A LEITURA DO ARTÍSTICO PELO VOO ONÍRICO EM BACHELARD

Rubens Martins da Silva
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Este texto centra suas inferências nos delineamentos de sintetizar, sob o viés da Crítica Literária, partes da obra bachelardiana "O Ar e os Sonhos", a saber: "O sonho de voo", "A poética das asas" e "Os trabalhos de Robert Desoille".
Neste contexto, objetiva-se apontar, de forma geral em que e como os estudos de Bachelard contribuem para a absorção do onirismo , mediante sua contribuição para a leitura, para a busca, e para a contemplação do artístico literário.
Em fundamentações filosóficas por Tales de Mileto (aprox. 624 ? 556 a.C.), Anaxímenes (588-525 a.C.), Heráclito (aprox. 540 a.C. - 470 a.C.), Empédocles (495/490 - 435/430 a.C), percebe-se a formação e estudos dos quatro elementos fundamentais, pelos quais percorre a vida: fogo, água, ar, terra. Devido suas influências, estes elementos têm implicações especiais, pois "cada um é imaginado em seu dinamismo especial" (Bachelard, 2001, p. 8). Nisso o voo onírico encontra seu assentamento no elemento ar, o qual remete o leitor a atingir o artístico, o belo e o singular contido na leitura do artístico.
O sentido do voo na concepção de seu contexto formado pelo elemento ar resgata a dimensão de sua invisibilidade e inobservância, porém observável em seus efeitos. Vê-se que o ar fundamenta a existência da própria vida, trazendo força e sustentação ao ser em sua existência terrena. "E formou o SENHOR Deus o homem do pó da terra, e soprou em suas narinas o fôlego da vida; e o homem foi feito alma vivente ". O "sopro" carrega em si o ar, o qual deu vida à criatura formada por Deus, sendo este formado pelo sobrenatural inexplicável. Na arte o ar leva o leitor a encontrar a vida presente no elemento voante em seus sonhos.
A vida, pelo ar, é o ato que leva o leitor a entender o artístico durante seu voo. Atine a esta amplitude, a contemplação artística se dá pelo voo, fundamentado no onirismo, vez que a imaginação é conduzida há espaços psíquicos entrementes à libertação do real rumo à conexão com o ficcional.
Centrado no onirismo pela concepção de sonho, o ideal de leitura do artístico se acentua no sonho do voo por entender que este o direciona pelo ar, compreendido como um estado de superação de ação e reação, dando foco à imaginação e à contemplação.
Assentado no "sonho de voo", o leitor precisa transcender à "poética das asas" para, com base nos "trabalhos de Robert Desoille", entender que o "poético" positivo do escritor dá a ele a visão de entender o "destino" aéreo das palavras.

O postulado do sonho de voo

Bachelard diz que o voo conduz ao estado de imaginação, sendo esta diferida das simples imagens contempladas no processo diário. Pois, a imaginação é "a faculdade de deformar as imagens fornecidas pela percepção é, sobretudo a faculdade de libertar-nos das imagens primeiras, de mudar as imagens" (BACHELARD, 2001, p. 1). Com isso, o sonho de voo conduz o leitor a sonhar para libertar-se do estático, vez que "para a psicanálise clássica, o sonho de voo converteu-se num dos símbolos mais claros, num dos ?conceitos de explicação? mais comuns: ele simboliza, dizem-nos, os desejos voluptuosos" (p. 19).
No discurso de leitura do artístico o grande postulado do sonho de voo está centrado nos questionamentos de como o onirismo trará graça e beleza pitoresca aos voos.

Admitamos, com efeito, com a psicanálise, que a volúpia onírica se satisfaça fazendo voar o sonhador. Como essa impressão surda, confusa, obscura, vai receber as imagens graciosas do vôo? Como, em sua monotonia essencial, ela vai se cobrir de pitoresco até produzir as intermináveis narrativas de viagens aladas? (BACHELARD, 2001, p. 20).

Conceituada como o prazer dos sentidos a volúpia do sonhador, ao debruçar-se no artístico para dele extrair sua interpretação, mantém viva a graciosidade estética de percorrer o caminho da libertação do que é apenas real e distante de sua completude ao campo infinito. "Teu voo é uma libertação; Voando, a volúpia é bela". (p. 21).
Pela beleza do voo o leitor depara-se na formação do amor, o qual lhe dá uma infinita produção de imagens. A isso, ocorre a singularidade do voo onírico, onde o ser voante "torna-se o inventor de seu sonho" (p. 21). Por conseqüência o ser voante realiza também seu sonho, que atinge uma sequenciação potencial infinda e desfrutável. "Quando se segue um sonho tão bem definido como o sonho de voo, percebe-se que o sonho poder ter a ?sequência nas ideias?, tanto quanto obstinação afetiva em sua paixão amorosa" (p. 21).
Pela expressividade de sua simbologia o voo, nessa acentuação deve ser analisado por "uma interpretação múltipla: interpretação passional, interpretação estetizante, interpretação racional e objetiva" (p. 21).
No ascensional dessas interpretações percebe-se a existência de uma "dialética de leveza e de peso do sonho, que deixa marcas profundas na vida acordada" (p. 22), dando referência ao valor estético produzido pela leitura artística.
Apesar da acentuada validade do onirismo, os estudos eficazes do voo por Bachelard encontram limitações face ao postulado do "pequeno número de documentos sobre a experiência onírica do vôo" (p. 23).
No amplo processo explicativo da ocorrência e contribuição do voo onírico para a produção de uma leitura artística, que facilita a compreensão do belo poético, identificam-se várias concepções teóricas que dão sentido ao senso de leitor voante, as quais são referenciadas, conforme segue.
Herbert Spencer enfatiza que o sonho é tão interessante ao passo que "algumas pessoas o que quiseram viver em seu estado de vigília". Com isso "o sonho de voo deixa a lembrança de uma aptidão para voar com tanta facilidade que ficamos admirados de não poder voar durante o dia" (p. 23).
Joseph de Maistre mostra que "os jovens estão muito sujeitos a sonhar" (p. 24). Com isso ocorre a marcha "deslizante" e a ascensão "continua", para na referência de Denis Saurat entender que "é contra o vento que marchamos e seguimos um patamar ligeiramente descendente, antes de retomar a grande curva ascendente, sem ser decepcionados" (p. 24). Na caminhada pelo voo aumenta-se a contemplação das imagens, onde estas não são estáticas, porém desafiadoras às leituras exigidas durante o voo no contexto enunciativo. Desliza-se pelas imagens ao passo que se consolida o sonho e se constrói o artístico abstrato em cada palavra. Nesse segmento, o esforço para apreender a dinâmica e profundidade do voo não se resvala apenas à visão múltipla das imagens, mas a seu problema psicológico.
Por Charles Nodier, o problema psicológico do voo onírico centra-se no questionamento de que o homem sonhador se compara aos aeróstatos. Isso implica na aceitação da racionalização do sonho e, não na esfera onírica. "Por que o homem que nunca sonhou que fende o espaço sobre asas, como todas as criaturas voantes que o cercam, sonha tão frequentemente que se eleva com um poder elástico, à maneira dos aeróstatos?" (p. 25.). Por isso, "graças ao aeróstato, graças ao avião, o voo humano deixou de ser um absurdo" (p. 25). Vê-se nesse tratamento que a realização da experiência do aeróstato no sonho de voo dá sustentação para que o filósofo entrelace o sonho à "experiência subjetiva" (p. 26).
A experiência do voo ao fato aeróstato, sustenta a ocorrência de um jogo de imagens em que por força genuína, a imaginação do sonhador atinge seu mais vasto estado de sonho. Pela racionalização, o sonho é cada vez mais presente e centrado na completude do homem, seja por racional ou subjetivo. "O homem entregue à vida desperta racionaliza os seus sonhos com os conceitos da vida usual" (p. 26). Contudo, a forma pura do sonho só é contemplada a partir da ocorrência "do fenômeno do repouso óptico e do repouso verbal" (p. 27). É preciso chegar ao estado acentuado da calmaria para que o sonho ocorra e encontre a contemplação das imagens.

Assim, diante de uma realidade onírica tão nítida quanto o sonho de voo, é preciso, a nosso ver, para penetrar-lhe a essência, defender-se contra a ingerência das imagens visuais e aproximar-se quanto possível da experiência essencial. (BACHERLARD, 2001, p. 27).

Na absorção do pássaro como o elemento de voo, a via aérea do sonho toma como acentuação sua leveza e beleza, pois "no mundo do sonho não se voa porque se tem asas, mas acredita-se ter asas porque se voa" (p. 28). Pela figura da asa o leitor se desprende de seu mundo real, passando a contemplar o belo presente da sublimidade do ascensional que o eleva a ver o artístico além do processo plano com que tinha contato anteriormente na obra de arte. Atine às concepções de Noider, percebe-se a linha do sonho sob a ótica da imaginação da água . Nesta, enfatiza-se que a singularidade com que a água carrega o barco, o ar é capaz, de sustentar o homem em seu estado onírico.
Pela figura da asa a busca da imaginação torna-se crescente e, com isso se define a dinamicidade sonho voo. O leitor deve "fazer um esforço para reencontrar suas experiências noturnas de voo onírico sob o aspecto dinâmico puro" (p. 29). Implica esta atitude em resvalar suas possibilidades para além do sonho e, com isso saltar suas expectativas por suas próprias forças e pés rumo a uma ação libertadora.
A vertente de promover o salto demonstra a elasticidade do artista para sair de seu estado estagnado e atingir sua libertação, seu desprendimento do trivial e, com contemplar e artístico fundando no onirismo. Nisso a aquisição das asas, sejam pequenas ou não, darão ao sonhador e, em destaque ao leitor, a percepção de que a obra artística exige a plantação de asas, as quais o conduzirão à sublimidade.
Pelas concepções de Jules Duhem, destacando que o leitor, em comparação aos budistas , vê-se que ele atinge sua sublimidade e, com isso é capaz de levitar com a ajuda dos pés, os quais pela metapoética são "asas presas nos calcanhares sob o nome de asas oníricas" (p. 31). Nessas asas o sonhador se resvala no caminho da descoberta onírica para chegar a céu de sua completude, pois "no sonho, não se voa para ir aos céus, sobe-seI aos céus porque se voa" (p. 33).
A pureza do sonho é construída pela dinâmica da leveza de seus pés. Esses pés conduzem o artista à leveza presente em sua sublimidade quando se está sonhando. O sonho liberta o homem da dureza do dia para trazer-lhe a doçura do voo ao ver que "nosso coração pelas penas do dia é curado durante a noite pela doçura e facilidade do voo onírico" (p. 34).
O voo leva o artista a superar o medo para alcançar a alegria, sobretudo a elevação de seu psiquismo. É preciso não ter medo de cair durante o voo para não fracassar ou ainda, para não contemplar o belo e a volúpia amorosa de seu estado de amor.
A arte do voo é sonhada e vista pelo artista como o elemento difusor de seu estado de sublimação. Neste, o sonhador é levado a contemplar o ar como seu transporte, sob a vertente do carregamento das nuvens em sua mais bela singeleza.
Com sublimidade, a abordagem de Shelley por sua poesia área e em seu Prometeu libertado dá ao homem a condição de superar suas limitações oníricas, em que "O Prometeu libertado é assim colocado sob a guarda de Dante, o mais verticalizante dos poetas, o poeta que explora as duas verticais do Paraíso e do Inferno" (p. 41). Nisto, a poesia reflete a mímesis da vida, por meio da qual se vê "a vida humana profunda" (p. 41).
No eixo humano, a espiritualidade da poética aflora o caminho da superação entre os opostos paraíso e inferno, dando ao homem a condição de atingir sua espiritualidade, a qual lhe satisfaz o estado de elevação ao atingir a altura maior presente no artístico quando se "polariza o sentida da altura para receber facilmente as valorizações sociais, morais e prometéicas" (p. 42).
Na vertente da "A água e os sonhos" é possível entender o movimento da barca no ar como o voo onírico do homem no ar. Isso faculta o entendimento de que o "homem é embalado à felicidade, inclusive submetido a uma felicidade sem limite" (p. 43). Com isso, o processo imagético traçado pela barca e pelo ar aduz ao homem que a sublimidade do artístico está presente em seu sonho, em seu voo. Por isso, as "imagens poéticas criadas pelo poeta devem acrescentar-lhes um movimento para compreender-lhes a ação poética" (p. 46).
Nessa sequência, o sonhador é capaz de viver uma grande experiência pela leveza do ar e pela agilidade da asa, permitindo que este veja "as grandes iluminações da vida noturna e se eleva até a plena luz" (p. 49). Por resultado dessa iluminação, o leitor do artístico vê que a plenitude da luz leva à espiritualidade com que Deus mostra a superação do sofrimento das trevas pela grandeza da luz espiritual.
Nestes apontamentos sucintos, a sublimação do sonho de voo é atingida pela dinamicidade de sua imaginação, pois "se compreenderá que, na imaginação humana, o voo é uma transcendência da grandeza" (p. 64).

O artístico na poética das asas

Imbricado no sonho de voo, a poetização pelas asas transcende a vertente onírica e acentua o devaneio para a expansão da visualização artística. Segmentando a metáfora do ser voante, as "asas" representam a mais alta ousadia no encontro com o belo. Pelo método gastoniano, vê-se que "O movimento de voo dá imediatamente, numa abstração fulminante, uma imaginação dinâmica perfeita, acabada, total" (p. 65). Pela dinamicidade exposta, o artístico contido no pássaro é formado pela leveza de suas asas, de seu voo. "O que é belo, no pássaro, primitivamente, é o voo" (p. 66). Acentuado na vertente das asas, que leva o pássaro a seu estado mais abstrato, o movimento voante percorre a dimensão dialética para construir os significados mais translúcidos da leitura do artístico.
Face ao traçado das asas, que leva o pássaro a uma satisfação de sublimação ao encontrar seu desprendimento corporal no ar pela leveza que o segura na planificação, a poética das asas, remete à leitura de um belo presente e em completude pelo imaginário que se destoa nos sonhos e no multicolorido do voo. Transcendente à consubstanciação artística das asas, o belo se consolida no pássaro, pois "só o pássaro, continua e realiza a imagem primeira, aquela que vivemos em nossos sonhos profundos" (p. 67).
Nos estudos de Toussenel , vê-se a poética por uma dimensão mais precisa e mais sublime, a ponto de se deleitar na completude pelo riso satisfatório. O riso, pela beleza da asa, forma o percurso do trivial ao poético, ao sublime por uma leveza gravitacional.
A leveza gravitacional percorre o valor das asas para destacar que a poética é capaz de conduzir o ser ao seu estado de sublimidade presente na satisfação contida na revelação do Deus supremo. Nisso, "o voo é assim ao mesmo tempo uma lembrança de nossos sonhos e um desejo da recompensa que Deus nos dará" (p. 68). Pela asa, que conduz o pássaro a seu estado de amplitude, o homem quando se condensa pelo voo onírico, na mesma sublimidade do pássaro é capaz de transcender o estado imaginário e construir seu contentamento, sua alegria na assunção de um "superpássaro". Transfigura-se a poética das asas na condensação do pássaro em asa, da asa em pássaro, do pássaro em ser, do homem em pássaro e em ser, e do pássaro em sonho, bem como do homem em sonho, atingindo o verdadeiro estado poético.
O estado de homem como sonho é confirmado quando o sonho noturno é o provocador do devaneio no poeta. Nisso, a satisfação do voo reflete a imortalidade interpretativa da arte, pela ousadia do homem, por meio do sonho. "O voo onírico é um fenômeno da felicidade dormente, desprovido de tragédia. Só voamos em sonho quando somos felizes" (p. 70).
A felicidade é o ato construído pela condução das asas. No homem as asas estão presentes em sua imaginação a fim de lançá-lo nos caminhos mais profundos de satisfação durante seu convívio com a arte, com o belo, com seu estado de felicidade, ou de imanência pelo envolvimento com o sublime presente em sua espiritualidade ao contemplar-se ante a beleza divina. "Deus não se limite a criar pássaros vivos e quentes que voam no azul e na nuvem. Criou também, ?para seus fiéis, os tipos aéreos da Péri, do Anjo, da Sílfide" (p. 71). Pela Sílfide atenta-se para a supremacia da imaginação, sendo um reflexo da pureza artística vislumbrada no voo do homem.
Verticalizando a asas para a completude poética, a beleza do voo onírico reflete o espírito voante criado por Deus antes mesmo da criação do pássaro. "Os anjos voavam ali sem dúvida" (p. 74). Percorre-se esta visão para se entender que o movimento aéreo na figura do pássaro, é antes refletido no voo do homem durante seu deleite com a obra de arte. Pela realidade torna-se impossível dar ao homem asas para sua seu voo, mas pela imaginação ante ao artístico constrói-se nele o voo para enfatizar seu progresso de ser voante e de ascendência onírica.
À luz blakiana, a poética das asas amplia-se para dar ao homem novas posturas comportamentais ante ao desafio de leitura do artístico. Por esse foco, percebe-se que "o pensamento é feito do ser criado por seu movimento" (p.79). Este movimento mostra o voo do homem pelo processo rastejante figurado na serpente, a qual é capaz de voar para atingir sua presa. Essa atitude indica a conquista do voo, vez que "o pesadelo do terrestre conduz à compreensão do sono alado do aéreo" (p. 80). Para Blake o corpo terrestre é uma forma espectra centrada na ascensão aérea, a qual conduz ao sonho voante e realizável pela emanação.
As posturas blakianas mostram as dificuldades de voo para a interpretação artística da e na leitura, vez que o ascensional poético imbricado nas asas resulta de amplos esforços e sofrimentos para a conquista onírica. Incessante há um chamado para o despertamento, para o voo, para a leitura artística presa em dormências imaginárias. O desafio do leitor é deixar o apego à terra e transcender ao voo imagético contido no aéreo das palavras. As asas infundem a realização dos "sofrimentos de um ser pego por todos os lados na terra, mas trabalhado por forças imaginárias que querem deixar a terra" (p. 81). A visão de deixar a terra é acentuar a realização das asas, contidas no imaginário que permite a busca potencial da energia interpretativa. Isso exige do leitor um desprendimento de atitudes que o ajudem a irromper a singularidade onírica para atingir o estado de realização, de sublimação do belo.
Diante da obra de arte o leitor é conduzido a realizar sua imaginação absoluta, a qual "comanda as matérias, as forças, as formas, a vida, o pensamento, e que pode legitimar o real pelo imaginário" (p. 82).
A estética do voo é retratada pela energia, leveza e de alegria do leitor durante sua interpretação artística. Para tanto, emprega-se da imagem da cotovia como recurso de compreensão da imaginação dinâmica sobre a das formas. A figura da cotovia é abordada em razão de sua metaforização. "a realidade da cotovia, em literatura, é um caso particularmente puro e nítido do realismo da metáfora" (p. 83). Para o poeta este é o animal figurativo de sua imaginação superando todos os pontos insondáveis.

Deixa o bom Deus governar todas as coisas,
Ele por quem subsistem os ribeiros, as
Cotovias, as florestas, os campos,
A terra e o céu.

Entrelaçada ao pássaro, a cotovia representa a mais sublime figura poética por seu canto e seu corpo carregado de singularidade pela projeção de sua maciez ao voo do leitor durante o contato com a arte e com sua leitura onírica. Este entendimento perpassa a valorização da cotovia por Michelet quando atribui a esta o encantamento imagético. "descrever a cotovia é fugir da tarefa descritiva, é encontrar uma beleza outra que a beleza descritível" (p. 84).
O encontro artístico pela sugestividade da beleza da cotovia é para o leitor o momento de ocorrência maior de sua leitura. Nesse estado ele contempla a mais profunda interpretação da arte, sendo-lhe revertida a realização do eu poético voante.

Nunca vi a cotovia e levanto-me inutilmente antes da aurora.
A cotovia não é um pássaro da terra...
Mas escutem como eu escuto.
Não ouvem em algum lugar, lá de cima, moer numa taça de ouro pedaços de cristal?
Quem poderá dizer-me onde canta a cotovia?
........................................................................
A cotovia vive no céu, e é o único pássaro do céu cujo canto chega até nós.

Levada ao estabelecimento figurativo para cotovia para a busca do belo artístico, o leitor é conduzido a contemplar sua leveza para expressar seu voo, o qual é conduzido poeticamente pelas asas imaginárias, porém lúcidas de seu apego ao onirismo latente em suas realizações, em suas contemplações planificadas da e na obra de arte.
Ascende-se a poética das asas pela projeção que o leitor atinge durante seu contato com o objeto poético. Este objeto é para ele uma aprendizagem infinda, exatamente por voar em sua imaginação, a qual deixa de ter fim para engendrar novas leituras artísticas decorrentes das metáforas vividas. Se a vida contemplasse apenas o real seria destoante o voo que o leitor realiza em contato com a arte, com o artístico. "O ser real não nos ensina nada; a cotovia é "pura imagem", pura imagem espiritual que não encontra sua vida senão na imaginação aérea, como centro das metáforas do ar e da ascensão" (p. 87). Ser leitor sem asas poéticas é deixar de contemplar o que existe de pureza na leitura da arte.

A contemplação artística nos trabalhos de Robert Desoille.
Pela psicologia ascensional, Robert Desoille percorre a dimensão do sonho acordado para enfatizar a busca da "felicidade ante aos sentimentos confusos e infelizes" (p. 111).
No conjunto imagético produzido por meio do sonho acordado, os trabalhos de Desoille consistem, via iluminação da imaginação, "determinar no sujeito sonhante um hábito de onirismo de ascensão" (p. 112), levando o leitor a perceber a busca do artístico em fase de sublimidade, visto ao rompimento da imaginação estagnada, pois "a imaginação que ilumina a vontade se une a uma vontade de imaginar, de viver o que se imagina. É a imaginação que nos fornece as mais belas imagens ao longo da qual corre o esquema dinâmico heróico" (p. 112).
No destaque ao trabalho iluminativo, cada ação do voo remete à ascensão da vida pela grandeza imaginária. Nisso, a concepção de Desoille se coaduna ao campo aéreo para demonstrar que a leitura da arte é feita no percurso do voo. Pela sublimação realizada, as inferências do sonho acordado projetadas pelo conjunto de imagens que se formam mediante a capacidade de projeção mental, desbloqueiam a capacidade pensante do leitor e o conduz à descoberta de "sentimentos novos" (p. 113). Estes refletem o conjunto de leituras futuras que trarão revelações da arte em leitura.
Enfrentando o estado de libertação do simplório figurativizado, verifica-se que assim como a cura psicanalítica se processa pela condução de um sonho acordado, passando por dificuldades de entendimento das imagens ou ajuntamento destas, o leitor em seu trabalho interpretativo deve refletir, a suor elucidativo, a busca do prazer contido nas entranhas, ou no fundo figurado da obra de arte. Isso implica no desafio de destoar a leitura para além de uma tarefa fácil. Esta é, antes de tudo, uma prova de "fogo". "Não nos tornamos uma alma leve da noite para o dia. Se o prazer é natural e fácil, é preciso aprender a felicidade; é preciso tomar consciência de todos os valores de alivio da felicidade" (p. 113). Para a felicidade artística, o imprescindível é lançar-se à completude contida no leve e no árduo interpretativo.
A afirmativa imagética para a ascensão poética aponta para o desembaraço das preocupações do voo. Um voo que se faz emaranhado em facetas imagéticas deturpadas não é capaz de revelar a vida, o belo e a sublimidade, a qual dá vida e valores ao ser sonhante. "Não permanecei no império das palavras, vivei os gestos, vede as imagens, persegui a vida da imagem" (p. 114). Na projeção dessa perseguição imagética, o direcionamento para a libertação das imagens simples é provocado por um processo de varrer, indicando a libertação das perturbações ou dos entraves que interrompem a capacidade de agir e, com isso jogar para fora ou deixar para trás aquilo que não é útil, ou seja, não ajuda na leitura e no entendimento artístico.
A grande vertente de Desoille aflora-se para o campo da desconsideração do gesto fingindo e imaginado. Na arte, a sublimação só é atingida pela sinceridade do sonho, pois esta é a que provoca o sentimental artístico verdadeiro e conduz o leitor ao seu estado de satisfação. Este libertado do fingimento vê no seu voo verdadeiro, que "a vida sentimental tem uma verdadeira fome de imagens" (p. 116). Vertente ao trabalho como atitude do sonhador, a ação de lançar-se à busca do sonho e da construção dos significados é uma fator que exige a força do real trabalho. "O trabalho é uma fonte de devaneios indefinidos quanto uma fonte de conhecimentos. No trabalho, desenvolve-se a epopéia dos sonhos" (p. 116). Ao trabalhar seu sonho, o leitor é conduzido a desenvolver sua capacidade de entendimento da arte, sendo lhe peculiar a percepção de que as significações artísticas só se processam quando se desprende atitudes e vontades conjugadas que se encontram inertes.
Presente na vida do paciente da psicanálise, os trabalhos conduzem aos estados de sublimação. Esta, por sua vez aduz a "uma verdadeira educação da imaginação" (p. 116), permitindo que o ser se conscientize de suas atitudes para libertar-se do terrestre, que no caso do paciente é vivido pela necessidade de atingir a saúde e, no caso do leitor pela urgência de libertar-se da simplicidade de sua leitura para desprender-se pelo voo e pelo "exercício da ascensão imaginária" (p. 117).
Centrado no chão, pela figura dos pés, arrola-se o leitor e o paciente para o desprendimento de seu estado real para a provação da urgência da ação imaginária. Caminhar pelo onírico é o passo que desprende o passado, sem a devida leitura, para um futuro que se completa com a satisfação interpretativa da beleza figurada na arte. Isso provoca a reflexão que "um dos meus pés se chama passado, o outro futuro" (p. 117). Pela imagem dos pés estabelece-se a visão do movimento do ser, o qual já não se satisfaz com seu estado anterior de saúde ou de capacidade de leitura. Agora se lança no caminho que construirá suas satisfações, pois "qualquer que seja a assimilação da marcha ascendente e da marcha ritmada, a aspiração para as alturas só assume seu verdadeiro valor imaginário numa ascensão que deixa a terra" (p. 117). Vertente à marcha o ser voante conduz seu passo para amplas conquistas provocadas por sua aterrissagem, levando a contemplar do alto, seja sua cura ou sua leitura.
A ascensão encontrada é vista nestes trabalhos como uma figura que projeta o ser para um mundo colorido e figurativizado por amplas iluminações que permite um encontro brilhante e cheio de completude, pois "o sonhador tem a impressão de banhar-se numa luz que o transporta e o faz penetrar na felicidade por inteiro" (p. 119). Decorrente do brilho das luzes, o homem é refletido em si e desafiado a identificar sua própria luz, pois em seu estado primário, antes do voo, ele está sem luminosidade, pois "seria muito estranho um homem sem luz falar da origem do ar, do fogo, da água, da terra" (p. 120). Sem esta iluminação seria impossível para o homem "caminhar de par co sua serenidade e, elevar-se a uma unidade dinâmica" (p. 120) com o seu sonho em construção.
Em conjuntura de realidade, o método da aproximação, conduz o homem, ser voante, para a "probabilidade de encontrar-se em seus diferentes pensamentos" (p. 121). A proximidade destacada direciona para a vertente do encontro imaginário com a verdadeira realidade. Por sonhar acordado, o leitor depara-se com a arte, que é real e promove seu voo para dela absorver o artístico em devolução de sua satisfação e sublimidade. Este enfoque ressalta a presença da satisfação contida na poesia que é real em sua construção, mas imaginária em sua compreensão. Visto que "o sonho ascensional deveria tornar-nos mais sensíveis à poesia aérea. Percorrendo o aéreo poético, "um grande poeta, por seu estado aéreo, distensão aérea e dinamismo aéreo nos irá revelar a grandeza e, por si mesmo, a eminente realidade" (p. 122). Esta realidade não retroage o sonho de voo, antes a assume como uma mensagem de ânimo para viver seu estado de maior satisfação. Pela poética textual, o exemplo das passagens de Épître à Storge de O. V. de Milosz indica esta realidade ocorrida, pois "depois de fazer minha oração e meditar meu versículo cotidiano da Bíblia, senti de repente, sem sombra de espanto, uma mudança das mais inesperadas efetuar-se por todo o meu corpo" (p. 122).
Os trabalhos analisados mostram que suas vertentes "equivalem a integrar a sublimação na vida psíquica normal" (p. 124). Este entendimento dá satisfação à concepção de que o leitor, portador de sua inteligência é conduzido, via imaginário poético, a refletir seu estado de voo e, com ele encontrar sua felicidade interpretativa.
Nos rumos dos trabalhos, Bachelard destaca que a leitura da obra literária, decorrente do voo onírico, provoca a "associação do leitor à obra literária" (p. 125). Ocorre nesse processo a intimidade entre leitor e personagens, pois "a personagem obriga o leitor a representá-la; e este não faz o mínimo ato de vontade, obedece a um mandamento: ?hoje me lerás, e viverei em ti?" (p. 126). Interligado no trabalho de imaginar e de refletir seu estado aéreo, seu dinamismo, sua elevação, sua iluminação, sua autonomia voante a grande vertente da leitura alia pelo sonho de voo e de realidade presente na obra de arte, a fundação do gênio do escritor para despertar um superego do leitor, por meio do qual é possível realizar as interpretações artísticas e, mais ainda destoar em cada leitor "o superego poético, o qual é captado pela crítica literária. Por esse delineamento, o "sonho de voo", a poética das asas" e os "trabalhos de Desoille" figuram para o leitor como o "superego positivo, sendo aquele que chama a alma ao destino poético, que é seu destino aéreo" (p. 126).
Na dimensão onírica de ter contemplado a imagem sintética do "Ar e os Sonhos" de Bachelard, o referencial sugestivo de leitura para a contemplação da sublimidade artística que se encaminha aos leitores deste texto prolonga-se pela vertente de que não há contemplação de uma obra de arte sem viajar no imaginário e na realidade dela, na do escritor e na do próprio leitor.


Bibliografia

BACHELARD, Gaston. O ar e os sonhos: ensaio sobre a imaginação do movimento. [tradução Antonio de Pádua Danesi]. ? 2. ed. ? São Paulo: Martins Fontes, 2001. ? (Tópicos).