Este trabalho tem por objetivo analisar alguns poemas considerados metapoéticos acerca do livro Viagem (1939), de Cecília Meireles, ou seja, aqueles que tratam do "fazer poético". Será apresentado um estudo sobre os poemas "Motivo" e "Discurso", procurando verificar a forma como Cecília Meireles aborda a temática da metapoesia. Para uma melhor compreensão de como se dá esta temática, é pertinente que se conheça um pouco da bibliografia e obra da autora em questão.
Cecília foi uma grande voz feminina da Poesia Brasileira, nasceu no Rio de Janeiro, em 07 de novembro de1901 e faleceu em 09 de novembro de 1964, vitimada pelo câncer. Órfã de mãe e pai, desde muito nova foi criada pela avó materna. Formou-se na Escola Normal do Rio de Janeiro (1917) e ingressou no magistério. Estudou canto e violino no Conservatório Nacional de Música. Dedicou-se também ao estudo de línguas e muito cedo começou a escrever poesia. Em 1919, estreou como poeta, com o livro Espectros, dando início a uma carreira que levaria anos para se consolidar. Aos dezoito anos de idade publicou o seu primeiro livro de poesias (Espectro, 1919), um conjunto de sonetos simbolistas. Embora vivesse sob a influência do Modernismo, apresentava ainda, em sua obra, heranças do Simbolismo e técnicas do Classicismo, Gongorismo, Romantismo, Parnasianismo, Realismo e Surrealismo, razão pela qual a sua poesia é considerada atemporal. No ano de 1922 casou-se com o pintor português Fernando Correia Dias com quem teve três filhas. O seu marido, que sofria de depressão aguda, suicidou-se em 1935. Cecília voltou a se casar, no ano de 1940, quando se uniu ao professor e engenheiro agrônomo Heitor Vinícius da Silveira Grilo.
Cecília Meireles destaca-se na literatura nacional a partir da segunda fase do Modernismo (décadas de 1930 e 1940). Analisar a obra desta autora é mergulhar no seu "mar absoluto", no qual é apresentada uma composição literária profunda e elaborada, visando o ser de maneira irrestrita, porém com sensibilidade e lirismo. Djalma Cavalcante (2001), em artigo publicado na Revista Cult, apresenta como característica essencial da poesia de Cecília, a onipresença da idéia de transitoriedade de todas as coisas, o que para a autora representava uma forma de despertar do ser. Cecília Meireles (1982, p. 6) esclarece que:
a noção ou sentimento de transitoriedade de tudo é fundamento mesmo da minha personalidade. Creio que isso explica tudo quanto tenho feito, em Literatura, Jornalismo, Educação e mesmo Folclore. Acordar a criatura humana dessa espécie de sonambulismo em que tantos se deixam arrastar. Mostrar-lhes a vida em profundidade. Sem pretensão filosófica ou de salvação ? mas por uma contemplação poética afetuosa e participante.

A poesia de Cecília Meireles é totalmente musical, com metáforas fortemente sensoriais e com bastante utilização da primeira pessoa. Pode-se verificar que sua poesia revela ligações com várias estéticas tradicionais, especialmente o Simbolismo. Neles predominam, ainda, uma difusa melancolia e uma noção de perda amorosa, abandono e solidão. Além de também existir uma aguda consciência da passagem do tempo, da brevidade enganosa de todas as coisas, sobremodo dos sentimentos. A atmosfera de dor existencial que emana dos poemas de Cecília Meireles é centrada na percepção de que tudo passa e de que o fluir do tempo dissolve as ilusões e os amores, o corpo e mesmo a memória.
Apesar da diversidade de temas encontrados em seus poemas, pode-se encontrar, fortemente presente na produção ceciliana, aqueles considerados metapoéticos, ou seja, aqueles poemas que apresentam em primeiro plano preceitos relacionados ao "como fazer" poesia, ou a como a poesia é/ou deve/não-deve ser, ou ainda, para quê ela serve.
Durante o Modernismo e o pós-Modernismo, os poetas brasileiros procuraram incluir em seus metapoemas os preceitos que acreditavam serem essenciais à poesia, bem como críticas e negações dos períodos e modelos anteriores. Os metapoemas podem ser encontrados ao longo de toda a literatura brasileira, desde a época colonial até os nossos dias. Embora se esteja analisando nesta pesquisa apenas a metapoesia do tipo que se chama de "poéticas", é interessante lembrar que eles não são os únicos dentro desta modalidade. Existem muitos outros exemplos de poemas que falam de poesia sem serem, necessariamente, "poéticas". De qualquer maneira, a metapoesia é um importante veículo seja para expressar a consciência crítica do autor, seja para evidenciar as referências que fundam a sua atividade criadora. Goyanna (1994, p.53) afirma:
Entre as práticas literárias que ostensivamente evidenciam a consciência critica do autor, a metapoesia é sem dúvida uma das mais importantes ou significativas. Mesmo diante de um poema que apenas discretamente realiza a dimensão metapoética (através da inserção de um breve comentário limitado a um só verso, por exemplo), não podemos ficar indiferentes à voz da consciência criadora que então se manifesta.

Ao ler a lírica "Viagem", de Cecília Meireles, faz-se notar, em alguns poemas desta obra, a evocação de questionamentos e reflexões do próprio fazer poético, apresentando-se, assim, ao leitor, uma abordagem metapoética em torno da significação deste fazer lírico. Em relação a tais poemas, podemos citar "Motivo", "Discurso" e:
Motivo
Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
 não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
 mais nada.
(Meireles, 1982, p.14)

Discurso
E aqui estou, cantando.

Um poeta é sempre irmão do vento e da água:
deixa seu ritmo por onde passa.

Venho de longe e vou para longe:
mas procurei pelo chão os sinais do meu caminho
e não vi nada, porque as ervas cresceram e as serpentes andaram.

Também procurei no céu a indicação de uma trajetória,
mas houve sempre muitas nuvens.
E suicidaram-se os operários de Babel.

Pois aqui estou, cantando.

Se eu nem sei onde estou,
como posso esperar que algum ouvido me escute?

Ah! se eu nem sei quem sou,
como posso esperar que venha alguém gostar de mim?
(Meireles, 1982, p.17)


O poema "Motivo" é uma metapoesia da qual o eu-lírico descreve o porquê da sua criação estética, na verdade, faz isso com o intuito de desabafar seu sofrimento, suas dúvidas, para assim tentá-las entender. Esse texto está dividido em quatro quadras, onde, na primeira estrofe, verifica-se a valorização subjetiva e momentânea de cada hora da vida, conforme no trecho "Eu canto porque o instante existe/ e a minha vida está completa" (v.1-2), uma vez que para o eu-lírico, o instante, em termos de tempo, existe e só ele justifica sua criação, não vindo ele (eu-lírico) produzir seu canto por ser alegre ou tristeza, e sim, por ele ser um poeta que sente realização em fazer algo que lhe dá prazer, como pode ser visto em: "Não sou alegre nem sou triste:/ sou poeta." (v. 3-4).
Para Walmir Ayala, conforme lembra Cardoso em seu ensaio, nesse trecho está expresso que:
A Arte Poética mais objetiva, mais lúcida, mais consciente, de tudo quanto a poesia brasileira extremou na sistematização de seus acontecimentos através do tempo. (...) Cecília nada supõe, sabe apenas que o instante existe e lhe permite cantar, a serenidade lhe faculta entender que o que flui existe em cada momento inteiramente, e que o canto é o apelo desta instantaneidade buscando o eterno. (1965, p.123 apud, CARDOSO, 2007, P.18)

Desta maneira, "o eu lírico já profere a sentença que propõe uma ação e sua justificativa (eu canto porque o instante existe)" (CARDOSO, 2007, p.18). Ou seja, o eu descreve seu fazer poético, bem como dá um sentido para esse seu fazer. Pode-se dizer ainda, que a primeira estrofe está ligada à existência do poeta e às razões que a levam a escrever, sugerindo que a poesia é condição para essa existência, independente do estado de sua alma.
A segunda estrofe, o eu poético revela-se como parte integrante da natureza, seja àquela que compreende seu universo interior ou que independe de sua vontade, sendo, pois, um ser passível de ações transitórias, "irmão das coisas fugidias" (v.5), emocionais, "não sinto gozo nem tormento" (v.6), e temporais, "atravesso noites e dias" (v.7), sem que isto interfira na sua trajetória como poeta, ou provoque mudanças de estado no seu "eu", ou seja, o poeta e poesia formam um conjunto único que, apesar das coisas da vida, não se modificam.
A terceira estrofe, como lembra Cardoso, "expressa uma condição de desajustamento do ser perante o mundo circundante" (2007, p.17). A segurança com relação à vida se esvazia, e o eu-lírico claramente demonstra reflexões interiores, afirmando não ter respostas para seus questionamentos, como pode ser visto em: "-não sei, não sei. Não sei se fico/ ou passo" (v.11-12), onde o eu se mostra em conflito em relação a sua existência, ou melhor, em relação a sua produção poética.
Finalmente, na quarta estrofe, como se encontrasse as respostas para suas incertezas, o sujeito lírico recupera a consciência de que sua poesia permanecerá mesmo que sua vida se esgote. Ao declarar que sua canção "Tem sangue eterno a asa ritmada." (v.14), compara-a à vida eterna e à liberdade, demonstrando em seus versos a consciência de que um dia deixará de produzir, mas sua canção permanecerá para sempre, fazendo-o conformar-se com a situação. Para ratificar isso, coloca-se a seguir, a análise de Cardoso sobre tal trecho:
A quarta e última estrofe é inaugurada com a reafirmação daquilo que já fora enunciado na primeira estrofe (eu canto, sou poeta), qual seja a profissão de fé do sujeito lírico: sei que canto. Segue-se a essa inferência a afirmação de que a canção é tudo. A partir dessa caracterização depreende-se o significado profundo da arte poética para esse sujeito lírico, que abole as demais referências do mundo (fazendo eco com a visão apresentada nas imagens da segunda e terceira estrofes) para encerrar-se no universo da canção, condição absoluta do ser, capaz de lhe justificar a própria existência. No segundo verso da referida estrofe, há um desdobramento das idéias do verso anterior, no qual a expressão tem sangue eterno dá conta de um princípio "vital" associado à própria poesia, que está além do tempo, cuja representação metafórica está expressa na sentença asa ritmada, conotando, assim, uma dimensão perene à arte literária. Contrariamente a essa condição imperecível poesia, o agente de sua enunciação, para quem o canto representa tudo, vaticina acerca do próprio destino, deixando claro que seu "estar mudo" caracteriza inequivocamente a morte do poeta, limite definitivo a todos os anseios humanos que por ventura alimente. Declara-se em tal contraposição de destinos, a superação do ser pela arte lírica que o representa, à medida que essa sobrevive ao silêncio do poeta, perpetuando-se em outras vozes que a enunciarão. (2007, p.19)

Um dos aspectos relacionados à metapoesia em Cecília diz respeito à imagem do eu-lírico enquanto poeta. A preocupação quanto ao sentido do ser poeta é evidenciada no poema, também no poema "Discurso". Neste poema, a idéia do instante verificada em "Motivo" é retomada através de imagens que traduzem a transitoriedade da vida, como a utilização de expressões "vento" e "água", além de marcas textuais que demonstram o instante espaço-temporal presente, como por exemplo, a manifestação do "E aqui estou", conforme se observa nas duas primeiras versos: "E aqui estou, cantando/ Um poeta é sempre irmão do vento e da água:" (v.1-2). Percebe-se a constatação de um eu que se assume como poeta no verbo cantar e na referência à figura do escritor, que assim como no poema analisado anteriormente, é colocado como algo efêmero.
As duas estrofes seguintes mostram a desesperada busca, por parte do eu-lírico, do sentido de fazer poesia e de ser poeta. O poeta aparece aqui como um alguém que procura um sentido para viver, porém não encontra respostas, uma vez as coisas estão em constante mudança, o que é característica da vida, pois nenhum dia é igual ao outro, as pessoas mudam, etc.: "Venho de longe e vou para longe:/ mas procurei pelo chão os sinais do meu caminho/ e não vi nada, porque as ervas cresceram e as serpentes andaram." (v.4-6).
Vê-se que o eu-lírico buscou em todos os lugares respostas para suas indagações como pode ser visto também no trecho "Também procurei no céu a indicação de uma trajetória,/ mas houve sempre muitas nuvens" (v.7-8). O ser poético procura os sinais de sua trajetória, contudo, através da conjunção mas, é demonstrado sua frustração, justamente porque se depara com a falta de clareza nas respostas de seus questionamentos, metaforizada no trecho "e não vi nada, porque as ervas cresceram e as serpentes andaram./ Também procurei no céu a indicação de uma trajetória,/ mas houve sempre muitas nuvens." (v. 6-8), o que simbolizam a pouca duração, a passagem, a temporalidade das coisas. Ainda no último verso da mesma estrofe, é colocada a angústia do não-entendimento das coisas da vida, implicitamente, de sua existência como ser e poeta, presente na imagem do suicídio dos operários de Babel: "E suicidaram-se os operários de Babel" (v.9). Como lembra Cardoso, "com relação ao quarto elemento mencionado nessa relação, deve-se observar que se trata de uma alusão a uma pretensa impossibilidade comunicativa, simbolizada pela citação bíblica que menciona os operários de Babel" (2007, p.22).
O instante espaço-temporal é novamente explorado na estrofe seguinte, onde o eu-lírico enfatiza a insistência de seu cantar: "Pois aqui estou, cantando./ Se eu nem sei onde estou,/ como posso esperar que algum ouvido me escute?/ Ah! se eu nem sei quem sou,/ Como posso esperar que venha alguém gostar de mim?" (v.10-14). Nota-se, nas duas últimas estrofes, um ser poético confuso, em conflito pela incompreensão do sentido da vida, ou da própria arte. Além desta busca incessante, vê-se a temática da preocupação do poeta em relação a recepção da sua obra pelo público: "Se eu nem sei onde estou,/ como posso esperar que algum ouvido me escute?/ Ah! se eu nem sei quem sou,/ como posso esperar que venha alguém gostar de mim?" (v.11-14),ou seja, vê-se um eu inquieto com a idéias de ninguém lhe escutará, ou que gostará dele, ou de sua obra. Para encerrar a análise deste poema, optou-se por lembrar o que foi dito por Cardoso:

Por fim, podemos inferir que "Discurso" é um poema que faz jus ao seu título por apresentar uma construção estabelecida a partir da coesão entre três etapas significativas, onde as duas primeiras são marcadas pela expressão aqui estou, cantando _ reveladoras de uma débil consciência espacial e um ato expressivo em execução_, e a terceira se faz notar pelas duas estrofes interrogativas finais. Há, portanto, um "discurso" auto enunciador do sujeito lírico que se encerra por uma epifania, na medida em que confronta uma débil consciência espacial e um ato expressivo em execução, por um lado, e a total consciência do descompasso desse sujeito consigo e com o mundo em que está inserido, por outro. (2007, p.23)

Ao analisar os poemas da obra de Viagem, de Cecília Meireles, pôde-se confirmar a presença da Metapoesia em suas construções, em que apresentam um eu-lírico preocupado com sua vida e com sua poesia. Conforme Cardoso, Cecília Meireles "expõe-se uma feição de metapoesia na construção de grande parte dos textos de Viagem, que fazem da referida obra o instrumento de declaração de fé poética utilizado por sua autora." (2007, p.100), alguns destes textos, são os analisados aqui neste trabalho: "Motivo" e "Discurso". Neste sentido, o caráter metapoético de "Viagem" constrói-se a partir de reflexões sobre a existência, sobre a sua poesia, sobre a efemeridade das coisas, através de imagens sensoriais e simbolistas, dos quais o leitor deve estar atento para então perceber os detalhes que compõem o grande fio que liga as palavras e os vários sentidos sugeridos no texto.
Os poemas analisados de Viagem "podem ser lidos a partir das percepções individuais e intimistas de um sujeito lírico que, ao voltar-se sobre sua própria condição, estabelece uma visão conceitual da vida e do mundo." (Cardoso, 2007, p.102). A partir disso, encontra-se um "eu" que questiona sua própria existência, devido a se encontrar em meio à solidão e ao "desamparo diante da vida e do destino", possuindo "a plena consciência de que é inútil lutar contra tais circunstâncias" (Cardoso, 2007, p.102). Enfim, têm-se poemas característicos da obra de Cecília Meireles, ou seja, há a predominância de uma difusa melancolia e uma noção de perda e abandono, há também, uma aguda consciência da passagem do tempo, da brevidade enganosa de todas as coisas, sobremodo dos sentimentos. A atmosfera de dor existencial que emana seus poemas é centrada na percepção de que tudo passa e de que o fluir do tempo dissolve as ilusões, o corpo e até mesmo a memória.

REFERÊNCIAS

CARDOSO, Adaidides. Metapoesia, Música e Outros Motivos em Viagem, de Cecília Meireles. Disponível em http://www.ppgletras.furg.br/disserta/adaididescardoso.pdf. Acesso em 12 de setembro de 2010.
CAVALCANTE, Djalma. Passagem para a Índia. In: Revista Cult. São Paulo:
2001.
GOYANNA, Flávia Jardim Ferraz. O Lirismo anti-romântico em Manuel Bandeira. Recife: FUNDARPE, 1994.
MEIRELES, Cecília. Literatura comentada. São Paulo: Abril Educação, 1982.
MEIRELES, Cecília. Viagem: Vaga música. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
MINHA METRÓPOLE. Poema. Discurso. Disponível em http://metropolempoesia.blogspot.com/2008/08/poema-discurso.html. Acesso em 15 de outubro de 2010.
WIKIPÉDIA. Cecília Meireles. Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles. Acesso em 20 de setembro de 2010.