Resumo

A presente tese será apresentada com objetivo de classificar a narrativa Aura, de Carlos Fuentes, dentro dos gêneros, fantástico ou realismo mágico, uma vez que há divergência entre as opiniões de alguns autores sobre esta questão. A atual defesa insere Aura no fantástico por apresentar alguns pontos, que assim, a fazem ser reconhecida. A obra de Carlos Fuentes apresenta alto grau de indeterminação em seus acontecimentos, causa emoção e tensão no leitor, apresenta ambigüidade e atos duplos, não possui explicações racionais para as cenas sobrenaturais, além de ser narrada em segunda pessoa, o que insere o leitor na narrativa, fazendo-o participar dos acontecimentos, dando mais veracidade aos fatos. Esses elementos são apresentados, por alguns autores, como principais, para que uma obra seja classificada como sendo pertencente ao gênero fantástico, ao contrário do realismo mágico, que além de alguns outros fatores que não permitem o inserimento da novela neste gênero, possui a principal regra: Não causar tensão ou emoção no leitor, o que está longe de ser o caso de Aura.

Palavras-Chave: Aura. Fantástico. Realismo mágico.

1. A construção da narrativa Aura

 

 

Aura é uma novela curta escrita pelo autor mexicano contemporâneo Carlos Fuentes, considerado por sua vez um dos maiores escritores do México. É uma obra narrada na 2ª pessoa, o que é raro e trata-se de um clássico latino-americano que ora é classificado como fantástico, ora como realismo mágico.

 Aura possui uma trama de indeterminação que nos gera dúvida sobre as cenas narradas e nos causa estranhamento pela dimensão do duplo que nela permanece. O real acaba por se misturar com o sonho e nos provocar hesitação que caracteriza a fantasia e marca a ambiguidade na obra. No entanto para que haja hesitação é necessário que o leitor participe do texto, para que compreenda a real fantasia como diz o psiquiatra suíço Carl Jung: “Para ser vivida de um modo completo a fantasia exige, não só a visão passiva, mas participação ativa do sujeito”. (1997:300)

            Essa experimentação de temor pelo leitor é provocada exatamente por essa narrativa ser construída em segunda pessoa, o que insere o leitor nos fatos narrados da história, ainda mais do que um narrador testemunha, fazendo com que ele se coloque no lugar da personagem e a narrativa faz com que o leitor se pergunte: O que aconteceu depois? E isso faz com que ele continue lendo e analisando a obra.

            Carlos Fuentes, em sua obra, fala sobre um jovem, Felipe Montero, que lê um anúncio no jornal, uma boa oferta de emprego e vai em busca dela, pois o encargo parecia tê-lo escolhido. Quando chega ao endereço que estava no jornal, Felipe se depara com uma casa, cujo ambiente é sombrio e assustador. Essa atmosfera sombria, além de ativar a curiosidade e temor do leitor, contribui para a construção dos acontecimentos fantásticos da narrativa. Nessa casa conhece Dona Consuelo (a autora do anúncio) e Aura, sua sobrinha, que também era moradora da casa, assim como Saga, a coelha de estimação da velha.

            Durante sua estadia na casa, ocorrem fatos estranhos, como rituais que levam nossa visão às bruxarias, sentidos ambíguos aos olhos do personagem e visões estranhas que parecem fluir da loucura ou estar atarracadas aos sonhos. Felipe se apaixona por Aura e no decorrer do trabalho que desenvolvia para Dona Consuelo, (ler alguns arquivos de seu falecido marido), descobre que Aura e Dona Consuelo são a mesma pessoa, e que o marido de Dona Consuelo era ele próprio.

            Assim tem-se a impressão que as personagens uniam-se por meio de um amor, que ultrapassou o tempo, e que Felipe e Aura já haviam estado juntos.

1.1. A narrativa em segunda pessoa

 

 

            Inicialmente, deve-se compreender que um discurso em segunda pessoa é o discurso no qual podemos predicar ações a uma outra pessoa, ou seja, a um interlocutor. No caso da narrativa Aura vemos essas ações comandadas explicitamente:

“Você lê esse anúncio: uma oferta assim não é feita todos os dias. Lê e relê o anúncio. Parece dirigido diretamente a você, a ninguém mais” (FUENTES, 1998:09)

 

            O fato de o narrador utilizar a palavra você a cada início de descrição de uma cena, faz com que o leitor esteja ali, dentro da cena, vendo a casa, a personagem com quem contracena, a atmosfera citada, tudo. O autor predica as ações ao leitor, apenas guiando-o quanto aos acontecimentos.

O uso da 2ª pessoa traz, mesmo que involuntariamente, o leitor para dentro da obra fazendo com que ele participe da história. A cada linha escrita direcionada a quem lê, faz com que vivencie a cena. A cada novo parágrafo iniciado, tem-se a sensação de estar dentro da história:

“Você viverá esse dia como os demais dias, e não voltará a se lembrar dele senão no dia seguinte, quando senta-se novamente na mesa do bar, pede o café da manhã e abre o jornal(...)”(FUENTES, 1998:11)

            Então o leitor entra na fantasia  e assim ela desenvolve com efeito intensificado uma vez que toma-nos como cúmplices e testemunhas dos protagonistas, como diz Selma Calansas Rodrigues em seu livro sobre o fantástico.

            Alguns autores apontam como condição do gênero fantástico, o fato de o leitor identificar-se com o narrador-personagem, pois este presencia as cenas. Aura traz mais do que esta identificação, pois, as cenas narradas são descritas como se fosse o próprio leitor quem as presenciasse. Isso acontece pela ocorrência do “você” durante toda a narrativa. Assim, o leitor não só se identifica com o protagonista, como se sente em sua pele, como se fosse ele mesmo a testemunha dos fatos insólitos.

1.2. A atmosfera sombria

 

 

            Notamos durante toda a narrativa o ar de mistério, maldito e surreal que começa com a chegada do personagem “Felipe Montero” à casa onde foi em busca do que leu no anúncio.

“Você bate em vão com essa aldrava, essa cabeça de cão em cobre, gasta, sem relevos, semelhante à cabeça de um feto canino dos museus de ciências naturais” (FUENTES, 1998:12)

            Durante a chegada dele e reconhecimento do local, o que é descrito nos transmite uma impressão de terror, pois, descreve sua estada na escuridão após fechar a porta e o cheiro que ele sentia, o ranger da madeira onde ele anda, da umidade da plantas e das raízes apodrecidas. Ele revela a “madeira rangente” (pág. 13), que ocorre com o caminhar do personagem pelo chão. Ao imaginarmos este som, temos a impressão do sombrio e a perspectiva de que podemos nos deparar com algo assustador. E para acentuar ainda mais o grau de escuridão, o narrador cita que para Felipe encontrar seu quarto, quando Aura vai o guiar, ele anda atrás do ruído, porque ainda não se acostumou com as trevas.

Assim que o personagem entra na casa (pág. 13), há a seguinte ação: Você procura em vão uma luz que o guie, o que configura total imagem de escuridão, por sua vez, aguçando o medo e terror do leitor. Tudo apontando para a criação de um ambiente de fantasia.  Há uma passagem (pág. 11), que revela um pensamento de Felipe Monteiro: Sempre pensou que ninguém vivesse no velho centro da cidade. Esta frase apresenta uma atmosfera de solidão e de lugar abandonado, que nos transmite uma idéia premeditada do sombrio. Percebe-se também que a ambigüidade das linhas que descrevem a entrada de Felipe pela porta da casa:

“A porta cede ao levíssimo empurrão de seus dedos e antes de entrar olha pela última vez sobre os ombros (...) Você tenta inutilmente reter uma única imagem desse mundo exterior indiferente.” (FUENTES, 1998:12,13)

            Além de descrever que Felipe tenta olhar pelo ombro para ver algo e é impedido pela porta que se fecha, tem-se a impressão que é a última vez que ele vê o mundo fora da casa como se a vida dele até aquele momento tivesse ficado ao externo do local onde ele se encontrava. A expressão “última vez” e “inutilmente” causa certo calafrio no leitor dentro deste contexto. A maneira como Felipe é conduzido até o quarto de D.Consuelo (a velha que publicou o anúncio) também contribui para publicação do misterioso, já que uma estanha força o guia até lá, fazendo com que ele não erre o caminho, mesmo numa casa que não conhecia. Enquanto Felipe conversava com D.Consuelo percebe que ela fala e que os lábios não se mexem ao pronunciar a palavra “voltará”.

            Neste mesmo trecho Felipe conhece “Aura” que é a moça que lhe é apresentada como sobrinha de D. Consuelo. De acordo com os dicionários, Aura significa fenômenos ou sensação da alma e do emocional e para a medicina é o fenômeno que precede crises pessoais ou distúrbios emocionais. Logo percebe-se  a estranheza da história vinculada  ao título da novela e ao nome da protagonista, porém todas estas características ficam implícitas de maneira que se estruture o imaginário no leitor e apenas através de um estudo minucioso e uma leitura meticulosa possam ser percebidas tais considerações.

            Várias etapas da narrativa fazem perpassar pelo interior do leitor, certo calafrio, por possuir o grau de estranheza:

(...) sua boca grande e polpuda que enche de vapor o espelho; cerra seus olhos negros e, ao abri-los, o vapor terá desaparecido. Você deixa de conter a respiração e passa a mão sobre o cabelo escuro e liso; toca em perfil retilíneo, suas faces delgadas. Quando o vapor torna outra vez o rosto opaco, você estará repetindo este nome: Aura. (1998:23)

É necessário observar algumas considerações que apontam a obra para o gênero fantástico, como por exemplo, o fato de não haver explicações racionais para os acontecimentos sobrenaturais na cena narradaem que Felipevê gatos e outros detalhes, por exemplo, não se tem explicações racionais e são visões surreais.

“(...) Você pode alcançar a clarabóia, abrir um de seus vidros, elevar-se com esforço e cravar o olhar nesse jardim lateral, nesse cubo de telhados e plantas emaranhadas onde cinco, seis, sete gatos – você não pode contá-los, não pode se manter ali mais de um segundo – encadeados uns com os outros, se revolvem envoltos em fogo desprendem uma fumaça opaca, cheiro de pêlo queimado. Você duvida, ao cair sobre a poltrona, se na realidade viu isso; talvez tenha unido a imagem aos miados espantosos que persistem, diminuem, se extinguem finalmente”. (FUENTES, 1998:35)

Outra consideração importante, é o fato de todas as portas da casa, onde permanece Felipe Montero, serem de vaivém, elas nunca se fecham realmente, trazendo um ar de insegurança para o leitor, pois, ele se imagina em uma cena obscura e não pode fugir e se trancar em algum dos cômodos, caso se sinta em perigo, ameaçado ou assustado.

O fato de a casa permanecer constantemente na penumbra, constitui uma dica, uma hipótese para explicar o porquê de as portas serem de vaivém, pois, pode ser para que nenhum tipo de iluminação invada o cômodo subsequente, uma vez que, as portas não ficam abertas, já que é uma condição de Dona Consuelo que a casa fique às escuras.

Toda essa atmosfera sombria dá suporte ao sobrenatural explorado na obra.

1.3. O universo da feitiçaria

 

 

            Entremos então no universo da feitiçaria abordado por Carlos Fuentes em “Aura”. No momento, já citadoem que Felipeadentra à residência, ele é como que conduzido ao quarto, por uma estranha força e entorpecido pelo cheiro das plantas. Depois a presença de objetos religiosos como castiçais entre corações de prata e frascos de cristais, produzem algumas luzes que piscam no ambiente escuro. Este aspecto cênico nos faz obter esta idéia de algo bruxesco facilmente, pois, relembram cenas presentes em nosso pré-conhecimento dos locais onde se realizam certos tipos de rituais, que podem ser advindas de filmes, leituras ou crenças do senso comum.

             Nota-se também algumas cores que mexem com o desfecho da feitiçaria;

“Então prova com alegria a maciez do colchão da cama de metal dourado e percorre o quarto com o olhar: o tapete de lã vermelha, as paredes empapeladas, ouro e oliva, a poltrona de veludo vermelha, a velha mesa de trabalho,  nogueira e couro verde (...)”. (as cores ouro e vermelha transmitem um ar de misticismo) (FUENTES, 1998:22)

             

            Existe uma superstição que caracteriza os gatos como animais de bruxaria, então questiona-se, o fato de se haver várias situações em que cita-se esses animais na obra. Em dado momento Felipe ouve gatos miando, e em outro os vê. Existe também um trecho na obra, o qual descreve Consuelo quando jovem, nas memórias do General Llorent, torturando gatos, também como num ritual de bruxaria.

            A superstição também se apresenta na obra por meio da simbologia do número 13. Ainda que alguns autores, como Cid de Oliveira (astrólogo) defendam a tese de que o número 13 tenha mais influências benéficas do que maléficas, ele permanece no subconsciente das pessoas como algo ruim, como número pertencente ao azar, ou ainda, ligado à bruxaria. No entanto, nada está provado, nem se pode provar, mas como grande parte do conhecimento do senso comum acredita que o número 13 esteja ligado, de certa forma, à bruxaria e ao azar, podemos dizer que Carlos Fuentes, em Aura, tenha se utilizado da numerologia para provocar, ainda mais no leitor, a sensação de terror e misticismo. O argumento assim refere-se pela passagem: Ande treze passos para a frente e encontrará a escada a sua direita. (Fuentes, p.13). Esta é a premissa para que Felipe Montero se insira literalmente na casa, após passar pela porta. Se estamos falando em numerologia, é importante perceber também que os referidos “treze passos”, são descritos na página 13. O interessante é que, ainda neste trecho, enquanto a personagem marca seus passos, o cheiro das plantas apodrecidas e da umidade, o envolvem, como descreve o narrador.

             A própria protagonista da narrativa apresenta-se somente vestida de verde. Há decorações formadas por bonecos de porcelanas e bolas de cristal. Há toda uma força inexplicável que, por sua vez obrigam Felipe a deslocar-se em certas atitudes.

“Atribui ao vinho seu atordoamento, a tonteira que lhe produzem esses olhos verdes, límpidos, brilhantes (...)” (FUENTES, 1998:27)

Em dado momento da narrativa, tem-se a impressão de um movimento imerso em feitiço. É quando Felipe vê D.Consuelo de forma como a lutar contra algumas imagens: Cristo, Maria e alguns Santos entre “demônios” sorridentes.

  Então crê-se que há algo de intrigante na cena pois, por que estariam os demônios sorridentes em meio aos santos? Porém, a resposta está na própria narrativa, que diz que os demônios sorriem por estarem em meio aos santos com pouca liberdade e entre os condenados, os quais os demônios torturam. E por que a velha lutaria em frentes as imagens?É como se ela estivesse num trabalho bruxesco, compactando algo.

              A resposta vinda a seguir fala sobre a devoção da Senhora diante dos acontecimentos mundanos, porém o imaginário nos permite enxergar algo mais, uma vez que em sua própria fala observa-se esta atmosfera absurda: “É que estou tão acostumada às trevas”. (FUENTES, 1998:31)

Em outro momento também se percebe um ritual de feitiçaria, quando Felipe encontra Aura degolando um cabrito com movimentos firmes. Ritual este que terá, mais a frente um estudo detalhado no sentido duplo da narrativa.

             A presença de uma boneca de pano na obra também nos traz esta mesma idéia de bruxaria. Ela é citada em uma das refeiçõesem que Felipechega na cozinha e esta apenas seu lugar disposto na mesa. Ao lado de seu prato, encontra-se uma bonequinha de pano, a qual ele segura sem compreender.

             Esta percepção se faz por lembrar-nos dos fantoches em miniaturas que servem para manusear alguns tipos de feitiços, chamados de “Vudus”. Quando Felipe é convidado para ir ao quarto de Aura se depara com outro ritual mágico deste universo entorpecente que envolve e motiva sua ações ouvindo Aura dizer:

“_Vamos brincar. Não faça nada. Deixe-me fazer tudo (...)

O céu não é alto nem baixo. Está em cima e debaixo de nós ao mesmo tempo.(...) Você sente a água morna que banha a sola de seus pés, alivia-as, enquanto ela o lava com uma fazenda grossa, dirige olhares furtivos ao Cristo de Madeira negra (...)”(FUENTES, 1998:56,57)

            E também em:

“Aura de cócoras sobre a cama, põe esse objeto contra as coxas fechadas, acaricia-o, chama você com a mão. Acaricia essa coisa de farinha fina , quebra-a sobre suas coxas, indiferentes às migalhas que escorrem por suas cadeiras: oferece-lhe a metade da pequena porção que você pega e leva a boca ao mesmo tempo que ela, engole com dificuldades; depois cai sobre o corpo despido de Aura, sobre seus braços abertos, estendidos de um extremo ao outro da cama, como o Cristo negro que pende , com sua tanga escarlate”. (FUENTES, 1998:57,58)

Depois de acabado todo este estranho ritual, há promessas e juras de amor eterno, as quais Felipe concorda com Aura em tudo que ela lhe diz, promete amá-la na velhice, mesmo que perca a beleza assim como amá-la após a morte.

No entanto, é necessário ressaltar que, Felipe Montero Também percebe, de certa forma, uma força oculta a envolver Aura, a qual ele não sabe definir:

(...) pergunta a si mesmo se a senhora não terá uma força secreta sobre a moça, se a jovem, sua bela Aura vestida de verde, não estará encerrada contra sua vontade nesta velha casa sombria. (...) E não fica só nisso sua imaginação: talvez Aura espere que você a salve das cadeias que, por alguma razão oculta, lhe impôs esta velha caprichosa e desequilibrada. (1998: 40-41)

            O fato de Aura andar pela casa tocando os sinos pode fazer parte de um ritual para espantar os possíveis futuros inquilinos da casa, pois, primeiro Dona Consuelo diz: É que nos cercaram de paredes senhor Montero. Construíram ao redor de nós, nos tiraram a luz. Quiseram obrigar-me a vender. Nem morta venderíamos. (1998:31). É como se alguém quisesse aquele local e Dona Consuelo não quisesse sair. A seguir percebemos uma possível resposta para isso, por meio de um sonho de Felipe: (...) sonha com essa mão descarnada que avança para você com o sininho na mão, gritando que se afaste, que todos se afastem e, quando o rosto de olhos vazios se aproxima do seu, você desperta com um grito surdo (...). (1998:42). Mais à frente da narrativa, outro trecho nos aponta a mesma percepção: Ela lhe dará as costas e irá embora tocando esse sininho, como os leprosos que com ele apregoam sua proximidade, advertem os incautos: “Afaste-se, Afaste-se”.(1998:65).

Esta emersão aos movimentos extraordinários faz com que o leitor saia de sua estabilidade racional com o universo real, trazendo-lhe estados de equilíbrio ou desequilíbrio para dinamizar esta realidade e para estas cenas narradas não há explicações racionais.

1.4. As dimensões do duplo

 

           

            A dimensão do duplo costuma ser uma característica própria do fantástico. Podemos obter o pré-conhecimento do que seja o duplo na fala adiante:

“Variam as formas de representação do duplo: temos uma personagem que, além de semelhantes fisicamente (ou iguais), têm sua relação acentuada por processos mentais que saltam de um para outro (telepatia), de modo que um possui conhecimento, sentimentos e experiência em comum com o outro. Ou o sujeito identifica-se de tal modo com outra pessoa que fica em dúvida sobre quem é seu eu. Ou há retorno ou repetição das mesmas características, das mesmas vicissitudes e dos mesmos através de diversas gerações (...)” (RODRIGUES, O fantástico, pág. 44).

            Algumas religiões, por exemplo, fazem uma separação, uma distinção entre corpo e alma, embora para algumas pessoas, ambos sejam um só. Isso é uma condição do duplo, é uma noção de réplica que de algum modo demonstra a insuficiência de um ser, como aponta Cristina Martinho em sua tese sobre As articulações do duplo na literatura fantástica do século XIX.

            Porém, essa questão do duplo é enigmática e foge um pouco das explicações reais do mundo, o que também o insere no gênero fantástico.

            Em Aura, uma das personagens se percebe incompleta (Dona Consuelo), e vai à busca do objeto que a complete (Felipe Montero), este também é um ponto que marca o duplo na história.

O duplo marca a literatura desde os seus primórdios e também na ficção brasileira e estrangeira. O duplo pertence a essa fase de indiscriminação entre o eu e o outro, o eu e o duplo. Veja na seguinte passagem de Aura o início da dimensão dupla da história:

“A jovem inclinará a cabeça e a anciã, ao mesmo tempo que ela, lhe imitará o gesto” (FUENTES, 1998:20).

            As duas personagens agem identicamente, como também veremos em várias outras partes da narrativa:

“Você olha rapidamente da tia para a sobrinha e da sobrinha para a tia porém, a senhora Consuelo, nesse momento, detém todo o movimento e, ao mesmo tempo, Aura deixa a faca sobre o prato e permanece imóvel e você se lembra que, uma fração de segundos antes, a Senhora Consuelo fez a mesma coisa.” (FUENTES, 1998:39)

E mais adiante em:

“Você a encontrará na cozinha, sim, no momento em que degola um cabrito: o vapor que surge do pescoço aberto, o cheiro de sangue (...). Em seguida a velha porá a mão sobre o peito, suspirará, voltará a cortar o ar, como se – sim, você verá claramente, como se tirasse a pele de um animal...” (FUENTES, 1998:49)

 

            Na cena narrada, em que há um tipo de um ritual, o qual Aura utiliza uma bonequinha de pano, recheada de farinha, para simbolizar o ato de amor entre ambos (Aura e Felipe), há outro momento de confusão por conseqüência da dimensão dupla. Observe:

“(...) a Senhora Consuelo que lhe sorri, balançando a cabeça que lhe sorri junto com Aura, que move a cabeça ao mesmo tempo que a velha (...). As duas se levantarão ao mesmo tempo. Consuelo da cadeira, Aura do chão.” (FUENTES, 1998:59,60)

 

            Felipe percebe toda essa estranheza, afinal, as duas quando estão juntas, sempre fazem o mesmo gesto, como sorrir, comer e falar ao mesmo tempo.

            O duplo também marca outro ponto na narrativa, causando estranhamento por não trazer uma explicação exata sobre a citação, deixando o leitor na dúvida sobre o que está lendo: Na página 18 de Aura, o narrador traz a presença de um coelho, “Saga”, o qual está na cama com Dona Consuelo quando Felipe Montero vai conhecê-la. O coelho sai, pula da cama e some. A Senhora Consuelo diz Ele voltará, e mais a frente, na página 19, ela diz a Felipe, assim que Aura adentra o quarto, Eu lhe disse que regressaria, e Felipe pergunta: Quem?, fazendo com que a percepção do leitor depreenda que Aura e o coelho Saga podem constituir apenas um ser, trazendo à tona a ambigüidade.

O último ato duplo desenrola-se no fechar da trama, quando Felipe, contratado para reformar os diários do marido de D. Consuelo, abre a última pasta, e vê as fotografias de Consuelo e do marido.

            Na literatura o fantástico pode se referir aos fantasmas, espelhos, sombras e retratos. No caso da narrativa estudada, o duplo também aparece no exemplo dos retratos:

“(...) Aura e a data 1876, escrita com tinta branca e atrás, sobre o cartão dobrado do daguerreótipo (...). Aura não se mostrará tão jovem como na primeira fotografia, porém é ela, é ele, é... é você!” (FUENTES, 1998:70)

            Nos trechos citados, em que as personagens Aura e Consuelo agem identicamente, temos a imagem-espectro. É o duplo atuando como uma imagem refletida no espelho: a imagem depende das ações de sua figura real, e é por isso que fazem, juntas, as mesmas coisas.

            No entanto, há duas interpretações para tais imagens duplas: A personagem Aura pode ser, como se tem a impressão na primeira leitura feita da obra, a mesma pessoa. Porém, há um trecho que nos apresenta uma possibilidade diferente:

“Avisei a Consuelo que essas beberagens não servem para nada. Ela insiste em cultivar suas próprias plantas no jardim. Diz que não se engana. As ervas não lhe fertilizarão o corpo, mas a alma...” Mais tarde: “Encontrei-a delirante, abraçada a seu travesseiro. Gritava: ‘sim, sim, sim, consegui: eu a encarnei; posso convocá-la, posso dar-lhe vida como a minha vida’ (...)”. (1998:68-69)

Essa passagem mostra uma das memórias do general. Identifica-se, portanto, que o que o general pensa ser um delírio pode ser o pré-ritual feito por Consuelo para criar Aura. Talvez, elas não sejam a mesma pessoa, e sim, Aura algo evocado por Consuelo para satisfazer-lhe as vontades. Por isso, o ato duplo.

Mas não é só nas personagens que percebemos esquemas do duplo. Em Aura, temos aspectos maléficos e benéficos, o sagrado e o profano, que se apresentam em imagens de santos, anjos e demônios citados pelo narrador, que, por sua vez, formam também a ambiguidade.

2. O realismo mágico e a classificação de Aura

 

 

            Alguns estudos classificam Aura como uma obra pertencente ao realismo mágico, o que o distancia do fantástico. Mas, em primeiro lugar, antes de fazermos afirmações, faremos considerações sobre como se caracteriza este gênero próximo do fantástico.

            Conforme Rodrigues, as principais características do realismo mágico são: Transcrever acontecimentos na narrativa em um único ambiente, não possuir tempo decorrente, por possuir uma atmosfera interiorizada, ou seja, sempre hoje e acima de tudo, não provocar tensão e emoção no leitor. A autora acrescenta ainda que,  este gênero é caracterizado também por possuir elementos mágicos que não são explicados, por isso, pode também ser chamado de realismo fantástico o que levaria a pensar a obra neste contexto.

            No entanto, percebe-se que, em todo o conteúdo da narrativa estudada, a tensão e emoção do leitor são aguçadas. Outro ponto que desmancha a união de Aura com o realismo mágico, é o fato de os acontecimentos deste gênero terem de ocorrer em um único ambiente. Apesar de em Aura acontecer a maior parte dos relatos do narrador dentro da casa, deixando minúscula e quase imperceptível os acontecimentos fora dela, eles existem. No início da narrativa, Felipe Montero, por dois dias, frequenta o café, onde lê o anúncio e anda de metrô. Quando vai à busca do emprego, ele também passeia pelo centro da cidade.

3. O fantástico e a classificação de Aura

 

 

 

            O que é fantástico? Muitas vezes, lemos uma narrativa que nos causa estranhamento, mexe com nossa imaginação, fazendo-nos criar cenas sucessivamente como às lidas, mas nunca imaginamos a cena como ela acontecerá na página subsequente por querermos automaticamente aproximá-las do real e do óbvio, entrando, em um universo da ficção que nos envolve cada vez mais fascinando-nos, por não existirem na realidade. Este é o ponto de partida para a compreensão da literatura fantástica.

            O fantástico em sua definição do senso comum (explicações dos dicionários), não deve ser completamente descartado, porém, apenas este conhecimento não pode ser tomado como definidor do gênero. Deve-se analisar, além das ocorrências do sobrenatural na obra, seus decorrentes questionamentos, pois o fantástico se nutre basicamente do sobrenatural e da não explicação desses acontecimentos.

            O gênero fantástico é construído também, por elementos sobrenaturais, porém esses elementos não são o bastante para determinar a que gênero a obra pertence. Cada narrativa utiliza-se de elementos diferentes para marcar seu gênero, mesmo que ambas (maravilhoso, estranho, etc.) tenham em seu conteúdo fatos sobrenaturais.

            Este gênero pode ser analisado, também, pela ocorrência do duplo (que será explicado em outro capítulo), a viagem no tempo, a indefinição entre realidade e sonho. Alguns estudos utilizados para a compreensão desta parte da literatura, como o de Selma Calasans Rodrigues, nos dão uma base de entrada para entender o fantástico, mas não delimita precisamente o gênero, pois o explica de forma ampla em comparação a outros gêneros, embasando-se em Todorov, que acredita que a hesitação do leitor diante da narrativa, é a principal característica do gênero estudado.

            De acordo com Todorov, o fantástico implica uma integração do leitor com as personagens do texto, ou seja, quando ele se identifica com essas personagens. É um gênero que precisa da “função” de leitor implícita no texto. Perceba que quando o leitor sai do mundo das personagens e volta à função de leitor ele analisará o nível da interpretação do texto, o qual pode ameaçar o fantástico da obra.

            Para implementar o universo do fantástico, Todorov (1979:151-152) exige três condições:

  1. É preciso que o texto obrigue o leitor a considerar o mundo das personagens como um mundo de pessoas vivas;
  2. Hesitar entre uma explicação natural e sobrenatural dos acontecimentos;
  3. Perceber que esta hesitação também foi sentida pela personagem da narrativa.

Diz ainda, que existe o fantástico estranho e o maravilhoso, enquanto o fantástico puro está entre os dois.

O fantástico estranho se dá quando os acontecimentos que parecem sobrenaturais ao longo da história, recebem explicações racionais, enquanto o fantástico maravilhoso é uma narrativa que termina com o sobrenatural. É o que mais se aproxima do fantástico puro, pois, por não ter sido racionalizado, nos sugere a existência do maravilhoso.

Diferentemente do gênero maravilhoso, por exemplo, o fantástico apresenta a configuração da verossimilhança construída e destruída na imaginação do leitor, conseguindo unir o real e o irreal. Este gênero se apresenta em meio ao cotidiano, juntamente com fatos sobrenaturais, ou seja, o leitor se aproxima da cena por elas serem narradas de acordo com o dia a dia comum.

Comparando assim, o fantástico com o estranho e o maravilhoso, podemos dizer que o maravilhoso se encaixa onde “tudo é possível”, sem causar estranhamento no leitor, enquanto o estranho tem o sobrenatural explicado pela razão. O fantástico, por sua vez, possui os fatos contendo alto grau de verossimilhança, isto é, nas cenas narradas há elementos que fazem com que o leitor acredite que o acontecimento seja real, faz parte do cotidiano da realidade. Acreditando no que está lendo, o leitor se assusta e teme sobre o apresentado, não havendo ainda para ele, explicações racionais nenhumas.

Furtado (1990) ressalta que a obra pertencente a este gênero não deve explicitar a aceitação ou exclusão do sobrenatural, ficando neutra. Discorda, ainda, de Todorov, dizendo que o fantástico é composto por elementos que expressam ambiguidade e não apenas pela hesitação:

Longe de ser o traço distintivo do fantástico, a hesitação do destinatário intratextual da narrativa não passa de um mero reflexo dele, constituindo apenas mais uma das formas de comunicar o leitor a irresolução face aos acontecimentos e figuras evocados. (FURTADO. 1990:41)

Essa ambiguidade a que Furtado se refere, presente em um texto fantástico, se apresenta nas construções do irreal com a verossimilhança, fazendo com que o leitor faça um enlace entre ambas.

Quem já leu alguma obra e nem imaginava o que aconteceria nas últimas páginas e quando nelas chegou surpreendeu-se mais do que o esperado sabe do que se trata tal argumentação, uma vez que, não chegou a uma conclusão concreta dos fatos ocorridos na história. Isto ocorre em Aura e no mundo fantástico existente dentro da obra.

Considerações finais

 

           

            O fantástico consiste em um gênero literário, cuja narrativa contém elementos de indeterminação dos acontecimentos, negando as explicações racionais e metafísicas para os acontecimentos descritos, possuindo também outros pontos que com que uma obra se classifique como tal. Porém, há alguns tipos de fantástico que devemos conhecer antes de analisar uma obra e classificá-la com determinado gênero.

“Uma série de acontecimentos nos é primeiramente relatada, dos quais nenhum, tomado isoladamente, contradiz as leis da natureza tais como admitimos; mas seu acumulo já traz problema.” (TODOROV, 1979: 149)

 

            Podemos perceber durante o trabalho, que existe o fantástico puro, o fantástico maravilhoso, o estranho, e o realismo mágico, que apesar de serem próximos, diferem entre si. Seus elementos fazem com que nossa percepção do fantástico fique confusa. No entanto, se analisados dentro de uma narrativa, são esses elementos que vão nos dar a resposta sobre o gênero, ao qual o texto pertence. É por isso que se diz que, apenas o fato de um texto apresentar características ficcionais, não é suficiente para que se possa afirmar que ele seja pertencente a um gênero específico, como o fantástico, por exemplo.

“Mas onde estaria o lugar do fantástico em uma sociedade que rejeita a metafísica? O fantástico se desenvolve, segundo Bessière, exatamente pela ‘fratura dessa racionalidade’, que, tendo procurado objetivamente dar explicações do mundo e do indivíduo autônomo, criar sistemas e críticas da sociedade não pode dar conta da singularidade e da complexidade do processo de individuação.” (RODRIGUES, 1988: 27)

            Em Aura, é possível ver vários dos pontos tidos como pertencentes ao gênero fantástico, como o surreal presente na narrativa. Há todo um ar de mistério, que vão desde os acontecimentos das cenas narradas até a descrição dos locais onde eles ocorrem, misturado com o clima mórbido que nos transmite um ar de terror. Esse terror pode ser visto na permanente escuridão da casa (onde transitavam as personagens da narrativa estudada), nas refeições constituídas de vísceras e vinho e nos constantes rituais de feitiçaria, ou que ao menos nos transmite esta idéia, que pode ser dita bruxaria.

            Tudo isso, sem falar na dimensão do duplo, que encontramos em vários trechos da narrativa. O duplo, característica que subdivide, por exemplo, um ser em dois, ou um aspecto em dois, é ponto marcante do gênero fantástico em obras como Aura, que é narrada em segunda pessoa, inserindo assim o leitor nos acontecimentos sobrenaturais da obra, deixando-o ainda mais perplexo, por experimentar a sensação de vivência dos fatos narrados, utilizando como artifício prioritário a palavra você, para que o leitor entre em cena, juntamente com a narrativa.

            O gênero fantástico é, pois, o que traz ao leitor a possibilidade de entrar em uma fantasia, cuja ele acredita ser real, pois como vimos, o fantástico puro se insere em uma categoria literária, a qual não nos dá, de forma racional, explicações dos acontecimentos que se fazem presente dentro da história, mas nos leva a crer, no momento da leitura e através de alguns elementos, no que a narrativa transmite, ao contrário do realismo mágico, por exemplo, que faz com que a narrativa não apresente elementos que insiram o leitor em um mundo de emoção, tensão e hesitação..

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