Um pouco absurdo. Ou, talvez, muito absurdo. Mas um absurdo misturado ao real, ao cotidiano. Você já presenciou alguma situação estranha? Mas estranha mesmo? Já imaginou um mundo em que você pudesse olhar pela janela do seu carro e, de repente, seus olhos mirassem um dragão voando? É essa atmosfera de fantasia, misturada a uma narrativa real, de um mundo que entendemos como real, que impregna cada página do romance O Centauro no Jardim, do escritor Moacyr Scliar. E é muito interessante ver como a ficção, por mais fantasiosa que seja, quando verossímil, consegue nos contar histórias reais com mais força e emoção do que uma simples narrativa direta de fatos crus.

O romance supracitado aborda a história de Guedali que, nascido centauro (a criatura mitológica metade humano, metade cavalo), sofre tendo que viver escondido, e luta para tornar-se “normal”.

Como todo o bom romance, esse não consiste em uma história, apenas. Trata-se de uma análise da própria identidade pessoal do ser humano (que os sociólogos definem como o sentido que cada um constrói de si mesmo). Uma indagação sobre “quem somos”, em comparação com “quem queremos ser”, e “por que somos o que somos”. Solidão, desorientação, encontros, desencontros e reencontros, felicidade e tristeza, vão moldando a vida de Guedali, e suas atitudes durante a obra revelam facetas do comportamento humano (ou seria centauriano?). A luta e a coragem para sair de um mundo aconchegante (o lar) e fugir para um novo mundo de incertezas, atitude essa movida pela frustração causada pelo seu destino aparente (permanecer escondido para sempre), demonstram a vontade de mudar. A luta, enfim, para se tornar o que ele queria ser (normal? Livre?).

Os elementos de fantasia presentes no livro, convenientemente misturados à realidade de pessoas normais, são característica da obra de Moacyr Scliar. O Centauro no Jardim não deixa de apresentar uma certa semelhança com A Metamorfose, do também brilhante Franz Kafka, obra na qual o protagonista se vê, de um dia para outro, transformado em um terrível inseto. É gritante, no entanto, a diferença na reação das famílias: enquanto o centauro de Moacyr é muito bem aceito, o inseto de Kafka é desprezado pelos pais. Reflexo do modo como se deu a infância de cada um.

A verossimilhança da existência de centauros e outros seres mitológicos na história é um ponto alto. Você quase acredita que centauros existem mesmo (quem sabe se não existem de verdade, escondidos em alguma fazenda no interior?... Ops... não disse? Já tive outro deslize). O fato é que existem pessoas diferentes que, por isso, são excluídas. Talvez não tenha sido a intenção do autor estabelecer tal paralelo, mas em todo momento, aparecem em nosso cotidiano aqueles que, estando fora de determinado padrão (de cultura, condições financeiras, etc.), precisam percorrer longo caminho na busca por seus sonhos.

É, pois, incrível a mistura presente no livro entre elementos fantásticos e reais. A ideia é simples. O autor parte do impossível (sim, centauros não são reais) para criar um retrato realista e apurado da verdadeira natureza humana. Deve ser por possibilitar obras como essa que o imaginário foi chamado por Marina Colasanti de “o real mais que real”.