INTRODUÇÃO

O hedonismo que impera na sociedade contemporânea transformou o homem no ser eminentemente sensorial. Mesmo vivendo nos "subterrâneos" das grandes cidades, esse ser sensorial é regido pela lógica cruel e dominadora do consumismo. Seus sentidos buscam o conforto e o prazer, mas cegamente, estão embotados e suas consciências não conseguem distinguir a liberdade do nada ter da escravidão do tudo poder. Nietzsche afirmava que o homem moderno preferia "o nada ao nada querer". Ou seja, em vez da busca da negação de si próprio, da fuga do hedonismo desenfreado, dessa busca do prazer como finalidade última, prefere a destruição do já construído, mesmo que isso implique sua própria destruição. No entanto, nossas abstrações intelectuais são apreensões dos sentidos - do que ouço, vejo, cheiro, toco, experimento. Formular conceitos sem referencial sensorial parece ilógico. Pois, como posso desvincular as realidades físicas e não-físicas (metafísicas) se sou resultados da conjunção delas?
Essas questões filosófico-existenciais são articuladas constantemente nas obras de Dostoiévski. Seu desejo, como autor, sua ambição enquanto literato é proporcionar aos homens um conhecimento acerca de si mesmos através de imagens verdadeiras, isto é, daquelas que ele produziu ao rearticular de modo crítico e fictício a dramaticidade da existência, quase sempre oculta pelas máscaras do pragmatismo cotidiano. Grande intérprete da condição humana, não é difícil encontramos em suas personagens atormentadas, muito de nós mesmos, de nossas angústias e de nossas fugas. Não é atoa que ele é considerado o romancista-filósofo por excelência.
Memórias do subsolo é a obra em que tudo isto se manifesta de modo particularmente intenso. "Toda a dramaticidade e força emocional do texto, toda a introspecção verrumante de seu personagem, estão intimamente ligados à concepção central". (SCHNAIDERMAN, 2000, p. 7). Criado com traços majoritariamente negativos, o homem do subsolo tornou-se também o porta-voz do próprio autor em seus ataques ao racionalismo, à mentalidade positivista e aos princípios econômicos da época. Ele é também um critico feroz da sociedade russa.
Mikhail Bakhtin, através de seus estudos, demonstrou magistralmente como Memórias foi estruturada sobre uma confissão que se constrói na expectativa da palavra do outro. No prefácio de "Problemas da poética de Dostoiévski", Paulo Bezerra ratifica afirmando que Dostoiévski "sabe que o universo humano é construído de seres cuja característica mais marcante é a diversidade de personalidades, pontos de vistas, posições ideológicas, religiosas, anti-religiosas, nobreza, vilania, gostos, manias, taras, (...) enfim, que o ser humano é esse amalgama de vicissitudes que o tornam irredutível a definições exatas". E é essa visão realista do autor que o leva a nutrir um profundo respeito a essas vicissitudes e perceber o ser humano como unidade do diverso sobre o qual é impossível dizer algo de final e conclusivo.
Somente deste conhecedor profundo da alma humana, poderia surgir uma obra tão magistral. Só Dostoiévski, articularia seus anseios e visões com os processos de composições literárias. É da sua genialidade que procedimentos como os que analisamos e comentamos nesta pesquisa se tornaram corrente e recorrente nas construções literárias de autores modernos. Dentre elas a exploração da autoconsciência do personagem como dominante artístico da obra. O deslocamento da focalização tradicional para a mente do narrador/personagem cria possibilidades nunca antes imaginadas.
Neste trabalho, abordaremos a estrutura do enredo de Memórias do Subsolo, sua composição estrutural, depois o papel do autor/narrador e do narrador/ personagem para discutirmos em seguida os procedimentos acima apontados. Mais especificamente, a questão da autoconsciência como dominante artístico.

I.SOBRE A OBRA

Publicado em 1864, na revista literária Época, fundada por Dostoiévski e seu irmão Mikhail, Memórias do subsolo foi escrito na cabeceira de morte de sua primeira mulher, numa situação de aguda necessidade financeira.
O romance nos traz um homem desencantado, funcionário da baixa burocracia russa, que mora com o empregado Apólon num modesto apartamento no subsolo de um edifício. Angustiado e pessimista, esse homem sem nome nos revela, por sua própria voz, um absoluto desprezo pelo mundo a sua volta e, ao mesmo tempo em que escolhe a solidão, parece, em certos momentos, amargurar-se ainda mais com ela. Através dessa voz, de personagem-narrador, que ressoa à força de paradoxos, investe ferozmente contra tudo e contra todos- contra a ciência e contra a superstição, contra o progresso e contra o atraso, contra a razão e a desrazão-; mas acima de tudo, investe contra si próprio, contra a própria consciência, que se afirma e se nega a si mesmo sucessivamente.



1.1. O Subsolo

Memórias do Subsolo se divide em duas partes. A primeira, intitulada de O Subsolo, é a teorização das idéias do narrador/personagem. Ele as expõe como se estivesse dialogando com o leitor, supondo suas reações, prevendo seus comentários. O discurso é direto, dono de uma acidez cultivada em quinze anos de auto-flagelamento. É o desabafo de alguém que de tanto remoer em culpa por ser o que é, aprendeu a sentir prazer nisto.

Sou um homem doente... Um homem mau. Um homem desagradável. Creio que sofro do fígado. Aliás, não entendo níquel da minha doença e não sei, ao certo, do que estou sofrendo. Não me trato e nunca me tratei, embora respeite a medicina e os médicos. Ademais, sou supersticioso ao extremo; bem, ao menos o bastante para respeitar a medicina. (Sou suficientemente instruído para não ter nenhuma superstição, mas sou supersticioso). Não, se não quero me tratar, é apenas de raiva. Certamente não compreendeis isto. Ora, eu compreendo. (DOSTOIÉVSKI, 2000, p.15).


Assim começa a narração das memórias do "homem do subsolo", já no início, pontua o seu discurso a partir da provável réplica do outro, sobre a qual irá sempre afirmar a última palavra. Reticências, negativas, evasivas, parênteses, interrogações, exclamações, frases inacabadas, frases contraditórias, citações diretas ou indiretas, essas são algumas marcas textuais de quem parece saber que não está falando apenas consigo mesmo, de quem parece saber que é mesmo impossível falar sozinho, ainda que rejeite a idéia de escrever para um público. A propósito, Bakhtin já observara a ambigüidade inerente ao discurso do herói de Memórias do subsolo, em relação ao discurso do outro:

Como conseqüência dessa relação do ?homem do subsolo? com a consciência e o discurso do outro ? da dependência excepcional em relação a ele e, simultaneamente, da extrema hostilidade em relação a ele e da não-aceitação do seu julgamento ? a sua narração assume uma particularidade artística sumamente substancial. (BAKHTIN, 1997a, p.233).

O narrador/personagem teoriza sobre sua consciência, sofre com a sofisticação e exigência dela. Consciência de que é ridículo e de que todos a sua volta são imbecis, deixando-o incapaz de manter uma relação social. A sua consciência resulta na inércia que lhe impede até mesmo de ser preguiçoso. É a consciência da covardia. Ele sabe o que está errado: ele, os outros, o mundo, o sistema; mas é incapaz de lutar por mudança pois sabe que é inútil, conhece a sua insignificância e a sua incapacidade de mudar.

Não vos parece que eu, agora, me arrependo de algo perante vós, que vos peço perdão?... Estou certo de que é esta a vossa impressão... Pois asseguro-vos que me é indiferente o fato de que assim vos pareça... Não consegui chegar a nada, nem mesmo tornar-me mau: nem bom nem canalha nem honrado nem herói nem inseto. Agora, vou vivendo os meus dias em meu canto, incitando-me a mim mesmo com o consolo raivoso ? que para nada serve ? de que um homem inteligente não pode, a sério, tornar-se algo, e de que somente os imbecis o conseguem. (DOSTOIÉVSKI, 2000, p. 17).

Mas isto não o impossibilita de falar, ataca o positivismo, repudia a idéia da submissão humana às leis da natureza e a lógica da razão, a ponto de romper com elas, mesmo que isto resulte em sua degradação humana. O protagonista é um homem que começa narrar seus pensamentos e vivências em meio a conflitos decorrentes da própria captação de suas motivações - tratá-los de acordo com as convenções ou não. Optando por retratá-los de forma crua, a razão é colocada em xeque e o homem racional, que segundo a modernidade tem a razão para escolher o que é melhor para si, também é desnudo, restando somente aquele que nada sabe sobre suas motivações mais subterrâneas.

A razão, meus senhores, é coisa boa, não há dúvida, mas razão é só razão e satisfaz apenas a capacidade racional do homem, enquanto o ato de querer constitui a manifestação de toda a vida [...] E embora a nossa vida, nessa manifestação, resulte muitas vezes em algo bem ignóbil, é sempre a vida e não apenas a extração de uma raiz quadrada. [...] a natureza humana age em sua totalidade, com tudo o que nela existe de consciente e inconsciente, e, embora minta, continua vivendo. (DOSTOIÉVSKI, 2000, p. 41)

O homem tal como ele é, e as motivações de sua vontade, no confronto com a civilização, é um jogo de forças antagônicas na qual não é isento de intensos conflitos; nesse sentido, o narrador-protagonista é irônico com a moral e a ética do homem civilizado.

[?] quereis libertar o homem de seus antigos hábitos e corrigir-lhe a vontade segundo os dados da ciência e conforme o senso comum. Mas como sabeis que o homem pode e deve ser corrigido? De onde concluístes, que a vontade do homem deve necessariamente ser educada? Em uma palavra: por que pensais que essa educação lhe é realmente útil?
[?] Ora, senhores, "duas vezes dois igual a quatro" é um princípio de morte e não um princípio de vida. [?] É verdade que o homem não se ocupa senão da procura desses "duas vezes dois igual a quatro"; atravessa oceanos, arrisca a vida em sua perseguição; mas quanto a encontrá-los, quanto a apanhá-los realmente - juro-vos que tem medo, pois ele se dá conta de que, uma vez encontrados, nada mais tem a fazer. [?] Tenta aproximar-se do fim, mas, tão logo o atinge, não está mais satisfeito; e isso é verdadeiramente bem cômico. Em uma palavra: o homem é construído de uma maneira muito cômica, e tudo isso faz o efeito de um trocadilho. Mas, seja como for. "duas vezes dois igual a quatro" é uma coisa bem insuportável. (DOSTOIÉVSKI, 2000, p. ).

Quer o homem corrigir a sua vontade com a ciência, mas como sabe que a educação lhe é realmente útil? - Talvez seja essa a inquietude que atravessa a obra, questionamento que ainda chega com todo ímpeto aos nossos tempos onde o homem está quase extinto, restando somente uma peça de engrenagem.

[...] toda a obra humana realmente consiste apenas em que o homem, a cada momento, demonstre a si mesmo que é um homem e não uma tecla! [...] como é que se pode ter, no caso, sua própria vontade, quando se trata da tabela e da aritmética, quando está em movimento apenas o dois e dois são quatro? [...] Quereis, por exemplo, desacostumar uma pessoa dos seus hábitos e corrigir-lhe a vontade, de acordo com as exigências da ciência e do bom senso. (DOSTOIÉVSKI, 2000, p. 45).

O autor das memórias (o personagem) reconhece, com o ar da mais sincera confissão, que todo homem decente de sua época é e deve ser covarde e escravo. Apesar de bem inserido no contexto de uma cidade russa de grande porte, ele se sente só e se tortura com o seguinte pensamento: "Eu sou sozinho, e eles são todos". Aliada à solidão e à devassidão, o que mais incomoda o autor, entretanto, é o fato de nem ser notado, de ser costumeiramente tratado como uma mosca inofensiva.
O Senhor, Vocês, Vós são algumas das palavras com que o narrador se volta ao leitor de sua escrita, não para criar laços, buscar afinidades, mas para hostilizá-lo, ou ainda dispensá-lo. Afinal estamos diante de alguém que, embora escrevesse como se dirigisse a um público, escreve na verdade só para si mesmo. Nas palavras do narrador, sua escrita, trata-se "de forma, unicamente de forma vazia", tão certo está de que nunca haverá de ter leitores.
Desde o início já evidencia sua maneira doentia de viver, mas não aparenta muito bem isso. Com esta e outras considerações sobre a razão de sua escrita, encerra-se a primeira parte de um singular relato, drama encenado na presumida ausência do público, ficando para a segunda parte a revelação, quando deveras narra episódios da vida cotidiana que evidenciam seu modo orgulhoso e vaidoso de ser.


1.2. A propósito da neve derretida (ou molhada)

As memórias só aparecem na segunda parte. Somente nela é que se tem uma história propriamente dita, com seqüências, ação e personagens. Aqui o narrador torna-se mais personagem. São episódios seqüenciados de um período da sua vida, que de tanto sofrer remoendo-os, ele sente a necessidade de despejá-los no papel, numa tentativa de aliviar-se. Surgem dados concretos do personagem/ narrador, da sua infância, da sua rotina. Sua vida é traduzida na prática, mostra as conseqüências, os empecilhos que surgem na vida de alguém com tamanha consciência.
Alguns episódios chegam a ser pitorescos, senão patéticos. Até mesmo a sua tentativa de brigar numa taverna acaba frustrada. Fica constatado que ele não é capaz sequer de ser jogado por uma janela, embora tenha tentado em vão obstruir a passagem dos cavalheiros que ali jogava bilhar.
Na seqüência da narrativa, Talvez, por não possuir poderes para modificar as grandes coisas, ele cuida de tentar mudar simples fatos cotidianos como o de ceder passagem a uma outra pessoa na rua. O desespero, do homem do subsolo, leva-o a colocar todo o seu empenho na premeditação de um encontrão com um oficial que passeia habitualmente misturado à massa de transeuntes de uma famosa avenida da cidade. Ele teoriza sobre isso enquanto conta como foi seu "duelo" não-declarado com um oficial, planeja com detalhes como deverá ser o encontrão deles, o grau de intensidade, suas vestimentas na ocasião; tudo isso para não dar passagem ao oficial na calçada.
Num acesso de histeria, ele gasta considerável parte do seu tempo e do seu ordenado na preparação do choque com o oficial tão somente para se fazer notar e ser convencido de que ainda é um ser humano. Ao final o choque acontece e o triunfo resplandece, fato que lhe causa tal estado de arrebatamento que volta para casa cantando árias italianas, seu triunfo passa despercebido pela sociedade da época uma vez que não é publicamente notado por ninguém.

De chofre, a três passos do meu inimigo, inesperadamente me decidi, franzi o sobrolho e... chocamo-nos com força, ombro a ombro! Não cedi nem um vierchók e passei por ele, absolutamente de igual para igual! Ele não se voltou sequer e fingiu não ter visto nada; mas apenas fingiu estou certo. Guardo esta convicção até hoje! [...] O que importava era que eu atingira o objetivo, mantivera a dignidade, não cedera nem um passo, e publicamente, me colocara ao nível dele, do ponto de vista social. Voltei para casa vingado de tudo. Meu estado era de arrebatamento. (DOSTOIÉVSKI, 2000, p. 70).

Marshall Berman (, ao analisar As Memórias no aspecto temporal, viu neste ponto do romance, geralmente negligenciado, uma das reviravoltas mais marcantes que a modernidade trouxe para a Rússia do século XIX: "a insurreição do inferior social". Um homem da camada mais baixa, como é o homem do subsolo, ao andar na calçada, teria, segundo os costumes da Rússia czarista, que dar passagem ao homem de classe social mais elevada que a sua. Contudo, os tempos mudaram, por volta de 1860. O romance de Dostoiévski conta justamente o enfrentamento que o homem do subsolo quer fazer com esse ser superior. Ele não quer dar mais passagem, não sente mais nessa obrigação. Toda a aflição que esse homem do subsolo passa, o plano de enfrentar um superior ao não lhe dar passagem na calçada, o sofrimento que isso causa, tudo isso é descrito no romance, que captou a essência da mudança pela qual a Rússia passava em meados do século XIX.
Em outra passagem, ele se submete a todo tipo de humilhação diante de colegas de infância. A cada programa que os amigos combinam, ele impõe sua presença, a despeito do visível desprezo de todos e do desconforto por tê-lo ao seu lado. Durante um determinado jantar, a que fez questão de ir, os "amigos" aproveitam uma distração sua e fogem para um bordel. Ele, enfurecido, vai atrás e ao chegar, eles já haviam partido. Sua expressão transtornada causa estranheza nos presentes: "vi-me casualmente no espelho. Meu rosto transtornado me pareceu repulsivo. (...) ?Não importa? ? pensei ? ?estou contente. Sim, estou contente de lhes provocar uma sensação de asco, isso me causa prazer?".
É nesse bordel que ele conhecerá a jovem prostituta Lisa. Os dois encenarão o ponto alto dessa segunda parte do romance. De uma conversa que se inicia mórbida, sobre a morte e as conseqüências que a profissão de Lisa terão sobre a vida dela e sua juventude, e que é refutada pela jovem, por considerar os argumentos dele moralistas e paternalistas, o narrador muda de tom, adotando argumentos mais sentimentalistas, defendendo a família e as alegrias da maternidade. Novamente, ela percebe e questiona o motivo dele falar "como um livro".
Num monólogo, ele faz uma apaixonada defesa do amor. Ao perceber que seu poder de eloqüência a absorve, o narrador se sente realizado, superior. Seu discurso causa tamanho impacto na prostituta que ela acaba seduzida e enredada pela paixão. Ele se despede deixando seu endereço. Mas quando Lisa, posteriormente, o procura, ele assume outra postura, reagindo com fúria e humilhando-a. Numa reação contrária ao que ele esperava, ela se sente apiedada da condição em que ele se encontra e o consola, deixando-o ainda mais desolado. Quinze anos depois, quando relembra e escreve suas memórias, conscientiza-se de que a heroína era a Lisa e ele apenas um anti-herói.
Mas não pensem que ele relembra isto por arrependimento. Não, ele se tortura por gostar de rir de si mesmo, por sentir-se humilhado - "o que é melhor, uma felicidade barata ou um sofrimento elevado?" (DOSTOIÉVSKI, 2000, p. 145). Assim, admira-se por ser o que é, por ter escolhido o caminho que escolheu, por mais tortuoso e amedrontador que ele seja.

Ah! Senhores! É possível que eu me considere extremamente inteligente pela única razão de que, em toda a minha vida, nunca pude começar nem acabar fosse o que fosse. Não passo pois de um tagarela, de um tagarela inofensivo, de um impertinente como nós todos. Mas que fazer, senhores, se o destino de todo homem inteligente é tagarelar, isto é, derramar água em uma peneira? (DOSTOIÉVSKI, 2000, p. 145)

Fica refugiado em seu modo de narrar, numa espécie de esconderijo de si, ao mesmo tempo que mostra, camufladamente, todo um humor mordaz e uma crueldade para consigo e com o próximo. Nas passagens abaixo, o "homem do subsolo", órfão, anônimo, "natimorto" escritor de suas memórias, refere-se à sua escrita:

[...] e eu escrevo unicamente para mim, e declaro de uma vez por todas que, embora escreva como se me dirigisse a leitores, faço-o apenas por exibição, pois assim me é mais fácil escrever. Trata-se de forma, unicamente de forma vazia, e eu nunca hei de ter leitores. Já declarei isto uma vez [...] (DOSTOIÉVSKI, 2000, p.53).

Fica ainda uma pergunta: para que, em suma, quero eu escrever? Se não é para um público, não se poderia recordar tudo mentalmente, sem lançar mão do papel? Assim é; mas, por escrito, isto sairá, de certo, mais solene. O papel tem algo que intimida, haverá mais severidade comigo mesmo, o estilo há de lucrar. Além disso, é possível que as anotações me tragam realmente um alívio. (DOSTOIÉVSKI, 2000, p.54).

Deixai-nos sozinhos, sem um livro, e imediatamente ficaremos confusos, vamos perder-nos; não saberemos a quem aderir, a quem nos ater, o que amar e o que odiar, o que respeitar e o que desprezar. Para nós é pesado, até, ser gente, gente com corpo e sangue autênticos, próprios; temos vergonha disso, consideramos tal fato um opróbrio e procuramos ser uns homens gerais que nunca existiram. Somos natimortos, já que não nascemos de pais vivos, e isto nos degrada cada vez mais. Em breve, inventaremos algum modo de nascer de uma idéia. Mas chega; não quero mais escrever "do Subsolo [...] (DOSTOIÉVSKI, 2000, p.146-147, grifo do autor).

Toda a obra de Dostoiévski, principalmente em Memórias do subsolo, o que se destaca é o intenso niilismo com que os elementos que compõem a modernidade são tratados.  Dostoiévski é um anti-iluminista, porque não acredita na razão como proposta de felicidade humana. A felicidade, como a encontramos em vários de seus romances, é um estágio ilusório, um momento de falta de reflexão, um estágio anterior a degradação. Somente o pessimismo, na avaliação de Dostoiévski, é que pode levar ao esclarecimento (o que significa, basicamente, ao sofrimento). "Para o leitor atento (...) o homem do subsolo oferece mais do que a negação sombria do projeto do Iluminismo. A principal contradição, aquela que preocupa o homem do subsolo e é a fonte de sua dialética impiedosa e paralisante, diz respeito à liberdade". (HIBBS, 2003 p.183).

Que faremos então desses milhões de fatos que atestam os homens, tendo embora perfeita consciência do seu interesse, o relegam a segundo plano e enveredam por um caminho totalmente diferente, cheio de riscos de acasos? Não são, entretanto, forçados a isso; mas parece que querem precisamente evitar a estrada que se lhes indicava, para traçar livremente, caprichosamente, uma outra, cheia de dificuldades, absurda, mal reconhecível, obscura. É que essa liberdade possui a seus olhos mais atrativos que seus próprios interesses? O interesse! Que é o interesse? Vós vos empenhais em me definir com toda a exatidão em que consiste o interesse do homem? Que direis vós se um belo dia se vem a descobrir que o interesse humano, em certos casos, pode ou mesmo deve consistir em desejar não uma vantagem, mas um mal? Se é assim, se esse caso se pode apresentar, então tudo desmorona. Que pensais disso? Tal caso pode se apresentar? (DOSTOIÉVSKI, 2000 )
Com licença! Vamos nos explicar; não é com jogos de palavras que se pode esclarecer a questão. O que faz a singularidade dessa coisa, desse interesse, é que ele destrói todas as nossas classificações e altera todos os sistemas edificados pelos amigos do gênero humano para a felicidade do homem. Em uma palavra, é um embaraço, um obstáculo. Mas, antes de vos apontar essa coisa, quero me comprometer pessoalmente, e afirmo então com altivez que todos esses belos sistemas, que todas essas teorias que pretendem explicar à humanidade em que que consistem seus interesses normais, a fim de que ela se torno logo virtuosa e nobre no seu esforço para atingir ditos interesses, declaro que tudo isso não passa de logística. Sim, pura logística! (DOSTOIÉVSKI, 2000)
Bakhtin, porém, adverte-nos de que esses discursos, tal como ganham corpo no romance, não são genuínos. O que "ouvimos" aqui é a ideologia do autor. Bakhtin afirma que a relação entre o leitor e as linguagens do romance é indireta. Consequentemente, todo o enunciado de certa personagem que nos surja revestido de uma certa autoridade (seja sob a forma de autoritarismo, de tradicionalismo, ou de oficialismo) é passível de ser não só contestado, como ainda "travestido" e "parodiado". É no seio dessa contestação que a voz da consciência interior do indivíduo luta por se impor. É a descrição da própria inconstância de um sujeito que não consegue afirmar seu próprio ser.


II.SOBRE O(S) AUTOR(ES)

Numa obra literária, não devemos confundir o autor empírico, que é aquele que "possui existência como ser biológico e jurídico-social", com o autor textual, aquele que "existe no âmbito de um determinado texto literário como uma entidade ficcional que tem a função de enunciador do texto e que só é cognoscível e caracterizável pelos leitores deste mesmo texto [...] e que se manifesta sob a forma e função de um eu oculto ou explicitamente presente e atuante no enunciado". Também cabe não associá-lo ao narrador, a quem é atribuída a função de uma voz fundamental no texto narrativo e é, também, o agente de um processo de focalização que afeta a história narrada. (AGUIAR E SILVA, 1976, p. 227-228).
Sobre as Memórias de Dostoiévski, Todorov assinala a composição dramática do texto, concebido não apenas como um confronto de diversas concepções filosóficas, éticas e literárias ? o que sem dúvida constitui também um dos aspectos centrais da obra ? mas "percebido sobretudo em sua forma literária, no meio expressivo através do qual essas idéias são expostas e debatidas, como uma encenação em que se dispõe de vários papéis, incorporados pelos personagens em polêmicas mais ou menos explícitas". (TODOROV, 1980, p.135).
Tributária das análises de Bakhtin a respeito da poética de Dostoiévski, a ênfase na forma teatral das vozes em interação repousa sobres as noções de polifonia e dialogismo, reelaboradas e desenvolvidas por Todorov, como um "drama da fala". Leitura que contorna, mas não enfrenta, o problema posto pela advertência de Dostoiévski ao leitor das Memórias, antes de iniciar o relato.
Tanto o autor como o texto destas memórias são, naturalmente, imaginários. Todavia, pessoas como o seu autor não só podem, mas devem até existir em nossa sociedade, desde que consideremos as circunstâncias em que, de um modo geral, ela se formou. O que pretendi foi apresentar ao público, de modo mais evidente que o habitual, um dos caracteres de um tempo ainda recente. Trata-se de um dos representantes da geração que vive os seus dias derradeiros (DOSTOIÉVSKI, 2000, p. 14)

Por que devemos confiar na separação estabelecida pelo autor entre o real e o fictício? De fato, como discernir esse "eu" que escreve nas margens do texto, em nota explicativa, assumindo a paternidade de umas poucas palavras, do narrador "anônimo" que relata e comenta suas memórias? Em outras palavras, como separar Dostoiévski do "homem do subsolo", se é o próprio escritor quem nos avisa que "(...) pessoas como o seu autor não só podem, mas devem até existir em nossa sociedade, desde que consideremos as circunstâncias em que, de um modo geral, ela se formou"? (DOSTOIÉVSKI, 2000, p.14).
Sabendo da complexidade relacionada ao problema da autoria, vamos tratar aqui apenas do estritamente indissociável do tema central em pauta. Comecemos então com o problema da assinatura. O nome próprio de um autor, escreve Foucault em conhecido texto, não funciona exatamente como os outros, e isso pelas razões, em síntese, destacadas: um nome de autor exerce com relação aos demais discursos um certo papel;

serve para caracterizar um certo modo de ser do discurso" (ele indica que o discurso "[...] deve ser recebido de certa maneira e que deve, numa determinada cultura, receber um certo estatuto [...]"); e finalmente "[...] o nome de autor não transita, como o nome próprio, do interior de um discurso para o indivíduo real e exterior que o produziu. (FOUCAULT, 1992, p.45).

Analisando a função autor, Foucault reconhece quatro aspectos que permitem caracterizá-la, das quais ressaltamos a terceira, assim descrita:

Ela não se forma espontaneamente como a atribuição de um discurso a um indivíduo. É antes o resultado de uma operação complexa que constrói um certo ser racional a que chamamos autor. Provavelmente, tenta-se dar a este ser racional um estatuto realista: seria no indivíduo uma instância "profunda", um poder "criador", um "projeto", o lugar originário da escrita. Mas, de fato, o que no indivíduo é designado como autor (ou o que faz de um indivíduo um autor) é apenas a projeção, em termos mais ou menos psicologizantes, do tratamento a que submetemos os textos, as aproximações que operamos, os traços que estabelecemos como pertinentes, as continuidades que admitimos ou as exclusões que efetuamos. Todas as operações variam consoante as épocas e os tipos de discurso. (FOUCAULT, 1992, p.45).

O autor é nessa passagem percebido como o efeito de uma complexa construção histórica e social, cujas operações são comumente apagadas. Entre todas, interessa-nos uma das mais consolidadas: o autor como o lugar originário da escrita e, em conseqüência, da verdade. Em perspectiva inversa à que parte da noção de sujeito como origem da verdade, Foucault afirma ser tão equivocado procurar o autor no escritor real quanto no narrador/locutor de ficção. Isso porque é a distância entre o sujeito empírico e o sujeito do discurso ? a cisão entre eles ? a condição para que a "função autor" se efetue. Em outros termos, para que seja eficaz, a "função autor" necessita de ser preservada em sua dimensão ficcional.
Dostoiévski criou o romance polifônico. Neste tipo de romance especial a voz da personagem, "possui independência excepcional na estrutura da obra, e como se soasse ao lado da palavra do autor, coadunando-se de modo especial com ela e com as vozes plenivalentes de outros heróis" Uma das características do que Bakhtin chama de polifonia dos personagens de Dostoievski é a predominância de mais de um discurso num mesmo personagem, que tem idéias muitas vezes distintas do próprio autor. É difícil distinguir quem são os verdadeiros responsáveis pelas diversas idéias e teorias encontradas nas suas criações literárias, tendo em vista que para uns pesquisadores, a voz de Dostoievski se confunde com a voz desses e daqueles heróis; para outros, é uma síntese peculiar de todas essas vozes ideológicas; para terceiros, aquela é simplesmente abafada por estas. Ou seja, a do autor é sufocada pelas vozes dos personagens.
Neste ponto, a própria construção do romance polifônico em Dostoievski sugere uma tentativa de superação do monólogo, da idéia ou verdade última à qual tudo deve convergir no romance monológico convencional. O narrador e o autor, não são mais capazes de responder com precisão à personagem sobre quem ela é: "à consciência todo-absorvente da personagem o autor pode contrapor apenas um mundo objetivo ? o mundo de outras consciências isônomas a ela." (BAKHTIN, 1997, p. 49).

O Homem Moderno,confia em si mesmo e nas ciências, que na realidade são fantasias secundarias e nada dizem sobre o homem, mas apenas da lhe a sensação de felicidade, [...] o homem contemporâneo e levado pela busca obcecada por resultados, sem ao menos refletir sobre s mesmos" (DOSTOIÉVSKI, 2000, p.28).

Dostoiévski, sempre retrata o homem no limiar da última decisão, no momento de crise e reviravolta incompleta ? e não-predeterminada ? de sua alma. Esse grande diálogo é artisticamente organizado como o todo não-fechado da própria vida situada no limiar. Enfim, através desse procedimento artístico, a consciência do criador do romance polifônico está constantemente presente em todo esse romance. Ela sente ao seu lado e diante de si as consciências eqüipolentes dos outros, tão infinitas e inconclusas quanto ela mesma. Ela reflete e recria não um mundo de objetos mas precisamente essas consciências dos outros com os seus mundos, recriando-as na sua autêntica inconclusibilidade - pois a essência delas reside aí - e dialogicamente, sem objetificá-las.


III.A AUTOCONSCIÊNCIA ENQUANTO DOMINANTE ARTÍSTICO


Um, dentre vários conceitos de focalização, pode ser encontrado no Dicionário de Teoria da Narrativa como

a concretização, no plano do enunciado narrativo, de diversas possibilidades de ativação da perspectiva narrativa, pode ser definida como a representação da informação diegética que se encontra ao alcance de um determinado campo de consciência, seja de um narrador homodiegético ou de um narrador heterodiegético. Condiciona a quantidade de informação veiculada (eventos, personagens, espaços, etc.), atinge a sua qualidade, por traduzir uma certa posição afetiva, ideológica, moral e ética em relação a essa informação. É portanto, um procedimento crucial das estratégias de representação que regem a configuração discursiva da história. (REIS & LOPES, 2004, p.246).

Em sua obra O ponto de vista na ficção, para desenvolver a classificação dos oito tipos de focalização ? editorial omniscience, neutral omniscience, "I" as witness, "I" as protagonist, multiple selective omniscience, selective omniscience, the dramatic mode e the câmera ?, Friedman (2002) partiu das seguintes questões: Quem conta a história? De que posição ou ângulo? Que canais utiliza para comunicar? A que distância ele coloca o leitor? No entanto, tal procedimento só pode ser facilmente aplicável numa obra literária tradicional.
Em seu reconhecido Problemas da poética de Dostoievski, Mikhail Bakhtin enfatiza que, em Dostoiévski, há uma significativa mudança de enfoque em relação ao que poderíamos denominar de "romance homofônico tradicional". Assim, no epicentro da teoria bakthiniana está a construção polifônica dos romances dostoievskianos. Segundo esta teoria, a voz do herói criado por Dostoiévski "possui independência excepcional na estrutura da obra, é como se soasse ao lado da palavra do autor, coadunando-se de modo especial com ela e com as vozes plenivalentes de outros heróis" (BAKHTIN, 1997, p. 05).
A personagem não interessa a Dostoiévski como um fenômeno da realidade, dotado de traços típico-sociais e caracterológico-individuais definidos e rígidos, como imagem determinada, formada de traços monossignificativos e objetivos que, no seu conjunto, respondem à pergunta: "quem é ele?"

A personagem interessa a Dostoiévski enquanto ponto de vista específico sobre o mundo e sobre si mesma, enquanto posição racional e valorativa do homem em relação a si mesmo e à realidade circundante. Para Dostoiévski não importa o que a sua personagem é no mundo mas, acima de tudo, o que o mundo é para a personagem e o que ela é para si mesma. (BAKHTIN, 1997, p.46)

Desta forma, Dostoievski desloca o centro de enfoque do seu trabalho artístico ? o dominante ? que, segundo Jakobson, é quem regulamenta, determina e transforma os outros componentes, além de garantir a integridade da estrutura, tornando específico o trabalho. Esse deslocamento é feito para a autoconsciência da personagem.

O autor não reserva para si, isto é, não mantém em sua ótica pessoal nenhuma definição essencial, nenhum indício, nenhum traço da personagem: ele introduz tudo no campo de visão da própria personagem, lança-lhe tudo no cadinho da autoconsciência. Esta autoconsciência pura é o que fica in totum no próprio campo de visão do autor como objeto de visão e representação. (BAKHTIN, 1997, p.47).

Os traços objetivos, que se constituem no sólido perfil sócio-caracterológico da personagem, são introduzidos no campo de visão da própria personagem, tornando-se objeto de sua angustiante autoconsciência. "Nós não vemos quem a personagem é, mas de que modo ela toma consciência de si mesma, a nossa visão artística já não se acha diante da realidade da personagem, mas diante da função pura de tomada de consciência dessa realidade pela própria personagem" (BAKHTIN, 1997, p.48).

Sou mal. Nada tenho de simpático. Julgo estar doente do fígado, embora não o perceba nem saiba ao certo onde reside meu mal. Não me trato, e nunca me tratei, por muito que considere a medicina e os médicos, pois sou altamente supersticioso, pelo menos o bastante para ter fé na medicina. (DOSTOIÉVSKI, 2000, p.15 )



Dostoiévski transferiu para o campo de visão da personagem o autor e o narrador com a totalidade dos seus pontos de vista e descrições, características e definições de herói feitas por eles, transformando em matéria da autoconsciência da personagem essa realidade integral acabada.

Aquilo que o autor executa é agora executado pela personagem, que focaliza a si mesma de todos os pontos de vista possíveis; quanto ao autor, já não focaliza a realidade da personagem, mas a sua autoconsciência enquanto realidade de segunda ordem. O dominante de toda a visão e construção artística deslocou-se e todo o mundo adquiriu um novo aspecto. (BAKHTIN, 1997, p.48).

A maior dificuldade desse processo é manter a verossimilhança da personagem, pois além de sua própria realidade, "o mundo exterior que a rodeia e os costumes, inserem-se no processo de autoconsciência", transferindo-se do "campo de visão do autor para o campo de visão da personagem". Ela só se concretiza, segundo Bakhtin, na
verossimilhança do seu discurso interior sobre si mesma em toda a sua pureza, mas para ouvi-lo e mostrá-lo, para inseri-lo no campo de visão de outra criatura torna-se necessário violar as leis desse campo de visão, pois um campo normal de visão tem capacidade para absorver a imagem objetiva de outra criatura mas não outro campo de visão em seu todo. Tem-se de procurar para o autor algum ponto fantástico situado fora do campo de visão. (BAKHTIN, 1997, p.48)

A autoconsciência enquanto dominante artístico na construção do modelo do herói pressupõe, portanto, uma nova posição radical do autor em relação ao indivíduo representado. É necessário a descoberta daquele novo aspecto integral do homem ou do "homem no homem", que só é possível se o homem for enfocado de uma posição nova e integral do autor.
Para Dostoiévski o homem não é uma magnitude final e definida, que possa servir de base à construção de qualquer cálculo; o homem é livre e por isto pode violar quaisquer leis que lhe são impostas. A vida autêntica do indivíduo só é acessível a um enfoque dialógico, diante do qual ele responde por si mesmo e se revela livremente.
A nova posição artística de Dostoiévski. em relação ao herói no romance polifônico é uma posição dialógica seriamente aplicada e concretizada até o fim, que afirma a autonomia, a liberdade interna, a falta de acabamento e de solução do herói.

[...] senti vergonha todo o tempo em que escrevi esta novela: é que isto não é mais literatura, mas um castigo correcional. Um romance precisa de herói e, no meu caso, foram acumulados intencionalmente todos os traços de um anti-herói, e, principalmente, tudo isto dará uma impressão extremamente desagradável, porque todos nós estávamos desacostumados da vida, todos capengamos, uns mais, outros menos. (DOSTOIÉVSKI, 2000, p. 145, grifo do autor)



CONSIDERAÇÕES FINAIS

O narrador deste livro é, como se vê, um paradoxo ambulante, a quem resta a infelicidade e eternos dilemas insolúveis. A obra, um verdadeiro jogo psicológico, onde o leitor se reconhecerá enquanto alguém que já passou ou passa por conflitos muito próximos aos conteúdos apresentados. Nela, o escritor materializa sua visão abissal dos conflitos morais, psicológicos e sociais, que se interpenetram caoticamente de modo a destacar, como única medida do mundo, o desejo humano de salvação diante da morte e da desrazão
Muito antes de Freud estampar seu legado á humanidade através de seus casos literários e "achados psíquicos", Dostoiévski já nos mostrava, implicitamente, diversas qualidades presentes nas subjetividades humanas inconscientes. Memórias do subsolo é uma apologia à vontade, à idiossincrasia humana, aos desejos incomuns, ao homem que duvida, às exceções, é uma reivindicação aos caprichos e às vaidades humanas, "pois bem, meus senhores, não será melhor dar um pontapé em toda esta sensatez unicamente a fim de que todos esses logaritmos vão para o diabo, e para que possamos mais uma vez viver de acordo com a nossa estúpida vontade?".
Pondé (2003), afirma que o anônimo e irascível narrador dessa novela, que do fundo de sua tocaia investe contra "os palácios de cristal", as quimeras construídas pelo "homem de ação", seria "simultaneamente um instantâneo do estado de agonia do homem na natureza e uma abertura para as visitações do transcendente".
Em sua aguda sensibilidade, Dostoievski conseguiu perceber e transpor para sua obra essas nuances sociais e as mudanças radicais a que a sociedade de São Petersburgo, como toda a Rússia, estavam passando. As transformações da modernidade que se concretizariam com o advento do novo século foram antecipadas pela sua genialidade.
E foi justamente essa capacidade genial de articular, construir, desenvolver personagens magistrais que se tornaram arquétipos universais, que o autor se tornou alvo de vários estudos, dentre os quais aquele a que nos referimos nesta pesquisa ? o trabalho de Mikhail Bakhtin. As perspicazes observações e inéditas conclusões dos estudos bakhtinianos também referenciaram inúmeras pesquisas e interesses pela Literatura Russa. O caráter de narrar desenvolvido por Dostoievski, bem como o próprio romance polifônico em detrimento do romance monológico europeu, em que prevalece a idéia derivada do autor (e que vigorava na Rússia do século XIX), são apontados por Bakhtin, como um marco significativo na literatura contemporânea.
O segundo capítulo, da tese a que nos referi no início, revela uma importante exploração de procedimentos, até então inovadores na literatura, desenvolvidos por Dostoievski em suas obras e que futuramente seriam imitados exaustivamente. Dostoiévski, em suas personagens, brinca com as várias perspectivas, com essas múltiplas vozes das quais, nenhuma tem a ?palavra final?, é a dialogicidade e a polifonia, características que, ao que parece, Dostoiévski foi pioneiro.
Na obra Memórias do subsolo, percebe-se um constante movimento dialético sem síntese. De uma afirmação segue sua própria negação. Aquilo que se dá a conhecer ao leitor, as vozes que se fazem ouvir no romance, são representações construídas por um outro discurso. Que o verdadeiro objeto de representação no texto não é tanto o mundo, mas o próprio falar do mundo capturado pelo autor através da autoconsciência da personagem.
Nesse artifício, foi que nosso olhar se deteve: sobre o deslocamento do dominante artístico do tradicional ato de narrar para o surpreendente acesso à autoconsciência da personagem. Ao inovar no processo narrativo, novas nuances psicológicas, transcrições de monólogos autodestrutivos, desconstruindo qualquer ilusão de reconciliação do homem com a sociedade e com a natureza, como acontece com homem do subsolo, puderam ser expostos literariamente.
Enfim, a partir desta obra, foram gerados uma profusão de personagens "subterrâneas" que ruminam sua inadaptação visceral ao mundo. Aquela subjetividade agressiva e torturada do narrador-personagem, o seu discurso alucinado, sua veemência desordenada, o fluxo contínuo de sua fala, que parece estar sempre transbordando, pode ser ouvido por trás da obra de muitos escritores da modernidade.
Há referências evidentes a "Memórias do Subsolo" na forma alegórica do conto "A Construção" e em "A Metamorfose", de Franz Kafka, na personagem da peça "Dias Felizes", de Samuel Beckett - que passa o tempo todo enterrada em um buraco, no diálogo sem interlocutor de "A Queda", de Albert Camus, e no monólogo existencial de "A Paixão Segundo G.H.", de Clarice Lispector. Esses autores e obras, por si só, dão uma idéia do impacto de Dostoiévski sobre diferentes momentos da literatura do século 20. Mas "Memórias do Subsolo" teve importância, acima de tudo, no interior da própria produção dostoievskiana, projetando-se sobre seus quatro romances de maturidade: "Crime e Castigo", "O Idiota", "Os Demônios" e "Os Irmãos Karamázov.


IV.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoievski. Tradução de Paulo Bezerra. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Cia. das Letras, 1995.
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Memórias do Subsolo. São Paulo: Ed. 34, 2000.
FOUCAULT, Michael. O que é um autor? Lisboa: Passagens, 1992.  
HIBBS, Thomas S. Memórias do Subsolo: niilismo e Matrix. In Matrix: bem-vindo ao deserto do real. São Paulo: Madras, 2003.
PONDÉ, Luiz Felipe. Crítica e Profecia: a filosofia da religião em Dostoiévski. São Paulo: Ed. 34, 2003.
AGUIAR E SILVA, Vitor Manuel de. Teoria da Literatura. São Paulo:Martins Fontes, 1976.
FRIEDMAN, Norman. O ponto de vista na ficção: o desenvolvimento de um conceito crítico. Revista USP, São Paulo, n.53, p.166-182, março/maio, 2002. Disponível em http://www.usp.br/revistausp/n53/friedman.html. Acesso em 12 ago. 2009.
TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 1980.
REIS, Carlos & LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de Teoria da Narrativa. São Paulo: Atica, 1988.