A Atemporalidade Machadiana em "Um Apólogo"


Rafael Menezes da Silva

INTRODUÇÃO

O marco da sociedade do século XIX está no abuso da hierarquia em todos os âmbitos sociais. Este século foi marcado por várias revoluções para que se conseguisse a implantação da república no Brasil, que viria a culminar no ano de 1889, com o famoso “grito de independência” às margens do Rio Ipiranga, feito por D. Pedro I.

Uma sociedade majoritariamente burguesa que dividia-se em nobres, cleros, burgueses e proletariados, em que os burgueses comandavam parte da mesma ou toda ela. Os nobres eram apenas figuras políticas que foram presenteados com títulos meramente simbólicos, possuindo essência nobre, porém prática burguesa, o clero, ainda tinha o pouco poderio que lhe restava e os proletariados ainda sofriam pressão política e trabalhavam para os burgueses para manter todas as classes citadas em seu nível social e econômico.

Contextualizando o conto em análise, inferimos que, o conto perpassa por esse período histórico pelas características das personagens, e a moral do conto:

                                               Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa.                                             (ASSIS, “Um Apólogo”. p. 73)

Este trecho expressa a diferença de classes existente neste período, a costureira seria parte dos proletariados, e a baronesa, parte da nobreza. A costureira, uma “sofredora” que trabalhava para os barões, comprovando assim, que quem mandava na sociedade eram os que tinham mais dinheiro, e os que não tinham apenas trabalhavam para eles. E isto, acontece até hoje.

             

                                                O que distingue nossa época – a época da burguesia – é ter            simplificado a oposição de classes. Cada vez mais, a sociedade inteira divide-se em dois grandes blocos inimigos, em duas grandes classes que se enfrentam diretamente: a burguesia e o proletariado. (MARX & ENGELS, 1848, p. 24)

Karl Marx e Friedrich Engels descrevem bem como era a sociedade em pleno século XIX. Esta oposição de classes citada é a diferença exorbitante que existia entre os burgueses e os proletariados. Marx, grande teórico do socialismo, sempre criticou a burguesia, e defendeu o proletariado como forma de poder para comandar toda uma nação.

Em um conto inserido neste contexto histórico, é importante ressaltar a questão atemporal. Podemos lê-lo tanto em século XIX, quanto em pleno século XXI, que senão igual, vemos parecido hoje, o que se acontecia há dois séculos em nossa sociedade.

                                               Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. (ASSIS, “Um Apólogo”. p.74)

Nesta citação, vemos o baile como as grandes festas acontecidas nos grandes palácios dos burgueses, em que só se iam pessoas da alta classe e os proletariados, como sempre, trabalhando para os mesmos. Hoje, vemos da mesma maneira, evidentemente que, com termos diferentes e com sociedades que se espelharam e ainda se espelham nas sociedades de dois séculos atrás.

DESENVOLVIMENTO

O conto em análise apresenta características peculiares de uma fábula, comprovado pelo próprio nome, apólogo, que é um gênero que expressa uma verdade moral em forma de fábula, semelhantemente a uma parábola, uma narrativa curta que trazem indiretamente um julgamento moral, e com sapiência, Fernando Pessoa (1977: 198) diz que as fronteiras destas formas literárias também são muito fluidas e não se separam com tanta facilidade íntima. O primeiro elemento que comprova o que foi dito situa-se em seu início: “Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha: (...)” (ASSIS, “Um apólogo”, p.73). O segundo elemento encontra-se nos personagens principais da narrativa, que são personificados: a agulha e a linha. Outro elemento recorrente é o fato de o enredo apresentar uma moral.

Outrossim, à respeito da estrutura, o autor faz uso de diversas figuras de linguagem como a ironia: “- Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma cousa neste mundo?” (p.73). Vemos também a onomatopeia: “... mais que o plic-plic-plic-plic da agulha do pano.” (p. 74), gradação: “... arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha (...)” (p. 74).

Os personagens principais do conto são dois: a agulha e a linha, que perpassa toda a trama, que é uma conversa entre as mesmas, os secundários são o alfinete, a baronesa, e o narrador entra com parte fundamental na história, pois ele é um dos personagens também. O narrador é personagem e intruso, pois dialoga com o leitor:

                                               Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. (p.73)

O ambiente do conto é a casa da baronesa, pois apenas os da alta classe possuíam o luxo de ter uma costureira que iria a sua casa, mostrando assim, também, a oposição de classes, em que os burgueses mandavam e os proletariados apenas obedeciam.

Quanto à sua estrutura temporal, o tempo é cronológico, pois o conto passa-se de forma linear, em uma relação de começo, meio e fim:

                                               Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha (...).

                                               Estavam nisto, quanto a costureira chegou à casa da baronesa (...).

                                               Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se (...).

                                               (ps. 73 e 74)

Segundo o Dicionário Aurélio (1986), atemporal significa o que independe do tempo ou não é afetado por ele; intemporal. Diante deste conceito, podemos inseri-lo no conto em análise, pois o mesmo possui características que não se afetam pelo tempo, portanto, sendo atemporais. A agulha, comparando-se aos dias de hoje, é parte da sociedade que serve para os outros ascenderem na vida e repudia a ingratidão, o alfinete representa o comodismo de outra parcela da população, os acomodados, que existiram, existem e existirão.

Outras relações destacadas no conto são a da hierarquia baronesa-costureira marcada pela serventia e dependência ao seu superior, dividindo-se assim, as classes sociais; a agulha, implicitamente quer dizer que quem ocupa funções superiores são os que importam na sociedade, portanto, a linha que serviria apenas para prender, e não teria a mínima relevância, já que o que importa é a costura:

- Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma cousa neste mundo? (...)

Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se.  A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho.

(ps. 73 e 74)

    

Machado de Assis, célebre nome da nossa literatura por suas obras, muito nos beneficiou com sua forma de escrever ousada, perspicaz, moderna (aos moldes da época) e, dos grandes escritores, o que mais se sobressai no tocante à atemporalidade. Suas obras afrontam a sociedade da época e criticam a mesma, os personagens, em sua maioria, não seguem os costumes do contexto histórico-social em que estão inseridos, eles vão muito mais além. Um exemplo disso é a forma que ele compôs seus grandes personagens femininos.

O que também é recorrente no conto analisado é a crítica à sociedade burguesa da época, em que a oposição de classes, ainda era uma preocupação social, ele ainda propõe uma revolução política contra o imperialismo do século XIX:

- Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto ficas aí na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico.

Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça: - Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária! (p.74)

 

CONCLUSÃO

O nosso objetivo em trabalhar com Machado de Assis e um de seus contos é demonstrar através de uma análise, os traços de sua obra que já são evidentes e muito discutidos.

A atemporalidade discutida no decorrer do texto é algo intrínseco a Machado de Assis, o fazendo um homem além do seu tempo. A literatura dele não morre. A sociedade apenas reproduz o reflexo do passado, que é o conceito simplório de História, estudar o passado, para conhecer o presente e estabelecer o futuro.

Os apólogos, as parábolas e as fábulas não estavam ligadas diretamente à produção de Machado, nem deste período histórico-literário, no entanto, ele faz o uso de um apólogo, comprovando assim, não estar preso às amarras do seu período histórico-literário.

REFERÊNCIAS

 

ASSIS, Machado de, 1839-1908. Contos: texto integral/Machado de Assis: seleção de Deomira Stefani. – 10 ed. – São Paulo: Ática, 1983.

FERREIRA, Aurélio B. de Hollanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. 1838 p.

PESSOA, Fernando (1977). Obra Poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar.