A HEREDITARIEDADE CULTURAL NOS PROVÉRBIOS DE “TERRA SONÂMBULA”

 

Resumo

 

O presente ensaio tem a finalidade de apresentar o romance Terra Sonâmbula através do estudo de provérbios. Mia Couto organiza seu texto a partir de uma sucessão de episódios, baseados na tradição oral africana.

Em algumas tribos africanas algumas conversas consistem apenas de provérbios e, também, há nomes de pessoas com o mesmo gênero. É uma fonte reveladora de educação e filosofia entre gerações com o mundo moderno. Os zulus, por exemplo, dizem que sem eles “a linguagem é como um esqueleto sem carne ou um corpo sem alma” e os yoruba que “é o cavalo do discurso”, ou seja, “se o discurso de perde usa-se o provérbio para procurá-lo”.

Desde a Idade Média a oralidade ocupa o papel fundamental da voz na literatura e demonstra toda a sua importância em relação à forma escrita. Essa característica medievalista também aqui nos é pertinente, uma vez que várias problemáticas foram apresentadas entre a sua relação com a literatura.

A crítica africana revela grande interesse cultural na literatura e em seu tradicionalismo, por enfatizar paralelos entre os escritos em língua européia e sua oralidade indígena. Os escritores africanos fazem grandes esforços para manter essa tradição e, assim, dar autonomia às suas obras.

 

Palavras-chave: literatura africana – tradição – provérbios – Mia Couto – Terra Sonâmbula

 

A literatura africana vem ganhando adeptos entre os meios literários e tal afirmação é válida, baseada no interesse de alguns cursos superiores, como os de Letras e Comunicação, ao estudá-la como disciplina diferenciada, a fim do aprofundamento em sua cultura. Sua principal fonte é a expressão “negritude”, um movimento de resgate das raízes e história da cultura negra, que se apresenta sob as formas de música, filmes e também de literatura.

Esta última existe em diversas línguas nas nações com as quais se uniu o continente africano na época de colonização. Estas nações, em sua maioria, eram povoadas por tribos nômades independentes umas das outras e por isso não tinham conhecimento dos dialetos uns dos outros. Desse modo, cada qual tinha sua visão de mundo e sua maneira de falar sobre ele.

Segundo Paul Zumthor (apud LEITE, 2003. pag 35), desde a Idade Média a oralidade ocupa o papel fundamental da voz na literatura e demonstra toda a sua importância em relação à forma escrita. Essa característica medievalista também aqui nos é pertinente, uma vez que várias problemáticas foram apresentadas entre a sua relação com a literatura.

Tendo base nessa perspectiva de mundivivência, cabe aos provérbios o papel de transmitir o senso comum relacionado às situações universais da vida nas culturas africanas, já que muitos deles foram criados a centenas de anos.

Para exemplificá-los literariamente, recorreremos ao romance moçambicano “Terra Sonâmbula” de Mia Couto.

Fugindo da guerra civil que toma o país estão o velho Tuahir e o menino Muidinga à procura de um lugar seguro. À sua volta, o que vêem é um cenário calamitoso: casas abandonadas, fome, o estouro dos tiros, amontoados de corpos. E os que ainda sobrevivem esperam o alívio da morte. Durante o percurso, encontram uma mala junto a um dos mortos, vasculham seus pertences e, entre alguns mantimentos, encontram os antigos cadernos de memórias deste jovem, Kindzu. Recolhem-se nas ruínas de num ônibus incendiado próximo dali. Os achados são lidos todas as noites pela criança ao idoso, como maneira de confortar-lhes a alma, refugiarem-se numa história alheia às deles.

No que diz respeito aos ensinamentos da cultura local, o homem mais velho transmite o que aprendeu com seus antecessores ao mais moço e este, por sua vez, às suas gerações futuras. Pode-se afirmar que, quanto à postura do “contador de histórias” e por se tratar de uma obra pós-moderna, Couto conflitua a tradição e a modernidade numa inversão de papéis:

"O miúdo lê em voz alta. Seus olhos se abrem mais que a voz que, lenta e cuidadosa, vai decifrando as letras." (COUTO, 1992. pag 13)

O que se pode apreender a respeito de literatura africana, de acordo com Emmanuel Obiechina, trata-se de "enquadrar um variado conjunto de textos orais, do mito à fábula, enquanto "estórias" encaixadas" (apud LEITE, 2003. pag 41).

As histórias que seguem o enredo, em sua maioria, são do gênero conto e algumas delas em formas de parábolas, como na primeira narrativa, “cuja estrutura aparece misturada com as dos contos de ogres, contos de animais e contos de pessoas”, segundo Henri Junod (apud LEITE, 2003. pag 42). Exemplo de tal conceito encontra-se no personagem Siqueleto, “velho alto e torto” quando da sua vontade de “plantar gente” e povoar novamente as terras:

“É isso que nos vai fazer. Ele quer companhia, quer que nasça mais gente.” (COUTO, 1992. pag 65)

Grande parte da segunda narrativa também segue um padrão: é estruturada a partir de histórias sonhadas. De acordo com a estudiosa Ana Mafalda Leite (2003. pag 43), o sonho “permite o surgimento constante da profecia e de um tipo de fala sentenciosa e proverbial”, aspecto que se pode salientar quanto à sabedoria dos narradores, nos provérbios que funcionam como uma repetição enigmática:

“A guerra é uma cobra que usa os nossos próprios dentes para nos morder. Seu veneno circulava agora em todos os rios da nossa alma. De dia já não saímos, de noite não sonhávamos. O sonho é o olho da vida. Nós estávamos cegos”. (COUTO, 1992. pag 17)

Vale ressaltar que a maioria dessas estórias fazem parte da crença dos tsonga, situados ao sul de Moçambique, como os obstáculos encontrados na viagem de Kindzu com o aparecimento de uma mampfana, ave de mau agouro.

Esse tipo de narrativa se constrói a partir de espelhamentos internos das personagens. Verifica-se tal conceito na fábula do boi e da garça relatada pelo pastor a Muidinga, mostrando a transformação do mamífero em ave.

Às duas por uma, ele começou a minguar, pequenando-se de taurino para bezerro, de bezerro para gato chifrudo. Em violentos arrepios se sacudiu e os pêlos, aos tufos, lhe foram caindo. No igual tempo lhe surgiram plumas brancas. Em instantes, o mamífero fazia nascer de si uma ave, profundamente garça. (COUTO, 1992. pag 177)

Os provérbios remetem a memória da oralidade e da tradição e, segundo Ruth Finnegan (apud LEITE, 2003. pag 45), podem começar uma história, sublinhá-la, terminá-la, talvez mais do que qualquer outra forma.

Em algumas tribos africanas algumas conversas consistem apenas de provérbios e, também, há nomes de pessoas com o mesmo gênero, como os umbundu. É uma fonte reveladora de educação e filosofia entre gerações com o mundo moderno. Os zulus, por exemplo, dizem que sem eles “a linguagem é como um esqueleto sem carne ou um corpo sem alma” e os yoruba que “é o cavalo do discurso”, ou seja, “se o discurso de perde usa-se o provérbio para procurá-lo”.

Ao final do romance as duas narrativas se confluem: a do menino sem memória à procura dos pais e do jovem, o qual pertence os diários, em busca dos valores humanos e do verdadeiro sentido da vida.

E o menino estremece como se nascesse por uma segunda vez. De sua mão tombam os cadernos. Movidas por um vento que nascia não do ar mas do próprio chão, as folhas se espalham pela estrada. Então, as letras, uma por uma, se vão convertendo em grãos de areia e, aos poucos, todos meus escritos se vão transformando em páginas de terra. (COUTO, 1992. pag 204)

As histórias se encerram alegoricamente transmitindo a aprendizagem e a relação de mundo dos mais velhos com os mais novos. Esse ensinamento concentra-se, grande parte, no uso dos provérbios, uma vez que se apropriam da tradição das narrativas orais e também dos contos que se adaptam à modernidade.

“- Estou-lhe a dizer, miúdo: vamos instalar casa aqui mesmo.

- Mas aqui? Num machimbombo todo incendiado?

- Você não sabe nada, miúdo. O que já está queimado não volta a arder.” (COUTO, 1992. pag 10)

As personagens que mais usam provérbios para se comunicar são as mais velhas e estão sempre ligados ao mundo rural, como Tuahir, Taímo e o feiticeiro Nganga. Com suas falas proféticas são eles que tudo conhecem e sabem o que fazer no seu exato momento.

O provérbio parece ser uma das formas ideais para preencher o papel de iniciador, que assume o escritor africano, à maneira do contador de histórias, e ao mesmo tempo serve-lhe para caracterizar a mundivivência dos mais velhos, em especial do mundo rural. Tem a utilidade também de ser uma forma de controle narrativo, por um lado, reiterativo da história narrada, mote da sua abertura, ou de posteriores desenvolvimentos do enredo. (LEITE, 2003. pag 46 )

Além do que já foi citado anteriormente, o provérbio ainda é um gênero econômico que permite refletir e meditar sobre a maneira como a personagem se enquadra culturalmente.

“Nhamataca não está maluco, não. O homem é como a casa: deve ser visto por dentro”. (COUTO, 1992. pag 97)

Compreender a recuperação da memória e fazer com que as futuras gerações tenham o mesmo empenho que tiveram seus antepassados para difundir e divulgar as suas tradições é de grande valia aos críticos da literatura africana, uma vez que enfatizam paralelos entre os escritos em língua européia e a oralidade indígena. Cabe aos escritores africanos manter os mesmos esforços para com a causa cultural de seu país e, assim, dar certa carga de autonomia às suas obras.


Referências Bibliográficas

 

COUTO, Mia. Terra Sonâmbula. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

LEITE, Ana Mafalda. Literaturas africanas e formulações pós-coloniais. Maputo: Imprensa Universitária, 2003.

MANZRUI, Ali A. “O desenvolvimento da literatura moderna”. In: História Geral da África: África desde 1935. Vol VIII. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0019/001902/190256por.pdf. Acesso em 07 out 2011.