RESENHA

O brincar e a realidade

 

Vanessa Ruffatto Gregoviski

 

No livro “O brincar e a realidade”, publicado no ano de 1975 pela editora Imago, o autor Donald Woods Winnicott aborda questões relacionadas à infância nos primeiros anos de vida.  Ele relata em seu livro o fato de que o bebê ao nascer inicia com o processo de satisfação de instintos de zonas erógenas, por exemplo, a oral. Assim, como o bebê busca o prazer por meio de tal satisfação, com o passar do tempo ele acaba por adotar objetos de transição que auxiliam esse processo, sendo isso de extrema importância na formação do indivíduo. Esses dois fenômenos estão ligados, visto que a estimulação erógena é o primeiro passo para levar uma criança a transicionalidade, que não deixa de ser uma zona intermediária.

O autor fala que apesar de existir a realidade externa e a interna, há a necessidade da criação de uma terceira divisão: a experimentação. Referindo-se à experimentação o autor comenta: “A área intermediária a que me refiro é a área que é concedida ao bebê, entre a criatividade primária e a percepção objetiva baseada no teste de realidade.” (p. 26, grifo do autor). Esta por sua vez não deixa de ser uma área que está entre o que se é percebido conscientemente e o que se é percebido inconscientemente.  Isso o levou a estudar a ilusão.

A ilusão é apresentada ao bebê por intermédio da mãe, que da mesma maneira que cria a oportunidade de ilusão a retira, mesmo que o ser humano nunca a perca por completo. O autor fala em ilusão no sentido de que nos meses iniciais o bebê não passou pelo processo de narcização, portanto não distingue o que faz parte dele e o que é externo a ele, cria-se assim, mesmo que intencionalmente, a ilusão ao bebê de que ele e o seio materno são um só. Nas primeiras etapas da ilusão encontra-se o fenômeno de transicionalidade.

O objeto de transicionalidade (que deve ser real e não fruto do imaginário) possui inúmeras utilidades, entre elas pode-se citar o fato de que é uma defesa contra a ansiedade - principalmente do tipo depressiva.  Os pais permitem o uso desse objeto, pois ele acalma a criança e com isso buscam mantê-lo o menos afastado possível do bebê, visto que temem por uma ruptura de continuidade que pode fazer com o significado dessa ação seja perdido. Porém, é importante ressaltar que muitas vezes não há objeto transicional além da mãe, ou até mesmo o bebê não consegue aproveitar a fase de transicionalidade.

O indivíduo saudável emocionalmente não absorve para a vida o objeto transicional e o sentimento que tal objeto causou nele. Ao longo dos anos a transicionalidade perde o significado, pois os fenômenos transicionais sofrem difusão.

O autor aponta cinco pontos de base psicanalítica que podem ser úteis ao estudo do tema, são eles: 1) O objeto transicional pode representar o seio materno ou o objeto da primeira relação; 2) Ele pode preceder o teste de realidade; 3) Com ele o bebê passa a manipular e o “controle mágico” deixa de ser válido; 4) Futuramente o objeto transicional pode se transformar em um fetiche; 5) Levando-se em conta a fase anal-erótica, o objeto transicional pode representar as fezes.

Uma mãe suficientemente boa atende às necessidades do bebê, porém, com o passar do tempo acaba dando uma espécie de liberdade maior, que é de onde saem as experiências de frustração que são de extrema necessidade para a constituição de um ser humano adulto saudável.

O autor fala sobre sonhos, fantasias e a vida real. Cita um caso clínico de uma paciente que não tinha noção da diferença entre estar sonhando, estar realmente realizando alguma atividade ou estar apenas fantasiando algo. A partir disso traça um conceito sobre os mesmos. O sonho relaciona-se ao mundo real, eles têm um sentido que pode estar relacionado a coisas que vivenciamos no mundo real. O fantasiar, em contraste, se resume em ilusões sem nenhum significado ou relação com o que vivemos (não contribuem para o sonhar nem para o viver).

Ele afirma que as pessoas esquizóides e extrovertidas que têm dificuldades de entrar em contato com os próprios sonhos geralmente buscam ajuda de psicoterapia, pois se sentem insatisfeitas consigo mesmas.

Winnicott também aborda o brincar e enfatiza a importância de tal ato para a vida adulta, expondo ideias de Milner, que relaciona o brincar durante a infância com a capacidade que o adulto tem de se concentrar. Em outra parte desvincula a brincadeira da masturbação, visto que, durante muito tempo, ambas estavam relacionadas. O brincar representa saúde, pois facilita o amadurecimento, facilitando a comunicação da criança com os demais que a rodeiam. O brincar é relacionado à comunicação até mesmo na psicoterapia, visto que essa ação fornece uma espécie de amostra do que há por dentro, do que se percebe e do que se sente.

W. Winnicott ressalta que o brincar é uma terapia, e com isso diz que mesmo que os pais devam estar disponíveis durante uma brincadeira para que não se torne algo traumático, é importante que eles saibam deixar a criança brincar só. O brincar é uma experiência criativa, aonde a criança traz elementos procedentes da realidade externa representando uma realidade psíquica interna. É essa experiência que é analisada na psicoterapia, já que não deixa de ser um modo de expressão espontâneo. Quando uma pessoa, seja ela criança ou adulto, não consegue brincar é tarefa do analista ajudá-lo a realizar essa tarefa.

Em determinado momento surge a questão: De que lugar vem a brincadeira? É correto afirmar que ela não faz parte do psiquismo interno e tampouco da realidade externa. Em que lugar, portanto, situa-se a brincadeira? Isso levou o autor a consideração de que quando observamos uma criança com seu objeto transicional não estamos apenas presenciando a primeira distinção que a criança faz do “eu” e do “não-eu”, mas estamos também observando o brincar, simbolismo que estabelece uma ligação do bebê com a mãe. O brincar é então uma forma de experimentação, que juntamente com a experiência cultural forma o espaço potencial entre mãe e filho. É pertinente citar o comentário de Winnicott, que adverte: “Uma parte essencial da minha formulação dos fenômenos transicionais está em nunca desafiar o bebê com a questão: você criou esse objeto ou o encontrou?” (p. 134).

A busca do self (“eu sou”) baseia-se no brincar, que é quando o individuo utiliza a criatividade (relacionada ao estar vivo, à realidade externa e não exclusivamente às criações) e usa a sua personalidade integral, em outras palavras, só é possível encontrar o self através do ato criativo. Para ele, criatividade está presente em pessoas saudáveis, enquanto a submissão é algo doentio.

Faz também referência ao split-off, deixando claro que, principalmente na área da psicanálise, existe a visão de que tanto homens quanto mulheres tem pré-disposição à bissexualidade. Ilustra em um caso clínico o fato de que é possível existirem elementos femininos em homens, a dissociação entre sexos nesse paciente era praticamente completa, a dissociação foi tão grande que quase chegou ao ponto de desagregação, isso acabou por facilitar a aceitação da bissexualidade. Em tal ponto Winnicott chegou à conclusão de que estava a lidar com o que ele chamou de elemento feminino puro.

Denomina-se elemento masculino relações ativas ou passivas, salientando os instintos. Baseado nisso podemos manter a relação existente entre o impulso instintivo do recém-nascido em relação ao seio, amamentação e experiências com as zonas erógenas de modo geral. Já o elemento feminino, que não contem esse impulso, está relacionado à confusão que o bebê faz entre si mesmo e o seio materno, “o objeto é o sujeito” (p. 113, grifo do autor).

Ao nascer o recém-nascido não difere o que é ele e o que não é, a constituição do ego é o que permite a formação do self e isso vai ocorrendo ao longo dos anos por um desenvolvimento saudável. “Á medida que o ego começa a organizar-se, isso que chamo de relação de objeto do elemento feminino puro estabelece o que é talvez a mais simples de todas as experiências, a experiência do ser.” (p. 114). Porém, é viável dizer que com elemento feminino puro, Winnicott não faz referencia a homens ou mulheres de uma forma específica, pois pode estar presente em ambos os sexos.

A relação de objeto do elemento masculino puro, ao contrário do feminino, estabelece uma relação de separação. Ou seja, com o ego formado, o bebê já é capaz de distinguir o que é ele e o que não é, podendo, a partir disso, desenvolver outras estruturas psíquicas.

A autonomia do bebê é alcançada com o apoio do amor materno, que serve não apenas para fins de cuidados auto-conservativos, mas também para oportunidade para a fase de passagem da dependência para a independência. A separação não surge necessariamente no separar-se, mas do espaço potencial anteriormente citado, que é onde aparece o brincar criativo.

A ênfase dada à importância da mãe para o desenvolvimento da criança é amplamente reforçada. O meio ambiente em que o bebê vive tem um papel vital nas primeiras fases de desenvolvimento, porque ele ainda não o separa de si mesmo. A função ambiental da mãe inclui o segurar, o manejar e a apresentação de objetos, se isso é desempenhado de uma maneira adequada à experiência de onipotência não é violada.

A mãe é o espelho do bebê, quando este olha para a face materna é a si mesmo que está enxergando. Com isso também se desenvolve a percepção e a apercepção, com o tempo o bebê se acostuma com a ideia de que o que está vendo não é o próprio rosto, mas sim o de outra pessoa. Primeiramente a criança vê seu self refletido no rosto da mãe e depois em um espelho, “compreenda-se, porém, que a significação do espelho real está principalmente em seu sentido figurativo” (p. 162).

A dinâmica herdada por cada ser humano também é uma fase importante do crescimento. Os genes herdados só serão ativados ou não dependendo do meio em que o indivíduo está inserido. A criação é muito importante para a formação do ser, na adolescência, principalmente, os êxitos e fracassos do bebê voltam à tona e se manifestam, afetando totalmente a vida da pessoa. O adolescente ainda é imaturo, porque ele está passando por uma fase de novas sensações, confrontações e descobertas, encaminhando-se para a vida adulta.

O livro trata de questões importantes e relevantes para estudiosos no assunto e para pais também, entretanto contém inúmeras expressões que não são devidamente definidas, o que dificulta a compreensão do ponto de vista de Winnicott como, por exemplo, a definição do que é uma mãe suficientemente boa. As dificuldades da infância e as fases da mesma são devidamente analisadas no decorrer do livro, trazendo ao leitor uma variedade de informações que contribuem para um desenvolvimento saudável. O exemplo dado através de casos clínicos tratados pelo próprio D. Winnicott e o modo com o qual ele realiza as sessões, também são pontos que contribuem para um melhor entendimento.

 

[1] Acadêmica do primeiro nível do Curso de Psicologia da Universidade de Passo Fundo.