A ESCRITURA DO SACRÍFICIO HUMANO NA OBRA
O NOME DA ROSA DE HUMBERTO ECO*

Rozelia Scheifler Rasia

O nome da Rosa, insere-se entre os romances que mesclam memória ficcional, investigação e pesquisa histórico-religiosa em uma trama que aborda fatos cotidianos, transgressões morais e punições de monges beneditinos, que viviam em um mosteiro inacessível na Itália do século XIV.
Dois fictícios manuscritos abastecem a narrativa: o texto original escrito pelo idoso monge Adso com a reconstrução das memórias de sua juventude mescladas a conteúdos extraliterários, como fatos históricos sobre a disputa de poder entre a Igreja e o Estado e o supostamente perigoso Livro do Riso atribuído a Aristóteles, o qual seria a segunda parte da Poética.
A tradução da obra traz expressões filosóficas e eclesiásticas medievais, além de diversas expressões em latim; também, mantém jogos com a linguagem no relato das pseudolembranças do narrador. O idioma oficial do apostolado repete-se no título e na última frase do livro numa expressão medieval usada como referência a seres ou objetos, que poderiam ter existido apenas ficcionalmente ou deixado de existir, como o Livro do Riso, situado no centro da ação narrativa.
A credibilidade da trama deriva, principalmente da verossimilhança que Adso imprime aos fatos dos quais participou como narrador homodiegético, porque conta suas aventuras e desventura como co-participante, testemunha e protagonista nos diversos episódios que reconstrói e reinterpreta na construção do contexto histórico e do enredo.
Adso relata o estranhamento que sentiu diante da série de mortes, que ocorreram quando, ainda adolescente se hospedou, por sete dias, com Frei Guilherme de Baskerville em um mosteiro beneditino nos Alpes marítimos na Itália em 1327. Ambos chegaram à abadia para entregar uma mensagem da embaixada sobre uma conferência que aconteceria naquele local entre o Imperador Luís II da Baviera e os representantes do Papa João XXII. Porém, o mensageiro passou a investigador, porque a cada dia entre as cerimônias religiosas ocorria um crime.
O desenrolar das ações das personagens revelam o cotidiano sacerdotal, com ritos religiosos que são intercalados por relacionamentos heteros e homossexuais entre os monges, ou com mulheres introduzidas clandestinamente no Mosteiro. Durante a investigação, Guilherme empregava sua experiência de ex-inquisidor para verificar a existência de pistas sobre a crença dos beneditinos, os quais atribuíam a autoria das mortes ao maligno para punir suas transgressões.
As aventuras de Adso foram redimensionadas pela presença breve, mas avassaladora da jovem cigana, única personagem feminina. Ela representa vários papéis sociais: a estigmatização da mulher como portadora de pecado, a representante da miséria que dominava os excluídos na sociedade medieval e de bode expiatório. Essa mulher transformou o menino-monge em homem apaixonado, sofredor e impotente para lutar pela amada, que foi presa e acusada de bruxaria.
Em diversos episódios, espancamentos e torturas até a morte foram comentados para esclarecer que não era apenas no mosteiro que estas atrocidades ocorriam, mas que era uma prática legitimada pelo pontificado e aceita pela sociedade medieval, como o estraçalhamento do corpo e degola de mulheres, ou a martirização de freis que defendiam a pobreza. Com a expressão de tamanha crueldade, preparava-se o leitor para o que aconteceria em breve com a cigana.
A integração entre linguagem, poeticidade e arquitetura ocorre, principalmente, na descrição e localização da inacessível e labiríntica biblioteca localizada entre o mosteiro e o cemitério, isto é, simbolicamente, entre as estruturas de poder e o temor da morte, através dos quais a Igreja dominava o mundo medieval.
A estrutura dos capítulos segue um padrão de verticalidade em redes de fatos interconectados aos motivos que se entrelaçam para formar a unidade narrativa. Na análise, optou-se por referências de Tomachevski (1925), para a motivação composicional, realista e estética. As séries de motivos estão encadeadas em pistas, algumas consistentes e outras falsamente indicadas nas ações e na fala das personagens, ou sugeridas nos detalhes arquitetônicos do mosteiro.
Em diversos episódios, encontra-se a motivação composicional em particularidades dos episódios que estão condicionados aos ambientes. Para exemplificar, indica-se o detalhamento da Abadia, como uma fortaleza que abriga outra fortaleza: a labiríntica biblioteca, cujas características de construção permitem restrito acesso e ampla vigilância dos monges.
Os detalhes de engenharia do mosteiro permitem um intertexto com a prática do panapticon nos espaços privilegiados à visibilidade e ao controle dos ambientes e das personagens que por eles transitam, como os modelos de instituições projetados por Jeremy Bentham e integrados à narrativa de Foucault em Vigiar e Punir (1987).
A ilusão realista, em O nome da Rosa, formaliza-se em recursos de verossimilhança pela adição de materiais extraliterários empregados para compor correspondências entre fatos, datas e autoridades eclisiasticas, cujas existências são confirmadas na história das nações cristãs, como o Papa João XXII, Felipe, o belo e outros contemporâneos dos personagens da obra, durante a Inquisição.
Pelo distanciamento dos fatos vividos e pela experiência acumulada, Adso conduz, orienta, classifica e ordena os motivos narrados com ambigüidade ou clareza. Às vezes, antecipa ações, em outras esclarece situações anteriores relacionadas ao núcleo da história que transcorre em uma semana, mas sintetiza décadas de autoritarismo inquisional.
A biblioteca da abadia funciona como uma das principais células do universo diegético onde se desenrolam os mais significativos episódios, que são descritos com particularidades próprias de religiosos subordinados à igreja medieval. Os prédios do mosteiro, especialmente, a biblioteca formam ambientes adequados à trama de suspense, de transgressões e de sacrifícios que se sucedem e só terminam com a destruição de todos os espaços pelo fogo.
As falas do narrador permitem dimensionar a presença de Guilherme de Baskerville como o condutor do enredo e, também, auxiliam a definir as habilidades, o caráter do herói e sua aparência física, com aproximadamente cinqüenta anos, forte e ágil, habituado às adversidades do claustro e da pobreza, divulgador de novas concepções sócio-religiosas, apto a distinguir a ortodoxia da heresia, a verdade da mentira, o bem do mal, o profano do divino, culto e inteligente, dono de um caráter moldado pela ética e moralidade, cordato com as rigorosas punições decretadas pela igreja, desde que o condenado infringisse as regras da comunidade cristã. Para ele, as seitas heréticas se separavam da Igreja Católica por questões materiais, enquanto as espirituais eram irrelevantes, pois discordava da corrupção e da riqueza material acumulada pela instituição-mater.
A interação entre o monge-herói e o monge-narrador evidencia-se na ação coordenada de ambos como elementos dinamizadores dos episódios, nos quais partilham concepções, expectativas, frustrações e descobertas. Os sentimentos de simpatia e admiração de Adso por Guilherme influenciaram na composição do herói de sua existência.
Nessa obra, evidencia-se a purgação de sentimentos considerados impuros ou malignos através de conceitos fundamentais da teoria aristotélica, a catarse, para o efetivo cumprimento do prazer trágico. Esse conceito mescla-se nos episódios, que exploram sofrimentos e atrocidades que causam piedade e terror, como a dor impressa nas feições dos mortos, a mutilação do corpo e o descaso do carrasco com os cadáveres.
O narrador revela a mentalidade dos monges medievais, especialmente construída através do isolamento, da abstinência dos prazeres da carne, especialmente o sexual, do jejum, da proibição do riso, da autoflagelação e da morte ritual. Os personagens sacrificados são bodes expiatórios, que representam homens desprovidos do caráter e das virtudes prescritas pela comunidade religiosa.
No universo da trama, aqueles que exercem o papel de juízes acreditam que a tortura representa a possibilidade de que o sacrificador e o sacrificado, contribuam para a reabilitação da comunidade, aos olhos de Deus. Dessa maneira, o sacrificador eleva-se ao status de protetor, de guardião dos costumes e das virtudes sacerdotais.
Apesar da opção pela pobreza, a estrutura econômica do mosteiro passou a agregar bens e riquezas através da confecção e lucrativa comercialização de livros para as universidades. Assim, geravam-se poderes aos guardiões dos livros, enquanto outros sofriam por renúncias e penitências.
O investigador estava alerta aos atos das vítimas e do algoz; assim, descobriu que havia entre eles um ponto comum: algo que estaria na biblioteca, onde um esquema apocalíptico fora minuciosamente elaborado pelo monge cego, Jorge de Burgos, para desviar a atenção sobre a causa de seus crimes. O arquiteto das mortes, defendia a crença de que o riso aniquilava o medo e sem medo não haveria fé, nem temor; sem medo do Diabo, não haveria necessidade de Deus. Como detentor do poder discricionário, Burgos executou as tarefas de vigiar, julgar, punir e ritualizar os sacrifícios para reforçar a estrutura política e religiosa da qual era uma engrenagem.
Destaca-se, que atualmente, no universo real, a cultura do sacrifício humano persiste, através do monopólio ideológico como impedimento à partilha dos saberes, da segmentação entre ricos e pobres, entre exploradores e explorados e das guerras que matam os jovens e aniquilam nações. Assim, como em O nome da Rosa, divergências e transgressões, punições, mortes e segredos se perpetuam para manter a indesmentível herança de desigualdade e dominação, que são intensificadas pelas estruturas de submissão da Igreja e do Estado, como instituições impositivas e controladoras.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ECO, Umberto. O Nome da Rosa. 3ª ed. Trad. Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão.7 ed. Trad. Ligia M. Ponde Vassallo. Petrópolis: Vozes, 1987.
TOMACHEVSKI, Boris. Gramática da Narrativa. 1925.

*Síntese de artigo elaborado na Disciplina de Narrativa. Mestrado em Letras ? Crítica Literária. Universidade de Passo Fundo. UPF, 2008.