A desigualdade de gênero como temática dos textos de literatura brasileira e a composição dramática dos personagens: o modelo, o estereótipo e o preconceito

Helenice Schiavon Perez Ortigosa                                                                                       2013

 

Muito embora seja incontestável o viés moral das narrativas aqui citadas para os temas a que se propõe defender, e a notável intenção de despertar as mentes leitoras para uma cultura de igualdade de gênero através da literatura, é da análise das condutas de suas personagens  que surge o paradoxo; que ora refuta o estereótipo feminino, ora o valida - encorajando o preconceito. 

Ao analisar a composição dramática de alguns textos contemporâneos da literatura brasileira - em seleção aleatória - através da realização do inventário dos perfis psicológicos das personagens traçadas por seus autores, percebe-se que da leitura destes textos  podem resultar duas forças: uma que contribui com uma concepção não discriminatória da mulher , livre dos estereótipos e dos preconceitos e, portanto mais igualitária e justa no que se refere ao papel, à vontade e ao status da mulher na sociedade; e outra que, ao contrário, acaba por sugerir o  cruel viés da desigualdade de gênero.

Para a análise foram utilizados quatro textos, todos de autores consagrados da literatura contemporânea brasileira: dois contos (Venha ver o pôr do sol, de Lygia Fagundes Telles(1) e  A Nova Califórnia, de Lima Barreto(2);  uma crônica (Canção das Mulheres, Lya Luft (3) e uma poesia (A mulher e o signo que a representa (4)  , de Vinícius de Moraes) . Servem de base para  a análise,  a  área temática "Educação para a Igualdade e Cidadania",  proposta pelo Observatório Brasil da Igualdade de Gênero(5), que em suas orientações postula "transformar as percepções e sensibilidades dos/as profissionais da educação básica" , favorecendo a atuação "para a mudança de padrões de comportamento e de valores de crianças, jovens e adultos(as) (5).

A escolha dos títulos dos livros se dá a partir de três critérios: preferência por narrativas curtas - o que justifica a escolha dos contos, das crônicas e das poesias; narrativas com personagens femininas – uma delas é a própria narradora da história; e textos com outro conteúdo temático central que não aquele da desigualdade de gênero.

Não participaram deste estudo, propositadamente, as narrativas mais longas - como é o caso dos clássicos da literatura brasileira,  e os textos de narrativa realista jovem: as primeiras porque a própria estruturação narrativa facilitaria a composição de personagens mais densos, complexos,  com perfis mais claros, determinados e fortes; através dos quais os autores poderiam se aprofundar na análise de qualquer temática  emergente.  Os segundos tipos de narrativas (os textos de narrativa realista jovem) não participam do inventário porque, contrariamente,  por serem pouco prolixas não exploram amiúde as ações e vontades das personagens: são mais superficiais e é ao narrador que cabe a tarefa de atar as intenções e mensagens pretendidas; o que pode transformar o paradoxo em uma questão ainda maior. Um sem número de títulos poderiam ser apontados aqui para comprovar esta questão (e, quiçá, esta crítica); entretanto, não o serão porque esse não é, evidentemente, o objetivo deste trabalho e somente servem para justificar, de alguma forma, a escolha dos gêneros(6) e textos apontados para o inventário, para a análise e para a comprovação da tese.

 

Há de se considerar também que essas tipologias de textos - o conto, a crônica e a poesia, tecem de maneira singular a trama narrativa, uma vez que, entre outros aspectos,  a padronização do gênero exige que os autores  componham  uma "fotografia" do personagem.  Além disso,  é também pela força intrínseca da estrutura desses gêneros textuais  que se exalta a possibilidade de fruição leitora (7),  responsável pela  regulação da tensão entre "fidelidade" e "liberdade interpretativa"; característica das obras abertas(8),  e da qual pode surgir o paradoxo do discurso das personagens femininas.

A composição dramática dos personagens dos textos do inventário revela a explícita intenção dos autores em apurar a consciência  crítica dos jovens leitores sobre várias questões -  muitas delas sobre ética - cumprindo  a função de operar, através da literatura, como norteadores de concepções capazes de promover uma sociedade mais igualitária e mais justa. Entretanto, há de se ressaltar que,  nos textos escolhidos, a questão da desigualdade de gênero não é central.

Talvez por este motivo se justifique o paradoxo. O fato é que as forças dramáticas das personagens em análise correm para lados opostos; o que sugere que para todo o esforço de se impugnar  quaisquer tipos de estereótipos ou preconceitos (alguns deles em relação à mulher), há uma força contrária que os corrobora; mesmo que inconscientemente. Em outras palavras, muito embora os autores se empenhem em construir personagens com força dramática suficiente para vetar as desigualdades - inclusive as de gênero (já que esta não é a questão central), muitas vezes seus textos contribuem, paradoxalmente,  para a validação e o fortalecimento das algumas formas  de desigualdade, de algum "estigma"; propondo um parâmetro suscetível a  transformar o modelo em  estereótipo e, consequentemente,  em preconceito. Tudo isso viabilizado pela abertura interpretativa a que se submete o leitor. 

Há de se ressaltar  que o paradoxo pode ser melhor observado em textos com "narrador (no masculino) e observador"; o que sugere que os discursos proferidos por  "narradoras -  personagens" (no feminino) impactam menos como "estereótipo" ou "preconceito" quando é a própria narradora (no feminino) quem aborda os temas problematizados ao seu gênero. Disto poderia advir uma justificativa "não racista, não sexista, não-lesbofóbica, não-homofóbica(6)" das referidas  personagens . Assim, a seleção dos textos - embora aleatória - pode sugerir que as narrativas preocupadas em explicitar a problemática da desigualdade feminina sejam mais persuasivas quando realizadas por narradoras; ou ainda, que discursos em que estejam presentes questões de desigualdade de gênero (intencionais ou não), quando  proferidos por narradoras (e não narradores) não carregam o estigma do estereótipo. É isso, exatamente, o que ocorre no  texto selecionado de Lya Luft.  O mesmo parece acontecer com o texto de Lygia Fagundes Teles: neste último,  a história é narrada em terceira pessoa por uma narradora feminina, e retrata as fraquezas do ser humano, materializadas por dois personagens - um feminino e outro masculino. A narradora confere à personagem feminina o caráter de vítima, em contraposição ao de vilão (personagem masculino). Como se verá adiante, isto - aliado ao fato de que a narradora é uma mulher -  parece contribuir para atenuar  traços negativos do perfil psicológico da personagem. De fato, em estudo recente, verificou-se uma tendência de colocar a mulher como narradora de narrativas que tratam de problemáticas femininas; entre elas a da desigualdade de gênero (9).

 

Literatura moralizante

As narrativas universais

Chapeuzinho Vermelho, de Perrault, Rapunzel e João e Maria, dos Irmãos Grimm, Alice no País das Maravilhas, de Carrol e Pinocchio de, Collodi - são os clássicos exemplos da literatura humanista universal do século XIX, influenciados  pelo  processo socializador - moral e psicológico(10).

Como tais, têm norteado as vidas de inúmeras gerações e se constituem numa experiência essencial para a formação social da criança; em um movimento que se pode caracterizar como "resultante do movimento dialético: catarse mental ancorada na ação dramática e ação dramática ancorada na catarse mental"(11).

"Através de histórias fantásticas, as crianças são capazes de se identificar com os personagens, expressar seus sentimentos, angústias e necessidades infantis e resolver conflitos psicológicos de acordo com a fase de desenvolvimento que estão passando"(12).

Com outras temáticas no cerne de suas histórias, que não exclusivamente a temática da (des)igualdade de gênero, os textos anteriormente citados  cumprem a sua função . Entretanto, a despeito de suas personagens femininas carregarem valores morais importantes - assim como as demais personagens - certamente sofrem com o paradoxo gerado pela interpretação leitora, que tanto pode refutar quanto valorizar a desigualdade de gênero. Isto é passível de acontecer principalmente levando-se em conta que a intencionalidade destes textos está originalmente voltada para o desenvolvimento de outros valores, e não especificamente o da igualdade entre gêneros. (12).

A literatura nacional para o público infantil

"As estórias infantis possuem significativa relevância na compreensão das diferenças entre a interpretação de papéis femininos e masculinos e na construção de valores humanos relacionados a cada gênero. No que diz respeito aos valores, estes se constituem como constructos sobre conceitos que expressam comportamentos desejáveis, sendo estes capazes de orientar escolhas e atitudes do indivíduo"(12).

De fato, a literatura brasileira infantil também seguiu esta vertente socializadora e é com Monteiro Lobato,  no final do século XIX,  que surgem as narrativas híbridas. É o caso do Sítio do Pica-Pau Amarelo, que alia fantasia e realidade; mas que também se caracteriza, de certa maneira, como uma literatura socializadora que destaca, entre outras,  as virtudes da figura feminina. Narizinho  -  a jovem inteligente,  bem criada e respeitosa, Dona Benta - a avó dedicada e símbolo da força da família, e Tia Nastácia - a cozinheira - negra, e cujos dotes culinários e sabedoria popular  impressionam a todos. Mas é com Emília - a personagem  ficcional feminina - que o paradoxo da literatura infantil nacional ameaça se estabelecer: a boneca de pano, desobediente, curiosa e  individualista rompe com algumas das expectativas sobre o padrão feminino. Mas, por se tratar de uma personagem ficcional - uma boneca de pano - Emília não assume sua representatividade de personagem feminina e, portanto, é capaz de não violar o modelo de virtudes femininas imputadas pelo  padrão de gênero e, assim, não consolidar qualquer tipo de estereótipo.

As narrativas para jovens

Instituições como a família, a igreja em todas as suas crenças e, modernamente, os meios de comunicação,  em suas medidas, auxiliam no processo de socialização da vida das crianças. Mas talvez seja a escola uma das instituições mais relevantes a socializar padrões. É na escola, e, sobretudo através da leitura, que as crianças e jovens mantêm contato com as diferentes realidades, com as diferentes pessoas e seus diferentes pensares. E então, é através da leitura que o papel moral da mulher tende a se revelar - definitiva e intencionalmente.

Afortunadamente, longe está o tempo em que os textos - sobretudo os dos livros didáticos - inculcavam interesses de classes e ideologias, com vistas "a mascarar o mundo real, contraditório e injusto" (13)  . Hoje, o papel reservado às mulheres nos textos dos livros didáticos e paradidáticos, especialmente aqueles voltados ao público infantil e juvenil, é bem mais complexo; e bem mais coerente com as exigências da contemporaneidade.

Assim, sobretudo após os Parâmetros Curriculares Nacionais, os PCNs (14), os textos dos livros didáticos e paradidáticos iniciaram um processo moralizador intenso, mas primando por se afastar daquelas ideologias tão reprováveis. As narrativas para jovens (e também as destinadas às crianças) passaram a ser norteadas pelos temas transversais - ética, pluralidade cultural, meio-ambiente, saúde, orientação sexual, trabalho e consumo.  No que se refere às questões generalizadas sobre a desigualdade de gênero - classe, sexo ou raça - alguns autores têm demonstrado especial interesse. Uma pesquisa mais aprofundada seria necessária para verificar quais,  de fato, são as temáticas  de desigualdade mais exploradas pelos livros didáticos; mas certamente a questão da desigualdade racial parece merecer grande destaque.  Opostamente, a questão da desigualdade das mulheres na sociedade parece não ocupar a centralidade das temáticas.

A não centralidade do tema da desigualdade de gênero nas narrativas é, sem dúvida, o principal motivo para o insurgimento do paradoxo a que este trabalho tem se referido deste o início. Não raramente, apesar dos esforços de explorar o viés moral nas narrativas, a preocupação em negar uma visão estereotipada da mulher e do homem é apenas superficial; ou se não o for, certamente é insuficiente.

É o caso, por exemplo, da narrativa realista jovem "A face Oculta" (15) de Maria Tereza Maldonado. A história discute o bullying e o cyberbullying vivido e praticado por adolescentes  e o legado a que são cruelmente submetidos: humilhação, hostilidade, difamação, covardia e omissão.  O tema é  complexo, e é possível afirmar que ele não é abordado superficialmente pela autora, que o analisa de todos os ângulos;  mas é bastante previsível: a mensagem final é de superação, justiça, arrependimento e resignação. Além disso, não atenta para as mensagens menores  - pouco exploradas -  como a questão do uso do tempo das mulheres (jornadas duplas de trabalho),  mães que assumem sozinhas o papel de gestoras educacionais da família (após separação ou divórcio) e tantas outras questões relacionadas à desigualdade de gênero. Evidentemente, o tratamento  destas últimas questões não constitui em centralidade temática na citada narrativa, e certamente podem passar despercebidas pela grande maioria dos leitores. Mas não há garantia alguma de que a mensagem não tenha sido passada subliminarmente. Em algumas narrativas, porém,  as personagens vivem situações tão complexas que o perfil a elas traçado contempla - mesmo que secundariamente - um estereótipo. Não se pode esquecer de observar que trata-se de uma narrativa curta, em que as complexidades, as idiossincrasias e contrastes das almas humanas não são exploradas.

É o que parece suceder com os textos relacionados no inventário de livros selecionado para este trabalho.

 

Conhecendo o paradoxo

"Venha ver o pôr do sol"(1)  :

O conto de Lygia Fagundes Telles, "Venha ver o pôr do sol" (1984) tem narrador onisciente. Raquel é uma mulher casada que tivera, como sugere o texto, uma relação extraconjugal com Ricardo, que a convida para um último encontro, clandestino. Raquel parece insegura com a proposta, mas, mesmo assim, aventura-se - com a condição de que seja a última vez. Ricardo a engana e a induz a ir até um cemitério abandonado - de onde poderia ver o mais belo por do sol. Lá, Ricardo a trancafia em um antigo mausoléu; de onde possivelmente ela nunca mais poderá sair; consolidando sua cruel vingança.

O drama narrado pela autora neste conto  é incontestavelmente sublime: " uma combinação de suspense e morbidez conduz o conto a um final marcante e trágico"(16).

Sensações mistas estão presentes, como a inocência, a mesquinhez, a ironia, o amor, o ódio,a ingenuidade,  a crueldade e a vingança. No texto, a débil constituição da alma humana - masculina e feminina - é nele traçada com maestria e o exercício de interpretação é rico e único: Lygia, ao contrário de muitos escritores que ora se debruçam a escrever para os jovens leitores, opta por não elaborar personagens previsíveis. Ao contrário, suas personagens são contraditórias, como também o são as almas humanas.

O discurso presente neste conto da autora é denso, a mensagem  é  tensa e a discussão moral tão profunda quanto infindável. Mas, no que se refere à temática da desigualdade de gênero, chega a ser cruel como a autora desenha a personagem Raquel:

Bela, misteriosa: “uma coisa de linda"; com olhos verdes e "oblíquos; tais quais os de  Capitu, em Dom Casmurro (17  ) .

Volúvel, fútil, na medida em que Ricardo sugere que se enamorou dele à época em que lia "A Dama das Camélias"( 18 ), obra notadamente romântica:  “...você tinha lido A Dama das Camélias e ficou assim toda frágil, toda sentimental. E agora? Que romance está lendo agora?”.

Interesseira, superficial, fria: (ao falar do atual companheiro para Ricardo): “Riquíssimo. Vai me levar agora numa viagem fabulosa até o Oriente. Já ouviu falar no Oriente? Vamos até o Oriente, meu caro...” .

Preconceituosa, classista: (referindo-se ao cemitério) - "É imenso, hein? Nunca vi cemitério mais deprimente, miserável. É deprimente - exclamou ela atirando a ponta do cigarro na direção de um anjinho de cabeça decepada"... "Não gosto de cemitério, ainda mais de cemitério de pobre..."

Ingênua: (deixando-se enganar por Ricardo, cuja intenção era trancafiá-la no mausoléu) – “Mas estão tão desbotados, mal se vê que é uma moça…  -  Antes da chama se apagar, aproximou-a da inscrição feita na pedra. Leu em voz alta, lentamente.  -  Maria Emília, nascida em vinte de maio de mil oitocentos e falecida… -  Deixou cair o palito e ficou um instante imóvel – Mas esta não podia ser sua namorada, morreu há mais de cem anos! Seu menti…”

Não raramente as “desqualificações” da personagem feminina são realizadas pelo personagem masculino, Ricardo. Algumas vezes é Ricardo quem ajuda a desenhar a personagem Raquel:

 

Presunçosa, malandra: "você está que é uma coisa de linda. E fuma agora uns cigarrinhos pilantras, azul e dourado..."

Preguiçosa,  insensível: " a boa vida te deixou preguiçosa! Que feio!"

Seria presunção afirmar que Lygia Fagundes Teles não pensou em todas as fragilidades da personagem Raquel no conto “Venha ver o pôr do sol”. Certamente a autora a delineou cuidadosamente para que esta assim se assemelhasse; não porque pretendesse estigmatizar a imagem feminina, mas porque ambas as personagens deste conto – Raquel e Ricardo – independentemente do gênero a que pertencem, fazem parte da raça humana e representam suas mazelas.

Apesar disto, não se pode ficar impassível à cruel imagem desenhada para a personagem feminina; aliviada apenas pelo fato de que, supostamente, a narradora dos eventos é uma mulher. Isto lhe concede uma espécie de permissão, de "licença" para, de alguma forma, validar a desigualdade existente entre homens e mulheres. Narradas por um homem, esta descrição poderia ser encarada definitivamente como muito mais preconceituosa.

"A Nova Califórnia"(2)  ,  Lima Barreto: 

O conto “A nova Califórnia” ( 2), de Lima Barreto (1910), é uma sátira que tem como tema central a ganância do ser humano. Conta a história de um povoado que recebe um desconhecido e que, por mera desinformação, desinteresse ou alienação não questiona sua origem, nem tampouco suas pretensões. Os habitantes da cidade de Tubiacanga deixam-se levar pelo tom misterioso do novo personagem – que se diz farmacêutico. Em dado momento, pressionado pela população acaba revelando suas pretensões: era capaz de transformar ossos humanos em ouro. Movidos pela cobiça, os habitantes agem como seres inumanos, saqueando o cemitério da cidade, ao mesmo tempo em que o farmacêutico foge sorrateiramente.

Lima Barreto constrói este conto – assim como Lygia Fagundes Teles – a partir da fragilidade moral dos seres humanos, cobiçosos, que iniciam uma “corrida do ouro” em Tubiacanga, classificada como a Nova Califórnia; numa clara referência à corrida do ouro nos Estados Unidos no final do século XIX.

Mas é justamente uma personagem feminina -  Cora - quem mais surpreende com suas “desqualificações” morais:

Orgulhosa, desdenhosa: “ a própria filha do engenheiro residente da estrada de ferro, que vivia desdenhando aquele lugarejo...

Egocêntrica e fútil:  “sem notar sequer os suspiros dos apaixonados locais - sempre esperando que o expresso trouxesse um príncipe a desposá-la" -, a linda e desdenhosa Cora não pôde deixar de compartilhar da indignação e do horror que tal ato provocara em todos do lugarejo.

Alheia, superficial, classista: “Que tinha ela com o túmulo de antigos escravos e humildes roceiros? Em que podia interessar aos seus lindos olhos pardos o destino de tão humildes ossos? Porventura o furto deles perturbaria o seu sonho de fazer radiar a beleza de sua boca, dos seus olhos e do seu busto nas calçadas do Rio"?

Repugnantemente contraditória, pouco confiável: Qualificada como deslumbrante e bela, é ela quem “com seus dedos de alabastro, revolvia a sânie das sepulturas, arrancava as carnes, ainda podres agarradas tenazmente aos ossos e deles enchia o seu regaço até ali inútil. Era o dote que colhia e as suas narinas, que se abriam em asas rosadas e quase transparentes, não sentiam o fétido dos tecidos apodrecidos em lama fedorenta...”

Observe-se que aqui estas desqualificações são ainda mais fortes, posto que quem as profere é um narrador. E, apesar da força moralizante do conto – que ressalta a mesquinhez das almas humanas; sejam elas femininas ou masculinas – fica presente também o discurso da fragilidade de caráter de Cora, que naquele contexto representa a mulher jovem e bem criada que, paradoxalmente, transforma-se em monstro quando, obstinada a fazer fortuna, revolve as carnes dos mausoléus e recolhe, como um animal," as carnes fétidas em seu tão doce regaço".

As descrições satíricas que envolvem a personagem são patéticas e corroboram para o paradoxo a que este trabalho está se referindo desde seu início: a imagem da feminilidade se vê destruída e até aviltada frente à imagem masculina (que compõe a maioria no conto), no que diz respeito à capacidade de ser vil e brutal. Tal narrativa pode fazer crescer, portanto, não só a crítica em relação ao comportamento reles do ser humano, mas também o entendimento de que a beleza e a delicadeza feminina apenas escondem um ser ainda mais vil e incoerente.

O discurso desigual entre homens e mulheres fica aqui instigado pelo paradoxo no momento da interpretação leitora.

"Canções das Mulheres"(3) , Lya Luft.

Esta crônica de Lya Luft ( 2004) também aponta para um paradoxo; embora licenciada pela narradora feminina que pode atenuá-lo.

Senão,vejamos como a autora percebe a figura feminina:

Como um ser temerário, frágil, inseguro: "Que o outro saiba quando estou com medo, e me tome nos braços sem fazer perguntas demais"... " Que o outro perceba minha fragilidade e não ria de mim, nem se aproveite disso"... "Que se eventualmente perco a paciência, perco a graça e perco a compostura, o outro ainda assim me ache linda e me admire". 

Como um ser sempre disponível: "Que o outro não me considere sempre disponível, sempre necessariamente compreensiva, mas me aceite quando não estou podendo ser nada disso". 

Novamente aqui a narradora feminina se vê, involuntariamente,  refém do paradoxo: certamente Lya Luft pretende exaltar as qualidades femininas, sua força, suas capacidades. Mas, paradoxalmente, pode estar gerando interpretações contrárias; num discurso desigual entre homens e mulheres, que mais corrobora com o estereótipo do que o refuta – como seria de se esperar num discurso de igualdade.

"A mulher e o signo que a representa (4)  , Vinícius de Moraes (1980): 

“A existência de gêneros é a manifestação de uma desigual distribuição de responsabilidade na produção social da existência. A sociedade estabelece uma distribuição de responsabilidades que são alheias às vontades das pessoas, sendo que os critérios desta distribuição são sexistas, classistas e racistas. Do lugar que é atribuído socialmente a cada um, dependerá a forma como se terá acesso à própria sobrevivência como sexo, classe e raça, sendo que esta relação com a realidade comporta uma visão particular da mesma"(19).

Vinícius de Morais tem uma visão bastante clara do lugar social da mulher e é um mestre incontestável para falar de mulheres. São famosos seus poemas e suas músicas exaltando sobretudo a beleza da mulher brasileira.

Neste sentido, é quase que uma blasfêmia afirmar que é possível se depreender um discurso sexista de desigualdade de gênero em suas poesias. Mas, analisadas pela possibilidade do paradoxo da interpretação de leitura; autorizado pela fruição da obra  (8) , seus poemas podem revelar um pouco mais do que o culto à beleza da mulher.

Observe-se, por exemplo, o poema  “A mulher e o signo que a representa” (4) : nele, o poeta se põe a falar sobre todas as mulheres a partir de seus signos. Ele as caracteriza a partir das características dos signos do zodíaco e revela muitas idiossincrasias sobre o caráter das mulheres. Sob este ponto de vista, Vinícius explora o estereótipo e pode fomentar o paradoxo.

Senão, vejamos algumas (des)qualificações que ele atribui à mulher :

                                                              

Dominadora (e volúvel):

ARIES (de 21 de Março a 20 de Abril) -  “Branca, preta ou amarela, a ariana zela. Tem caráter dominador. Mas pode ser convencida...”

Egoísta:

TOURO (de 21 de Abril a 20 de Maio) – “O que é que brilha sem ser ouro? - A mulher de touro! É a companheira perfeita,  quando levanta ou quando deita. Mas é mulher exclusivista ... Se Não tem tudo faz a pista.

Volúvel:

GEMEOS (de 21 de Maio a 20 de Junho)  - “A mulher de gêmeos não sabe o que quer. Mas tirante isso, é uma boa mulher”.

Temperamental e individualista:

CANCER (de 21 de Junho a 21 de Julho)  - “Você nunca avance em uma mulher de câncer. Seu planeta é a lua, e a lua, é sabido, Só vive na sua”.

Liberal e ciumenta:

LEÃO (de 22 de Julho a 22 de Agosto) – “Cuidado com a mulher de leão! São ciumentas e antagônicas. Solares e dominicais. Ígneas, áureas e sardônicas... E muito, muito liberais”.

 

Submissa :

VIRGEM (de 23 de Agosto a 22 de Setembro)  - “Sexo de consumo, pães-de-minuto... Nada disso lhe há de faltar!  O condomínio é absoluto, a virgem é mulher do lar”.

Interesseira, dissimulada:

LIBRA (de 23 de Setembro a 22 de Outubro) – “A mulher de libra, não tem muita fibra. Mas vibra. Quer ver uma libriana contente? -lhe um presente”.

Tirana, pouco confiável, sedutora:

ESCORPIAO (de 23 de Outubro a 21 de Novembro) -  “Mulher de escorpião? Comigo Não!”...“Cria o chamado conflito de personalidades. É mãe tirana. Mulher tirana. Irmã tirana. Filha tirana. Neta tirana. Tirana. Tirana”.

 

Violenta:

SAGITÁRIO (de 22 de Novembro a 21 de Dezembro) – “ As mulheres sagitarianas pode(m) ser muito violentas. Aí, o homem que se cuide... Também, quem gosta de censura!”

Ciumenta:

CAPRICORNIO (de 22 de Dezembro a 20 de Janeiro) - A capricorniana é... tão ciumenta, que até o ciúmes ela inventa”.

Meiga, passiva (ou nem tanto):

AQUÁRIO (de 21 de Janeiro a 19 de Fevereiro) – “A aquariana é a mulher macho sim senhor.  Porém não são possessivas. Nem procuram dominar. Ou são meigas e passivas. Ou botam para quebrar”.

Dissimulada, omissa, orgulhosa:

PEIXES (de 20 de Fevereiro a 20 de Março)  - “Mulher de Peixe... peixe é: em águas paradas não dá pé, porque desliza como a enguia, sempre que entra numa fria”... “Seu Id: aparentar juízo”. Seu Ego: a omissão, o orgulho”.

 

Por uma Cultura de Igualdades

Caso se admita que literatura,  de fato, seja tudo aquilo que  é dito (ou escrito)  com tamanha precisão e beleza;  e de tal forma que ninguém mais seja  capaz de dizer (ou escrever, ou pensar) melhor,  então,  fazer literatura é um ato de extrema responsabilidade. Realmente, é a literatura o modelo para a vida , o paradigma para reflexões acerca do ser, o meio através do qual é possível  que se  afinem as almas e se desenvolvam as sensibilidades para questões essenciais à toda e qualquer civilização: os valores, a ética e a cidadania.    Isto posto, discutir  se as mazelas da desigualdade de gênero estão verdadeiramente representadas  (e  suficientemente combatidas)  nos variados textos da literatura nacional  passa a ser a questão mais essencial. Consequentemente, também passa a ser essencial a contribuição que este trabalho possa oferecer.

Resultado da análise das personagens presentes em  quatro textos de autores importantes da literatura nacional, este trabalho contribui no sentido de alertar para a possibilidade de um discurso (muitas vezes oculto) - e certamente (não) intencional - que pode tanto encorajar quanto desestimular a desigualdade de gênero; ações supostamente constituídas a partir da liberdade interpretativa do leitor.

Evidentemente, a coletânea selecionada compõe um trabalho que  se apresenta incipiente: muitos outros autores poderiam ter sido citados, outros critérios poderiam ter sido apontados e diversos outros textos poderiam servir de exemplo, discussão e análise. Entretanto, a maior contribuição que este estudo pode  trazer  é a de exercitar a postura crítica que se deve assumir diante de tão importante instrumento de comunicação - e transformação - social que é, incontestavelmente,  a literatura.

O fato é que, toda a ficcionalidade e toda a pluralidade de significação presentes na boa literatura, constituem-se em poderes emergentes do texto, capazes de desenvolver as de ampliar e até rever os valores dos leitores. É assim que a "boa literatura" age quase de forma subversiva nas consciências de jovens e crianças: pelo poder. Ao bom educador, ou seja, àquele que reconhece a complexidade de suas atribuições, cabe a tarefa de alertar para o viés moral implícito nas narrativas, algumas vezes certeiro, outras vezes ambíguo, outras vezes voraz, tantas vezes ingênuo. Cabe ao educador exaltar a Cultura das Igualdades; revertendo sempre todo e qualquer paradoxo.

Referências Bibliográficas

 

1. TELLES, LF. Venha ver o pôr do sol. São Paulo: Ática; 1988.

2. BARRETO, Lima. A Nova Califórnia - Contos. São Paulo: Brasiliense, 1979.

3. LUFT, Lya. Pensar é transgredir. São Paulo: Record, 2005.

4. MORAES, Vinícius de. A mulher e o signo. São Paulo: Rocco, 1980.

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6. MAGALHÃES, Lucilha de Oliveira . Introdução ao pensamento de Bakhtin. Rev. de História, Juiz de Fora, v. 13, n.1, p. 210-215, 2007. Disponível em: <http://www.ufjf.br/locus/files/2010/02/111.pdf>. Acessos em 7 set. 2013.

7. RANKE, Maria da Conceição de Jesus e MAGALHÃES, Hilda Gomes Dutra. Breves considerações sobre fruição literária na escola. Revista do Curso de Mestrado em Ensino de Língua e Literatura da UFT – nº 3 – 2011-2.

8. ECO, Umberto. Obra Aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, 2005.

9. O ESTADO DE SÃO PAULO. Pesquisa traça perfil de personagem da literatura brasileira. São Paulo: Agência Estado,  2007. Disponível em

<http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,pesquisa-traca-perfil-de-personagem-da-literatura-brasileira,7637,0.htm>. Acesso em 5 set. 2013.

               

10. SOUZA, Ana Beatriz Laurindo;  SILVA, Fabiane. FEITOSA e LYDIANE Costa. Influência das estórias infantis na formação dos papéis de gênero. 2002. Disponível em: < http://www.extpdf.com/carochinha-pdf.html>. Acessos em 14 set. 2013.

11. ALMEIDA, Wilson Castello de. Além da catarse, além da integração, a catarse de integração. Beyond catharsis, beyond integration, the catharsis of inte. Rev. bras. psicodrama,  São Paulo,  v. 18,  n. 2,   2010 .   Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-53932010000200005&lng=pt&nrm=iso>. Acessos em  14  set.  2013.

(12) STUDZINSKI, Natasha Gouveia e  HOLZSCHUH, Mariah Schmidt. Contos de Fada e o Desenvolvimento Infantil.  Publicado em: 01 de Janeiro de 2012. Disponível em <http://artigos.psicologado.com/psicologia-geral/desenvolvimento-humano/contos-de-fada-e-o-desenvolvimento-infantil>. Acessos em 21 ago. 2013.

 

 (13) LEITE, Rose Mary. A ideologia contida nos livros didáticos. Artigo científico apresentado ao Programa de Pós Graduação em Letras/Mestrado da Universidade Católica de

Pelotas. Disponível em <*http://www.celsul.org.br/Encontros/07/dir2/14.pdf>. Acesso em 10 set. 2013.

 

(14) PCN: BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais : terceiro e quarto ciclos: apresentação dos temas transversais / Secretaria de Educação Fundamental. – Brasília : MEC/SEF, 1998. 436 p. Disponível em < http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/ttransversais.pdf>. Acesso em 30 Ago.2013.

(15) MALDONADO Maria Tereza. A face oculta.
Saraiva Editora. 2009.

(16) STRUTZ, Janete. A identidade trágica no conto “venha ver o por do sol” de Lygia Fagundes Telles, comparada ao mito de Narciso.  Publicado em 10 de janeiro de 2011. Disponível em < http://www.webartigos.com/artigos/a-identidade-tragica-no-conto-venha-ver-o-por-do-sol-de-lygia-fagundes-telles-comparada-ao-mito-de-narciso/56602/#ixzz2Zu2JhMpH>. Acesso em 2 de setembro de 2013.

(17) ASSIS, Machado de. Dom Casmurro in: Obras Completas de Machado de Assis, vol. I, Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1984. Disponível em <http://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?action=download&id=6118> Acesso em 15 de setembro de 2013.

(18) DUMAS FILHO, Alexandre. A dama das camélias. São Paulo: Brasiliense, 1965.

Disponível em http://www.bibvirt.futuro.usp.br. Acesso em 20 de setembro de 2013.

(19) CARLOTO, Cássia Maria. O conceito de gênero e sua importância para a análise das relações sociais. Serviço Social em Revista. Departamento de Serviço Social da Universidade Estadual de Londrina. Volume 3, n. 2,  Jan/Jun 2001. Disponível em <http://www.uel.br/revistas/ssrevista/c_v3n2_genero.htm> . Acesso em 15 Ago. 2013.

A desigualdade de gênero como temática dos textos de literatura brasileira e a composição dramática dos personagens: o modelo, o estereótipo e o preconceito

Helenice Schiavon Perez Ortigosa                                                                                       2013

 

Muito embora seja incontestável o viés moral das narrativas aqui citadas para os temas a que se propõe defender, e a notável intenção de despertar as mentes leitoras para uma cultura de igualdade de gênero através da literatura, é da análise das condutas de suas personagens  que surge o paradoxo; que ora refuta o estereótipo feminino, ora o valida - encorajando o preconceito. 

Ao analisar a composição dramática de alguns textos contemporâneos da literatura brasileira - em seleção aleatória - através da realização do inventário dos perfis psicológicos das personagens traçadas por seus autores, percebe-se que da leitura destes textos  podem resultar duas forças: uma que contribui com uma concepção não discriminatória da mulher , livre dos estereótipos e dos preconceitos e, portanto mais igualitária e justa no que se refere ao papel, à vontade e ao status da mulher na sociedade; e outra que, ao contrário, acaba por sugerir o  cruel viés da desigualdade de gênero.

Para a análise foram utilizados quatro textos, todos de autores consagrados da literatura contemporânea brasileira: dois contos (Venha ver o pôr do sol, de Lygia Fagundes Telles(1) e  A Nova Califórnia, de Lima Barreto(2);  uma crônica (Canção das Mulheres, Lya Luft (3) e uma poesia (A mulher e o signo que a representa (4)  , de Vinícius de Moraes) . Servem de base para  a análise,  a  área temática "Educação para a Igualdade e Cidadania",  proposta pelo Observatório Brasil da Igualdade de Gênero(5), que em suas orientações postula "transformar as percepções e sensibilidades dos/as profissionais da educação básica" , favorecendo a atuação "para a mudança de padrões de comportamento e de valores de crianças, jovens e adultos(as) (5).

A escolha dos títulos dos livros se dá a partir de três critérios: preferência por narrativas curtas - o que justifica a escolha dos contos, das crônicas e das poesias; narrativas com personagens femininas – uma delas é a própria narradora da história; e textos com outro conteúdo temático central que não aquele da desigualdade de gênero.

Não participaram deste estudo, propositadamente, as narrativas mais longas - como é o caso dos clássicos da literatura brasileira,  e os textos de narrativa realista jovem: as primeiras porque a própria estruturação narrativa facilitaria a composição de personagens mais densos, complexos,  com perfis mais claros, determinados e fortes; através dos quais os autores poderiam se aprofundar na análise de qualquer temática  emergente.  Os segundos tipos de narrativas (os textos de narrativa realista jovem) não participam do inventário porque, contrariamente,  por serem pouco prolixas não exploram amiúde as ações e vontades das personagens: são mais superficiais e é ao narrador que cabe a tarefa de atar as intenções e mensagens pretendidas; o que pode transformar o paradoxo em uma questão ainda maior. Um sem número de títulos poderiam ser apontados aqui para comprovar esta questão (e, quiçá, esta crítica); entretanto, não o serão porque esse não é, evidentemente, o objetivo deste trabalho e somente servem para justificar, de alguma forma, a escolha dos gêneros(6) e textos apontados para o inventário, para a análise e para a comprovação da tese.

 

Há de se considerar também que essas tipologias de textos - o conto, a crônica e a poesia, tecem de maneira singular a trama narrativa, uma vez que, entre outros aspectos,  a padronização do gênero exige que os autores  componham  uma "fotografia" do personagem.  Além disso,  é também pela força intrínseca da estrutura desses gêneros textuais  que se exalta a possibilidade de fruição leitora (7),  responsável pela  regulação da tensão entre "fidelidade" e "liberdade interpretativa"; característica das obras abertas(8),  e da qual pode surgir o paradoxo do discurso das personagens femininas.

A composição dramática dos personagens dos textos do inventário revela a explícita intenção dos autores em apurar a consciência  crítica dos jovens leitores sobre várias questões -  muitas delas sobre ética - cumprindo  a função de operar, através da literatura, como norteadores de concepções capazes de promover uma sociedade mais igualitária e mais justa. Entretanto, há de se ressaltar que,  nos textos escolhidos, a questão da desigualdade de gênero não é central.

Talvez por este motivo se justifique o paradoxo. O fato é que as forças dramáticas das personagens em análise correm para lados opostos; o que sugere que para todo o esforço de se impugnar  quaisquer tipos de estereótipos ou preconceitos (alguns deles em relação à mulher), há uma força contrária que os corrobora; mesmo que inconscientemente. Em outras palavras, muito embora os autores se empenhem em construir personagens com força dramática suficiente para vetar as desigualdades - inclusive as de gênero (já que esta não é a questão central), muitas vezes seus textos contribuem, paradoxalmente,  para a validação e o fortalecimento das algumas formas  de desigualdade, de algum "estigma"; propondo um parâmetro suscetível a  transformar o modelo em  estereótipo e, consequentemente,  em preconceito. Tudo isso viabilizado pela abertura interpretativa a que se submete o leitor. 

Há de se ressaltar  que o paradoxo pode ser melhor observado em textos com "narrador (no masculino) e observador"; o que sugere que os discursos proferidos por  "narradoras -  personagens" (no feminino) impactam menos como "estereótipo" ou "preconceito" quando é a própria narradora (no feminino) quem aborda os temas problematizados ao seu gênero. Disto poderia advir uma justificativa "não racista, não sexista, não-lesbofóbica, não-homofóbica(6)" das referidas  personagens . Assim, a seleção dos textos - embora aleatória - pode sugerir que as narrativas preocupadas em explicitar a problemática da desigualdade feminina sejam mais persuasivas quando realizadas por narradoras; ou ainda, que discursos em que estejam presentes questões de desigualdade de gênero (intencionais ou não), quando  proferidos por narradoras (e não narradores) não carregam o estigma do estereótipo. É isso, exatamente, o que ocorre no  texto selecionado de Lya Luft.  O mesmo parece acontecer com o texto de Lygia Fagundes Teles: neste último,  a história é narrada em terceira pessoa por uma narradora feminina, e retrata as fraquezas do ser humano, materializadas por dois personagens - um feminino e outro masculino. A narradora confere à personagem feminina o caráter de vítima, em contraposição ao de vilão (personagem masculino). Como se verá adiante, isto - aliado ao fato de que a narradora é uma mulher -  parece contribuir para atenuar  traços negativos do perfil psicológico da personagem. De fato, em estudo recente, verificou-se uma tendência de colocar a mulher como narradora de narrativas que tratam de problemáticas femininas; entre elas a da desigualdade de gênero (9).

 

Literatura moralizante

As narrativas universais

Chapeuzinho Vermelho, de Perrault, Rapunzel e João e Maria, dos Irmãos Grimm, Alice no País das Maravilhas, de Carrol e Pinocchio de, Collodi - são os clássicos exemplos da literatura humanista universal do século XIX, influenciados  pelo  processo socializador - moral e psicológico(10).

Como tais, têm norteado as vidas de inúmeras gerações e se constituem numa experiência essencial para a formação social da criança; em um movimento que se pode caracterizar como "resultante do movimento dialético: catarse mental ancorada na ação dramática e ação dramática ancorada na catarse mental"(11).

"Através de histórias fantásticas, as crianças são capazes de se identificar com os personagens, expressar seus sentimentos, angústias e necessidades infantis e resolver conflitos psicológicos de acordo com a fase de desenvolvimento que estão passando"(12).

Com outras temáticas no cerne de suas histórias, que não exclusivamente a temática da (des)igualdade de gênero, os textos anteriormente citados  cumprem a sua função . Entretanto, a despeito de suas personagens femininas carregarem valores morais importantes - assim como as demais personagens - certamente sofrem com o paradoxo gerado pela interpretação leitora, que tanto pode refutar quanto valorizar a desigualdade de gênero. Isto é passível de acontecer principalmente levando-se em conta que a intencionalidade destes textos está originalmente voltada para o desenvolvimento de outros valores, e não especificamente o da igualdade entre gêneros. (12).

A literatura nacional para o público infantil

"As estórias infantis possuem significativa relevância na compreensão das diferenças entre a interpretação de papéis femininos e masculinos e na construção de valores humanos relacionados a cada gênero. No que diz respeito aos valores, estes se constituem como constructos sobre conceitos que expressam comportamentos desejáveis, sendo estes capazes de orientar escolhas e atitudes do indivíduo"(12).

De fato, a literatura brasileira infantil também seguiu esta vertente socializadora e é com Monteiro Lobato,  no final do século XIX,  que surgem as narrativas híbridas. É o caso do Sítio do Pica-Pau Amarelo, que alia fantasia e realidade; mas que também se caracteriza, de certa maneira, como uma literatura socializadora que destaca, entre outras,  as virtudes da figura feminina. Narizinho  -  a jovem inteligente,  bem criada e respeitosa, Dona Benta - a avó dedicada e símbolo da força da família, e Tia Nastácia - a cozinheira - negra, e cujos dotes culinários e sabedoria popular  impressionam a todos. Mas é com Emília - a personagem  ficcional feminina - que o paradoxo da literatura infantil nacional ameaça se estabelecer: a boneca de pano, desobediente, curiosa e  individualista rompe com algumas das expectativas sobre o padrão feminino. Mas, por se tratar de uma personagem ficcional - uma boneca de pano - Emília não assume sua representatividade de personagem feminina e, portanto, é capaz de não violar o modelo de virtudes femininas imputadas pelo  padrão de gênero e, assim, não consolidar qualquer tipo de estereótipo.

As narrativas para jovens

Instituições como a família, a igreja em todas as suas crenças e, modernamente, os meios de comunicação,  em suas medidas, auxiliam no processo de socialização da vida das crianças. Mas talvez seja a escola uma das instituições mais relevantes a socializar padrões. É na escola, e, sobretudo através da leitura, que as crianças e jovens mantêm contato com as diferentes realidades, com as diferentes pessoas e seus diferentes pensares. E então, é através da leitura que o papel moral da mulher tende a se revelar - definitiva e intencionalmente.

Afortunadamente, longe está o tempo em que os textos - sobretudo os dos livros didáticos - inculcavam interesses de classes e ideologias, com vistas "a mascarar o mundo real, contraditório e injusto" (13)  . Hoje, o papel reservado às mulheres nos textos dos livros didáticos e paradidáticos, especialmente aqueles voltados ao público infantil e juvenil, é bem mais complexo; e bem mais coerente com as exigências da contemporaneidade.

Assim, sobretudo após os Parâmetros Curriculares Nacionais, os PCNs (14), os textos dos livros didáticos e paradidáticos iniciaram um processo moralizador intenso, mas primando por se afastar daquelas ideologias tão reprováveis. As narrativas para jovens (e também as destinadas às crianças) passaram a ser norteadas pelos temas transversais - ética, pluralidade cultural, meio-ambiente, saúde, orientação sexual, trabalho e consumo.  No que se refere às questões generalizadas sobre a desigualdade de gênero - classe, sexo ou raça - alguns autores têm demonstrado especial interesse. Uma pesquisa mais aprofundada seria necessária para verificar quais,  de fato, são as temáticas  de desigualdade mais exploradas pelos livros didáticos; mas certamente a questão da desigualdade racial parece merecer grande destaque.  Opostamente, a questão da desigualdade das mulheres na sociedade parece não ocupar a centralidade das temáticas.

A não centralidade do tema da desigualdade de gênero nas narrativas é, sem dúvida, o principal motivo para o insurgimento do paradoxo a que este trabalho tem se referido deste o início. Não raramente, apesar dos esforços de explorar o viés moral nas narrativas, a preocupação em negar uma visão estereotipada da mulher e do homem é apenas superficial; ou se não o for, certamente é insuficiente.

É o caso, por exemplo, da narrativa realista jovem "A face Oculta" (15) de Maria Tereza Maldonado. A história discute o bullying e o cyberbullying vivido e praticado por adolescentes  e o legado a que são cruelmente submetidos: humilhação, hostilidade, difamação, covardia e omissão.  O tema é  complexo, e é possível afirmar que ele não é abordado superficialmente pela autora, que o analisa de todos os ângulos;  mas é bastante previsível: a mensagem final é de superação, justiça, arrependimento e resignação. Além disso, não atenta para as mensagens menores  - pouco exploradas -  como a questão do uso do tempo das mulheres (jornadas duplas de trabalho),  mães que assumem sozinhas o papel de gestoras educacionais da família (após separação ou divórcio) e tantas outras questões relacionadas à desigualdade de gênero. Evidentemente, o tratamento  destas últimas questões não constitui em centralidade temática na citada narrativa, e certamente podem passar despercebidas pela grande maioria dos leitores. Mas não há garantia alguma de que a mensagem não tenha sido passada subliminarmente. Em algumas narrativas, porém,  as personagens vivem situações tão complexas que o perfil a elas traçado contempla - mesmo que secundariamente - um estereótipo. Não se pode esquecer de observar que trata-se de uma narrativa curta, em que as complexidades, as idiossincrasias e contrastes das almas humanas não são exploradas.

É o que parece suceder com os textos relacionados no inventário de livros selecionado para este trabalho.

 

Conhecendo o paradoxo

"Venha ver o pôr do sol"(1)  :

O conto de Lygia Fagundes Telles, "Venha ver o pôr do sol" (1984) tem narrador onisciente. Raquel é uma mulher casada que tivera, como sugere o texto, uma relação extraconjugal com Ricardo, que a convida para um último encontro, clandestino. Raquel parece insegura com a proposta, mas, mesmo assim, aventura-se - com a condição de que seja a última vez. Ricardo a engana e a induz a ir até um cemitério abandonado - de onde poderia ver o mais belo por do sol. Lá, Ricardo a trancafia em um antigo mausoléu; de onde possivelmente ela nunca mais poderá sair; consolidando sua cruel vingança.

O drama narrado pela autora neste conto  é incontestavelmente sublime: " uma combinação de suspense e morbidez conduz o conto a um final marcante e trágico"(16).

Sensações mistas estão presentes, como a inocência, a mesquinhez, a ironia, o amor, o ódio,a ingenuidade,  a crueldade e a vingança. No texto, a débil constituição da alma humana - masculina e feminina - é nele traçada com maestria e o exercício de interpretação é rico e único: Lygia, ao contrário de muitos escritores que ora se debruçam a escrever para os jovens leitores, opta por não elaborar personagens previsíveis. Ao contrário, suas personagens são contraditórias, como também o são as almas humanas.

O discurso presente neste conto da autora é denso, a mensagem  é  tensa e a discussão moral tão profunda quanto infindável. Mas, no que se refere à temática da desigualdade de gênero, chega a ser cruel como a autora desenha a personagem Raquel:

Bela, misteriosa: “uma coisa de linda"; com olhos verdes e "oblíquos; tais quais os de  Capitu, em Dom Casmurro (17  ) .

Volúvel, fútil, na medida em que Ricardo sugere que se enamorou dele à época em que lia "A Dama das Camélias"( 18 ), obra notadamente romântica:  “...você tinha lido A Dama das Camélias e ficou assim toda frágil, toda sentimental. E agora? Que romance está lendo agora?”.

Interesseira, superficial, fria: (ao falar do atual companheiro para Ricardo): “Riquíssimo. Vai me levar agora numa viagem fabulosa até o Oriente. Já ouviu falar no Oriente? Vamos até o Oriente, meu caro...” .

Preconceituosa, classista: (referindo-se ao cemitério) - "É imenso, hein? Nunca vi cemitério mais deprimente, miserável. É deprimente - exclamou ela atirando a ponta do cigarro na direção de um anjinho de cabeça decepada"... "Não gosto de cemitério, ainda mais de cemitério de pobre..."

Ingênua: (deixando-se enganar por Ricardo, cuja intenção era trancafiá-la no mausoléu) – “Mas estão tão desbotados, mal se vê que é uma moça…  -  Antes da chama se apagar, aproximou-a da inscrição feita na pedra. Leu em voz alta, lentamente.  -  Maria Emília, nascida em vinte de maio de mil oitocentos e falecida… -  Deixou cair o palito e ficou um instante imóvel – Mas esta não podia ser sua namorada, morreu há mais de cem anos! Seu menti…”

Não raramente as “desqualificações” da personagem feminina são realizadas pelo personagem masculino, Ricardo. Algumas vezes é Ricardo quem ajuda a desenhar a personagem Raquel:

 

Presunçosa, malandra: "você está que é uma coisa de linda. E fuma agora uns cigarrinhos pilantras, azul e dourado..."

Preguiçosa,  insensível: " a boa vida te deixou preguiçosa! Que feio!"

Seria presunção afirmar que Lygia Fagundes Teles não pensou em todas as fragilidades da personagem Raquel no conto “Venha ver o pôr do sol”. Certamente a autora a delineou cuidadosamente para que esta assim se assemelhasse; não porque pretendesse estigmatizar a imagem feminina, mas porque ambas as personagens deste conto – Raquel e Ricardo – independentemente do gênero a que pertencem, fazem parte da raça humana e representam suas mazelas.

Apesar disto, não se pode ficar impassível à cruel imagem desenhada para a personagem feminina; aliviada apenas pelo fato de que, supostamente, a narradora dos eventos é uma mulher. Isto lhe concede uma espécie de permissão, de "licença" para, de alguma forma, validar a desigualdade existente entre homens e mulheres. Narradas por um homem, esta descrição poderia ser encarada definitivamente como muito mais preconceituosa.

"A Nova Califórnia"(2)  ,  Lima Barreto: 

O conto “A nova Califórnia” ( 2), de Lima Barreto (1910), é uma sátira que tem como tema central a ganância do ser humano. Conta a história de um povoado que recebe um desconhecido e que, por mera desinformação, desinteresse ou alienação não questiona sua origem, nem tampouco suas pretensões. Os habitantes da cidade de Tubiacanga deixam-se levar pelo tom misterioso do novo personagem – que se diz farmacêutico. Em dado momento, pressionado pela população acaba revelando suas pretensões: era capaz de transformar ossos humanos em ouro. Movidos pela cobiça, os habitantes agem como seres inumanos, saqueando o cemitério da cidade, ao mesmo tempo em que o farmacêutico foge sorrateiramente.

Lima Barreto constrói este conto – assim como Lygia Fagundes Teles – a partir da fragilidade moral dos seres humanos, cobiçosos, que iniciam uma “corrida do ouro” em Tubiacanga, classificada como a Nova Califórnia; numa clara referência à corrida do ouro nos Estados Unidos no final do século XIX.

Mas é justamente uma personagem feminina -  Cora - quem mais surpreende com suas “desqualificações” morais:

Orgulhosa, desdenhosa: “ a própria filha do engenheiro residente da estrada de ferro, que vivia desdenhando aquele lugarejo...

Egocêntrica e fútil:  “sem notar sequer os suspiros dos apaixonados locais - sempre esperando que o expresso trouxesse um príncipe a desposá-la" -, a linda e desdenhosa Cora não pôde deixar de compartilhar da indignação e do horror que tal ato provocara em todos do lugarejo.

Alheia, superficial, classista: “Que tinha ela com o túmulo de antigos escravos e humildes roceiros? Em que podia interessar aos seus lindos olhos pardos o destino de tão humildes ossos? Porventura o furto deles perturbaria o seu sonho de fazer radiar a beleza de sua boca, dos seus olhos e do seu busto nas calçadas do Rio"?

Repugnantemente contraditória, pouco confiável: Qualificada como deslumbrante e bela, é ela quem “com seus dedos de alabastro, revolvia a sânie das sepulturas, arrancava as carnes, ainda podres agarradas tenazmente aos ossos e deles enchia o seu regaço até ali inútil. Era o dote que colhia e as suas narinas, que se abriam em asas rosadas e quase transparentes, não sentiam o fétido dos tecidos apodrecidos em lama fedorenta...”

Observe-se que aqui estas desqualificações são ainda mais fortes, posto que quem as profere é um narrador. E, apesar da força moralizante do conto – que ressalta a mesquinhez das almas humanas; sejam elas femininas ou masculinas – fica presente também o discurso da fragilidade de caráter de Cora, que naquele contexto representa a mulher jovem e bem criada que, paradoxalmente, transforma-se em monstro quando, obstinada a fazer fortuna, revolve as carnes dos mausoléus e recolhe, como um animal," as carnes fétidas em seu tão doce regaço".

As descrições satíricas que envolvem a personagem são patéticas e corroboram para o paradoxo a que este trabalho está se referindo desde seu início: a imagem da feminilidade se vê destruída e até aviltada frente à imagem masculina (que compõe a maioria no conto), no que diz respeito à capacidade de ser vil e brutal. Tal narrativa pode fazer crescer, portanto, não só a crítica em relação ao comportamento reles do ser humano, mas também o entendimento de que a beleza e a delicadeza feminina apenas escondem um ser ainda mais vil e incoerente.

O discurso desigual entre homens e mulheres fica aqui instigado pelo paradoxo no momento da interpretação leitora.

"Canções das Mulheres"(3) , Lya Luft.

Esta crônica de Lya Luft ( 2004) também aponta para um paradoxo; embora licenciada pela narradora feminina que pode atenuá-lo.

Senão,vejamos como a autora percebe a figura feminina:

Como um ser temerário, frágil, inseguro: "Que o outro saiba quando estou com medo, e me tome nos braços sem fazer perguntas demais"... " Que o outro perceba minha fragilidade e não ria de mim, nem se aproveite disso"... "Que se eventualmente perco a paciência, perco a graça e perco a compostura, o outro ainda assim me ache linda e me admire". 

Como um ser sempre disponível: "Que o outro não me considere sempre disponível, sempre necessariamente compreensiva, mas me aceite quando não estou podendo ser nada disso". 

Novamente aqui a narradora feminina se vê, involuntariamente,  refém do paradoxo: certamente Lya Luft pretende exaltar as qualidades femininas, sua força, suas capacidades. Mas, paradoxalmente, pode estar gerando interpretações contrárias; num discurso desigual entre homens e mulheres, que mais corrobora com o estereótipo do que o refuta – como seria de se esperar num discurso de igualdade.

"A mulher e o signo que a representa (4)  , Vinícius de Moraes (1980): 

“A existência de gêneros é a manifestação de uma desigual distribuição de responsabilidade na produção social da existência. A sociedade estabelece uma distribuição de responsabilidades que são alheias às vontades das pessoas, sendo que os critérios desta distribuição são sexistas, classistas e racistas. Do lugar que é atribuído socialmente a cada um, dependerá a forma como se terá acesso à própria sobrevivência como sexo, classe e raça, sendo que esta relação com a realidade comporta uma visão particular da mesma"(19).

Vinícius de Morais tem uma visão bastante clara do lugar social da mulher e é um mestre incontestável para falar de mulheres. São famosos seus poemas e suas músicas exaltando sobretudo a beleza da mulher brasileira.

Neste sentido, é quase que uma blasfêmia afirmar que é possível se depreender um discurso sexista de desigualdade de gênero em suas poesias. Mas, analisadas pela possibilidade do paradoxo da interpretação de leitura; autorizado pela fruição da obra  (8) , seus poemas podem revelar um pouco mais do que o culto à beleza da mulher.

Observe-se, por exemplo, o poema  “A mulher e o signo que a representa” (4) : nele, o poeta se põe a falar sobre todas as mulheres a partir de seus signos. Ele as caracteriza a partir das características dos signos do zodíaco e revela muitas idiossincrasias sobre o caráter das mulheres. Sob este ponto de vista, Vinícius explora o estereótipo e pode fomentar o paradoxo.

Senão, vejamos algumas (des)qualificações que ele atribui à mulher :

                                                              

Dominadora (e volúvel):

ARIES (de 21 de Março a 20 de Abril) -  “Branca, preta ou amarela, a ariana zela. Tem caráter dominador. Mas pode ser convencida...”

Egoísta:

TOURO (de 21 de Abril a 20 de Maio) – “O que é que brilha sem ser ouro? - A mulher de touro! É a companheira perfeita,  quando levanta ou quando deita. Mas é mulher exclusivista ... Se Não tem tudo faz a pista.

Volúvel:

GEMEOS (de 21 de Maio a 20 de Junho)  - “A mulher de gêmeos não sabe o que quer. Mas tirante isso, é uma boa mulher”.

Temperamental e individualista:

CANCER (de 21 de Junho a 21 de Julho)  - “Você nunca avance em uma mulher de câncer. Seu planeta é a lua, e a lua, é sabido, Só vive na sua”.

Liberal e ciumenta:

LEÃO (de 22 de Julho a 22 de Agosto) – “Cuidado com a mulher de leão! São ciumentas e antagônicas. Solares e dominicais. Ígneas, áureas e sardônicas... E muito, muito liberais”.

 

Submissa :

VIRGEM (de 23 de Agosto a 22 de Setembro)  - “Sexo de consumo, pães-de-minuto... Nada disso lhe há de faltar!  O condomínio é absoluto, a virgem é mulher do lar”.

Interesseira, dissimulada:

LIBRA (de 23 de Setembro a 22 de Outubro) – “A mulher de libra, não tem muita fibra. Mas vibra. Quer ver uma libriana contente? -lhe um presente”.

Tirana, pouco confiável, sedutora:

ESCORPIAO (de 23 de Outubro a 21 de Novembro) -  “Mulher de escorpião? Comigo Não!”...“Cria o chamado conflito de personalidades. É mãe tirana. Mulher tirana. Irmã tirana. Filha tirana. Neta tirana. Tirana. Tirana”.

 

Violenta:

SAGITÁRIO (de 22 de Novembro a 21 de Dezembro) – “ As mulheres sagitarianas pode(m) ser muito violentas. Aí, o homem que se cuide... Também, quem gosta de censura!”

Ciumenta:

CAPRICORNIO (de 22 de Dezembro a 20 de Janeiro) - A capricorniana é... tão ciumenta, que até o ciúmes ela inventa”.

Meiga, passiva (ou nem tanto):

AQUÁRIO (de 21 de Janeiro a 19 de Fevereiro) – “A aquariana é a mulher macho sim senhor.  Porém não são possessivas. Nem procuram dominar. Ou são meigas e passivas. Ou botam para quebrar”.

Dissimulada, omissa, orgulhosa:

PEIXES (de 20 de Fevereiro a 20 de Março)  - “Mulher de Peixe... peixe é: em águas paradas não dá pé, porque desliza como a enguia, sempre que entra numa fria”... “Seu Id: aparentar juízo”. Seu Ego: a omissão, o orgulho”.

 

Por uma Cultura de Igualdades

Caso se admita que literatura,  de fato, seja tudo aquilo que  é dito (ou escrito)  com tamanha precisão e beleza;  e de tal forma que ninguém mais seja  capaz de dizer (ou escrever, ou pensar) melhor,  então,  fazer literatura é um ato de extrema responsabilidade. Realmente, é a literatura o modelo para a vida , o paradigma para reflexões acerca do ser, o meio através do qual é possível  que se  afinem as almas e se desenvolvam as sensibilidades para questões essenciais à toda e qualquer civilização: os valores, a ética e a cidadania.    Isto posto, discutir  se as mazelas da desigualdade de gênero estão verdadeiramente representadas  (e  suficientemente combatidas)  nos variados textos da literatura nacional  passa a ser a questão mais essencial. Consequentemente, também passa a ser essencial a contribuição que este trabalho possa oferecer.

Resultado da análise das personagens presentes em  quatro textos de autores importantes da literatura nacional, este trabalho contribui no sentido de alertar para a possibilidade de um discurso (muitas vezes oculto) - e certamente (não) intencional - que pode tanto encorajar quanto desestimular a desigualdade de gênero; ações supostamente constituídas a partir da liberdade interpretativa do leitor.

Evidentemente, a coletânea selecionada compõe um trabalho que  se apresenta incipiente: muitos outros autores poderiam ter sido citados, outros critérios poderiam ter sido apontados e diversos outros textos poderiam servir de exemplo, discussão e análise. Entretanto, a maior contribuição que este estudo pode  trazer  é a de exercitar a postura crítica que se deve assumir diante de tão importante instrumento de comunicação - e transformação - social que é, incontestavelmente,  a literatura.

O fato é que, toda a ficcionalidade e toda a pluralidade de significação presentes na boa literatura, constituem-se em poderes emergentes do texto, capazes de desenvolver as de ampliar e até rever os valores dos leitores. É assim que a "boa literatura" age quase de forma subversiva nas consciências de jovens e crianças: pelo poder. Ao bom educador, ou seja, àquele que reconhece a complexidade de suas atribuições, cabe a tarefa de alertar para o viés moral implícito nas narrativas, algumas vezes certeiro, outras vezes ambíguo, outras vezes voraz, tantas vezes ingênuo. Cabe ao educador exaltar a Cultura das Igualdades; revertendo sempre todo e qualquer paradoxo.

Referências Bibliográficas

 

1. TELLES, LF. Venha ver o pôr do sol. São Paulo: Ática; 1988.

2. BARRETO, Lima. A Nova Califórnia - Contos. São Paulo: Brasiliense, 1979.

3. LUFT, Lya. Pensar é transgredir. São Paulo: Record, 2005.

4. MORAES, Vinícius de. A mulher e o signo. São Paulo: Rocco, 1980.

5. EDUCAÇÃO PARA A IGUALDADE E A CIDADANIA. Disponível em <http://www.observatoriodegenero.gov.br/menu/areas-tematicas/educacao>. Acesso em 3 de set. 2013.

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8. ECO, Umberto. Obra Aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, 2005.

9. O ESTADO DE SÃO PAULO. Pesquisa traça perfil de personagem da literatura brasileira. São Paulo: Agência Estado,  2007. Disponível em

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10. SOUZA, Ana Beatriz Laurindo;  SILVA, Fabiane. FEITOSA e LYDIANE Costa. Influência das estórias infantis na formação dos papéis de gênero. 2002. Disponível em: < http://www.extpdf.com/carochinha-pdf.html>. Acessos em 14 set. 2013.

11. ALMEIDA, Wilson Castello de. Além da catarse, além da integração, a catarse de integração. Beyond catharsis, beyond integration, the catharsis of inte. Rev. bras. psicodrama,  São Paulo,  v. 18,  n. 2,   2010 .   Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-53932010000200005&lng=pt&nrm=iso>. Acessos em  14  set.  2013.

(12) STUDZINSKI, Natasha Gouveia e  HOLZSCHUH, Mariah Schmidt. Contos de Fada e o Desenvolvimento Infantil.  Publicado em: 01 de Janeiro de 2012. Disponível em <http://artigos.psicologado.com/psicologia-geral/desenvolvimento-humano/contos-de-fada-e-o-desenvolvimento-infantil>. Acessos em 21 ago. 2013.

 

 (13) LEITE, Rose Mary. A ideologia contida nos livros didáticos. Artigo científico apresentado ao Programa de Pós Graduação em Letras/Mestrado da Universidade Católica de

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(15) MALDONADO Maria Tereza. A face oculta.
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(16) STRUTZ, Janete. A identidade trágica no conto “venha ver o por do sol” de Lygia Fagundes Telles, comparada ao mito de Narciso.  Publicado em 10 de janeiro de 2011. Disponível em < http://www.webartigos.com/artigos/a-identidade-tragica-no-conto-venha-ver-o-por-do-sol-de-lygia-fagundes-telles-comparada-ao-mito-de-narciso/56602/#ixzz2Zu2JhMpH>. Acesso em 2 de setembro de 2013.

(17) ASSIS, Machado de. Dom Casmurro in: Obras Completas de Machado de Assis, vol. I, Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1984. Disponível em <http://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?action=download&id=6118> Acesso em 15 de setembro de 2013.

(18) DUMAS FILHO, Alexandre. A dama das camélias. São Paulo: Brasiliense, 1965.

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(19) CARLOTO, Cássia Maria. O conceito de gênero e sua importância para a análise das relações sociais. Serviço Social em Revista. Departamento de Serviço Social da Universidade Estadual de Londrina. Volume 3, n. 2,  Jan/Jun 2001. Disponível em <http://www.uel.br/revistas/ssrevista/c_v3n2_genero.htm> . Acesso em 15 Ago. 2013.