Ainda assim, Mariana expôs-se em suas cartas.
Alcoforado com sua atitude insurgente perante às normas sociais, inspirou as três Marias  na composição da obra Novas cartas portuguesas, no entanto, “ao invés de desafiar um regime religioso, como no caso da freira, elas passam a desafiar o sistema patriarcal e ditatorial em vigor”. Vemos aqui, a sororidade, a união de mulheres na luta contra a opressão.
É relevante abordar a visão da crítica literária quanto à produção feminina. Nascimento (2015) afirma que apesar dos avanços nos estudos de gênero, durante o século XX, a visão existencialista persiste, o que “presta um desserviço aos trabalhos que questionam o cânone Ocidental e a participação das mulheres na História e na produção cultural” (p.11)  e acrescenta que há uma tentativa de “tentativa de categorização, e, mesmo de deslegitimização, de definir o que é feminino e uma escrita feminina” (p.11). Assim, a composição da escritora, que ocorreu três séculos antes, foi uma ousadia da mulher silenciada que utilizou sua voz numa área dominada pela figura masculina e suas Cartas Portuguesas não puderam ser ignoradas pela crítica, que utilizou de alguns argumentos para não atribuir a autoria da obra à uma mulher.
Houve (e ainda há) relutância em aceitar Alcoforado como autora do texto literário. Na verdade, a autoria é atribuída à Claude Barbin, um homem. Barbin, quem publicou as cartas, não faz menção alguma à autora portuguesa, colocando-a em segundo plano, o que, segundo Almeida (1993), reproduzia as ideias atribuídas ao sexo feminino daquele contexto. Quando analisadas as avaliações da crítica, maioritariamente composta por homens, percebe-se a desvalorização da figura feminina e a duvida da sua capacidade intelectual.
Tanto a posição assumida pela maioria dos críticos que veem as Cartas Portuguesas como um relato da maneira feminina, “estérica” e subjetiva de ver o mundo, como a visão de Rousseau (COUTINHO, 1980: 225) de que as mulheres não possuiriam sensibilidade suficiente para escreverem tais cartas, têm como ponto comum a noção da mulher enquanto ser inferior ao homem. (ALMEIDA, 1993, p. 45)

       Quanto à essa questão, Santos (2010) afirma que o “labor estético” de Cartas Portuguesas nos mostra um conhecimento linguístico/literário que não era comum entre as mulheres seiscentistas, já que o acesso à educação era restrito ao sexo masculino. No entanto, Mariana, escrivã do Convento, teve acesso a muitas obras literárias. Ainda assim, muitos autores afirmam que “seria impossível uma mulher alcançar tal maestria na produção textual” (p. 112).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

    Podemos afirmar, portanto, que Mariana Alcoforado foi uma autora extremamente importante para o movimento literário português, principalmente vista por uma perspectiva feminista. Apesar de ter sido uma mulher seiscentista, que apenas por esse fator já receberia diversas restrições, e além disso, por ter sido uma religiosa, Alcoforado ultrapassou os “obstáculos” de uma sociedade machista e autoritária, em diversos aspectos, possibilitando a perpetuação de suas cartas, influenciando outros autores literários e conquistando espaço dentro da linha do tempo da literatura portuguesa e, podemos dizer, até da literatura mundial. 

6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALCOFORADO, Soror Mariana. Cartas de amor de uma freira portuguesa. Disponível em: . Acesso em: 14 set. 2017.

ALMEIDA, Sandra Regina Goulart. Cartas portuguesas: um espelho da problemática feminina. Boletim/ CESP, v. 13, n.16, p. 43-51, jul./dez. 1993. Disponível em: < http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/cesp/article/download/4510/4281 >. Acesso em: 15 set. 2017.

ALVES, M. B.; PINTAGUY, J. O que é feminismo. Brasília: Abril, 1985, p. 9.

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos. 4 ed. São Paulo: Difusão europeia do livro, 1970. 309 p.

MATOS, Marlise. Movimento e teoria feminista: é possível reconstruir a teoria feminista a partir do Sul global? Revista de sociologia e política. Curitiba, v. 18, n. 36, p. 67-92, jun. 2010. Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/rsocp/v18n36/06.pdf  >. Acesso em: 12 set. 2017.

NASCIMENTO, Michele Vasconcelos Oliveira do. Escrever como homem ou escrever como mulher?: relações entre a autoria feminina e o cânone literário. In: XXVII Simpósio Nacional de História, 2015, Florianópolis, Lugares dos historiadores: novos e velhos desafios. Disponível em: < http://www.snh2015.anpuh.org/resources/anais/39/1450120827_ARQUIVO_Escrevercomohomemouescrevercomomulher(texto).pdf >. Acesso em: 12 set. 2017.

SANTOS, Michele Leite dos. Escrever e inscrever‐se na história por meio da escrita:  as Cartas Portuguesas, de Sóror Mariana Alcoforado. Crátilo: Revistas de estudos linguísticos e literários. Patos de Minas: UNIPAM, p. 109-117, 2010. Disponível em: < http://cratilo.unipam.edu.br/documents/32405/40465/escrever_e_inscrever_se_na_historia.pdf >. Acesso em: 15 set. 2017.

SOUZA, Karine Damasceno. Novos olhares sobre os gêneros literários: as tendências da crítica feminina contemporânea na obra Novas Cartas Portuguesas, 2016. Disponível em: < http://sis.ufpi.br/25sic/documentos/resumos/modalidade/humanas/KARINE_DAMASCENO_SOUZA.pdf >. Acesso em: 12 set. 2017.