3.4 A Desestruturação da Narrativa

Neste tópico buscamos apresentar a desestruturação da narrativa que representa as incursões de descrições de estados interiores do narrador promovendo assim uma quebra no enredo, enredo este que na realidade inexiste em termos de ficção pós-moderna.
A desestruturação da narrativa é uma característica da literatura desde a modernidade até os dias atuais com a pós-modernidade, em Connor (1989) apud Sobral e Gonçalves (1996, p.93) "O heroísmo da desestruturação é uma qualidade consistente tanto no modernismo como no pós-modernismo". No entanto o que podemos perceber é que este aspecto torna-se muito freqüente nas obras do final do século XX.
O modo de ver e representar esta característica também se torna bem peculiar na escrita contemporânea. Entendamos então o que seria a desestruturação do enredo. Conforme Campedelli (1994, p.301):

O acúmulo de pormenores narrativos, somado a descrição de estados (estados de alma, estados físicos) provocam a perda da visão de conjunto no romance. Daí resultar uma narrativa em que o enredo parece desestruturado. Às vezes, até mesmo narrativas monótonas, à moda do noveau romam, em que pouco importa o que se conta, mas como se conta. Trata-se de uma literatura de descobertas do valor intimista da confissão de momentos, de vivências e experiências psicológicas. O mundo interior vem à tona com todas as suas nuanças, e o relato ganha tons psicanalíticos.


Ao descrever sensações, estados físicos e de alma o autor contemporâneo torna seu texto propositalmente (que fique claro) desestruturado. A linearidade da narrativa é perdida e o autor expressa o que lhe vem à imaginação com liberdade; em pleno voo. A visão de conjunto ou seqüência não existe na nova narrativa, em alguns momentos observamos como se fosse o desenrolar do pensamento diretamente ali, desenvolvidos nas palavras, no texto.
Como temos visto em Campedelli (1994) o acúmulo de por menores sobre estados físicos e de alma causam a desestruturação da narrativa. Voltando um pouco no texto temos uma discussão que nos remete a metaficção, onde o autor-narrador racionaliza sobre o fazer artístico, de suas tarefas a cumprir e derrepente começa a falar de como ele se sente causando, assim, a desestruturação da narrativa. O narrador em Alma-de-Gato expõe seus estados de alma em vários trechos como podemos ver no que segue.

Alma-de-Gato (2008, p.78):

O que passa por mim é um rio subterrâneo que não conheço e em cujas águas não consigo - nem sei se devo ? mergulhar. Um rio que corre submerso e sem parar no inconsciente do meu inconsciente
(...)
Rio de mim mesmo, incógnito e invisível e selvagem. Rio interno, abafado. Ouço o barulho de suas águas convulsas. O desconhecido. Que fantasmas, espectros nadam nesse rio, bebem de suas águas?


A literatura pós-moderna está aqui expressa, uma literatura construída com base na fragmentação, visto compreender que o mundo é diverso e fragmentado. A desestruturação do romance se dá a partir do momento que o texto se torna fragmentado com incursões de discursos intimistas ou interiores, ou seja,quando se faz uma pausa na narrativa, já que o enredo inexiste neste novo momento literário.
A respeito do noveau roman o narrador nos expõe ao novo fazer literário e nos coloca a par do que seria esta nova técnica narrativa do não dizer nada para dizer tudo. Alma-de-Gato (2008, p.82):


Os romances que não contam história (coisa recente) tem como referência o contar - história, já que se lhes opõe. Caso do Noveau Roman. Da conversa ao pé do fogo ao cerebralismo do NR, um longo percurso, uma variedade infinita de narrativas: e cada romance é único. Porque é (representa) vida ou vidas e reflete partes ou ângulos da linguagem e da sociedade, do mundo.



A desestruturação do enredo é vista como um ponto positivo e que merece atenção visto ser a fragmentação ou desestruturação uma representação dos sujeitos. A literatura sendo representativa do homem busca apresentá-lo, os escritores tentavam antes de o NR representar a sociedade em conjunto, hoje o que temos é uma narrativa desestruturada/ fragmentada assim representando todo ser humano.
Sevcenko (1995) defende esta desestruturação como sendo a verdadeira representação do ser humano, inconstante, imperfeito, frágil e provisório. Em Alma-de-Gato (2008, p. 82) o autor também defende a estética pós-moderna como verdadeira possibilidade de representação do ser humano:


(O romance total ¬¬? que abarque a sociedade inteira ? é uma utopia do século XIX: talvez Flaubert, Tolstoi, Stendhal, Balzac ou Zola.) O século XX percebeu a amplidão e a diversidade atomizada, fragmentária da sociedade (mundo), e a partir de Joyce resolveu, com mais humildade, abordá-la por trechos, segmentos, fragmentos.


Em Alma-de-Gato (2008) o autor trata deste aspecto dizendo que alguns autores não se incomodam com o que vão contar, mas como vão contar e que o romance pode ser feito até mesmo sobre uma simples escrivaninha. O narrador fala a respeito de um romance que está lendo, O Ciúme, de Robbe-Grillet, questiona-se sobre os motivos que o levaram a escrever tal livro e teoriza sobre o gênero Romance.
Alma-de-Gato (2008, p.29-30): "Observe sua escrivaninha nos mínimos detalhes ? não deixe de fora nem os grãos de poeira - e descreva-a, ela poderá quem sabe, resultar num romance ou pelo menos num bom número de páginas".
A técnica narrativa é vista a partir deste momento como representativa das inconstâncias e incertezas dos sujeitos, a arte literária muda em grande parte de seus aspectos. Segundo Connor (1989) apud Sobral e Gonçalves (1996, p.95) "a era pós-moderna é marcada por uma radical decomposição de todos os princípios centrais da literatura, por um profundo questionamento de ideias críticas sobre autoria, público, processos de leitura e a própria crítica". A literatura toma um novo rumo em seu processo crítico e criador, bem como seu relevante papel junto ao ser humano, que se torna cada vez mais profundo.
Alma-de-Gato é uma ruptura com a temporalidade normal ou objetiva e com a estrutura literária padrão do romance como já temos visto ser esta uma das características da literatura contemporânea. Esta quebra na linguagem, sugerindo uma nova percepção do texto, propõe indiretamente uma representação do pensamento e da linguagem humana na busca de uma forma nova e desestruturada da própria forma para obter-se uma linguagem abstrata e polissêmica.


3.5 A Fragmentação da Narrativa

Neste tópico procuramos identificar a fragmentação da narrativa na obra em estudo, avaliando para isso o processo fragmentário da nova narrativa. Sendo o texto tomado como gênero romance, podemos perceber tendo por base este aspecto que as incursões de outros gêneros bem como vários dos recursos da narrativa pós-moderna causam a fragmentação da narrativa, sendo esta específica dos textos literários.
Para melhor entendermos o que seria a fragmentação da narrativa buscamos o significado de termos como fragmentação, fragmentos, fragmentar. No dicionário Aurélio (2001, p.332) temos que fragmentar é "fazer-se em fragmentos; quebrar-se; fragmentação". Op cit vemos que fragmento é "cada um dos pedaços de uma coisa partida ou quebrada". Bem, com base nestes aspectos tentamos consolidar o que podemos entender por fragmentação da narrativa.
Para Andrade (s/d, p. 07) "a fragmentação é uma especificidade dos textos literários, a qual toma forma na sintaxe textual, mediante a não-linearidade discursiva". A narrativa é, pois quebrada, partida em pedaços, feita de fragmentos. Alma-de-Gato (2008) é um todo de fragmentos, é na verdade uma colcha de retalhos. A característica abordada neste tópico é a mais representativa do romance tendo por isso sido contemplada em último plano.
Lendo a obra, com um olhar mais atento, percebemos que a fragmentação da narrativa é constante, e de acordo com Cunha (2004) ela (a fragmentação), em muitos momentos é marcada pela diferença entre os gêneros textuais. Este aspecto pode ser ilustrado por meio de um fragmento da obra em foco. Alma-de-Gato (2008, p.213-215):


Somos ? a narrativa ? interrompidos para se ouvir a voz do próprio João do Silêncio quando jovem, e que ele mesmo intitulou: O QUE RESTOU DO INCÊNDIO DOS MEUS QUINZE ANOS.

POESIA ALADA

Quisera fazer poesia da borboleta.
Suave, macia ? cores voando.
Asas em riscos, desenhos no ar.

Borboletas voando é poesia alada.


A fragmentação da narrativa pode acontecer de várias maneiras sendo a mesma uma das consequências de muitos dos outros aspectos vistos no decorrer deste trabalho. Sobre isto posiciona-se Andrade (s/d, p. 07):

O elemento fragmentário, pode manifestar-se de formas distintas: no esfacelamento de perspectivas, na memória/digressão, no recurso da intertextualidade ? prosa/poesia/drama ou literatura/cinema/teatro ? na linguagem sintomática,ou ainda, na coexistência de alguns desses aspectos presentes no mesmo texto.


Para melhor entendermos como a fragmentação da narrativa se dá a partir de outros elementos comuns a nova narrativa observemos o que se dá em Alma-de-Gato (2008, p. 67): "Pois não é que o capítulo anterior mais parece um longo intervalo da narrativa principal? (E qual é a narrativa principal?)". Neste trecho o narrador nos expõe a fragmentação ocorrida em um capítulo anterior fazendo um longo intervalo na narrativa principal, porém, ao mesmo tempo, declara que não existe uma narrativa principal.
Vejamos na continuação mais alguns detalhes sobre a fragmentação da narrativa. (Op cit) "há vários intervalos neste livro e é preciso dizer de alguma forma que os intervalos são a própria narrativa, assim como o silêncio é a própria essência da música".
Os intervalos, as incursões dos elementos fragmentários são a representação real da narrativa. Isto se justifica segundo o narrador em Alma-de-Gato (2008) por ser João do Silêncio um fragmento da e na história. "Ora, esses intervalos, unidos, constituem a própria maneira de dizer, e dizê-lo de uma forma errante, como a vida de um judeu errante, e esta errância é a própria narrativa". (ALMA-DE-GATO, 2008, p. 67).
É necessário que entendamos a importância da fragmentação da narrativa nesta obra. O elemento fragmentário é, pois, o elemento introduzido na narrativa que causa a fragmentação: como a citação de outros textos, a intertextualidade, a digressão com relatos de estados físicos ou de alma, representando a desestruturação da narrativa entre outros.
Como vimos a fragmentação em Alma-de-Gato pode ser evidenciada não apenas entre as partes da obra, quando temos incursões de outros gêneros como o conto ou a poesia, mas também em um mesmo capítulo, como pôde ser exemplificado pelos excertos acima, que caracterizaram também a importância da mesma para o desenvolvimento da narrativa.
De acordo com Reuter (2002) apud Cunha (2004, p. 93) "[...] os gêneros limitam as narrativas, primeiro impondo modos de organização mais ou menos rígidos, à diversidade sequencial e, em seguida comandando formas mais ou menos codificadas para essas sequências". Na nova narrativa a quebra destes paradigmas torna a literatura mais livre, ficando o escritor à vontade para misturar as tendências e os gêneros narrativos. Como observamos em Alma-de-Gato (2008, p.285):


Saiu no jornal, com o título de "MELANCOLIA DO HOMEM É IGUAL À DO DINOSSAURO", que "o mesmo comportamento melancólico que teria caracterizado os dinossauros antes de seu desaparecimento domina hoje o homem, e se reflete na crise ecológica e ambiental pela qual passa o planeta".


Além de incursões de notícias de jornais a obra apresenta ainda, contos, poesias e memórias. A variedade de gêneros é tão grande que o próprio autor chama seu romance, não de pós-moderno, porém o chama de pós-romance. Este é, talvez, um dos fatores que faz com que o narrador diga que Alma-de-Gato é a própria invenção do gênero romance.
Reuter (2002) apud CUNHA (2004, p. 93) a respeito do modo de inserção das sequências na narrativa salienta:


Elas podem romper de maneira clara o curso da narração ou, pelo menos, distingui-lo claramente: a inserção de uma carta ou de uma notícia de jornal [...] Em compensação, ela pode tender a fundir-se na narração que apaga o máximo possível os signos demarcativos.


Na obra em questão temos a incursão direta dos elementos fragmentários, os trechos intercalados aparecem no decorrer da narrativa parando inclusive, frases ao meio. A fragmentação é, pois explícita. O autor não tem a preocupação de esconder os signos demarcativos no decorrer da narração como podemos exemplificar com o excerto abaixo. Alma-de-Gato (2008, p. 56-59):


Desapareciam.
O anãozinho se divertia muito com isso.
4
Didática da vida
O centro do mundo está em todos os lugares: [..]
Interrompido pelo canto dos ventos e o encanto dos tempos. Chove chuva, chove sem parar ? desaparece.
Desapareciam.
O anãozinho se divertia muito com isso.


O que temos neste trecho é a incursão direta da fragmentação, tendo como elemento fragmentário um conto. O autor termina o capítulo 3 do livro II com a continuação do conto, interrompe o mesmo e inicia o capítulo 4, discutindo sobre a vida e o individualismo humano. Novamente utiliza a fragmentação da narrativa voltando a explanar o conto partindo, como podemos perceber, do ponto anteriormente citado. A fragmentação da narrativa representa a própria fragmentação do homem sendo esta a real intenção da narrativa pós-moderna.
Para finalizarmos vejamos o que o narrador nos fala sobre a fragmentação do ser humano. Alma-de-Gato (2008, p. 30): "Fragmentar do antigo, fragmentar do moderno, fragmentar do futuro ? e vamos construir o mosaico, painel. Acordar o homem que está nascendo, colar suas várias partes e arestas e desenhar-lhe um perfil".