Resenha de obra que analisa a relação da banda de rock U2 com a Filosofia

Rogério Duarte Fernandes dos Passos

U2 e a Filosofia. Coordenação de William Irwin. Coletânea de Mark A. Wrathall. Tradução de Marcos Malvezi . São Paulo: Madras, 2007, 224 p.

Após tantos anos ouvindo a banda de rock U2, formada por Bono (vocais e guitarra), The Edge (guitarra, vocais e teclados), Adam Clayton (contrabaixista) e Larry Mullen Junior (baterista, percussionista e fundador) –, com mais de quatro décadas de estrada, parece natural querer buscar maior sentido às canções. Ou mesmo, alcançar maior compreensão sobre os aspectos históricos e estéticos envolvidos na arte do grupo.

Contudo, encontrar um livro que se propõe a analisar a filosofia de uma banda de rock, e, principalmente, do U2, não deixa de ser inusitado, onde estudiosos e fãs se despem da condição de meros consumidores do entretenimento pop para, na condição de filósofos, adentrarem ao aspecto metafísico e histórico de uma arte, não raro, desprezada pela intelectualidade e círculos mais cultos.

Isto posto, pensar no U2 vai além de considerar os versos de Bono enquanto complexo letrista, ou The Edge, exímio guitarrista, ao lado da competência de Adam Clayton e Larry Mullen Junior na construção de melodias que tomaram estádios ao redor do mundo e imaginários de ouvintes, mas compreender que as realizações humanas são expressões de um universo contínuo e não linear, e no caso dos artistas, em interações gnosiológicas a partir de si mesmos em direção ao mundo e ao próprio futuro.

O sucesso dessa compreensão, (in)consciente de si mesma, é que tem permitido ao U2 a sua longa existência e êxito em um mercado nitidamente descartável e em um ambiente volátil. E os textos contidos nesse livro parecem capturar isso.

Na obra, canções como “Beautiful Day”, “When I Look at the World” e “Kite” do consagrado álbum “All That You Can’t Leave Behind”, de 2000, sob a ótica de Jennifer McClinton-Temple e Abigail Myers, além de uma visão feminina, nos indicam um processo criativo construído pelo olhar do outro, pautado pela ética do cuidado, capaz de contemplar a graça para além da dimensão teológica fortemente presente no U2, apta a abarcar as discussões políticas do perdão da dívida externa dos países em desenvolvimento e, em espectro de universalismo, superar o viés do mero utilitarismo (p. 120).

Nesse sentido, as autoras, igualmente sobrelevando alguns fatos da vida pessoal de Bono, no capítulo intitulado “U2. Feminismo e a Ética do Cuidar” acrescentam:

Outros sistemas éticos provavelmente chegariam à mesma conclusão aqui: de que Bono deveria cuidar de seu pai moribundo. No entanto, outros sistemas teriam motivos diferentes, abstratos, de aplicação universal, para chegar a essa conclusão. Por exemplo, os cristãos nos diriam que é nosso dever “honrar pai e mãe”, o Quarto Mandamento. Uma perspectiva utilitarista poderia aconselhar Bono que, para o bem de seus próprios filhos, bondade e atenção dadas a seu pai no fim da vida seriam um bom exemplo. Só a ética do cuidar dá destaque ao relacionamento individual, particular, entre dois homens como base para ação e decisão (p. 127).

A par disso, a ética do cuidar do U2 tenta ser universalizante, contemplando o individual no âmbito familiar – em que Bono retornava de avião das turnês para visitar diariamente seu pai adoecido – e o global por meio das mensagens das canções e das campanhas em que a banda se dedicou, como o Jubileu 2000, que pugnava pelo perdão da dívida dos países em desenvolvimento.

A questão religiosa e cristã, fundamental na gênese do U2, a partir daqui, se desenvolve grandemente por meio do estudo de canções como “Until the End of the World” e “40”, nos convidando à oração, percepção e reflexão, vindo em encontro dessa ética do cuidar a descoberta de significados que assentam apoio em textos filosóficos e em outras fontes não triviais de divulgação da cultura popular e, no caso do grupo de Dublin, possibilitando amplos caminhos de destituição do senso comum de seu panteão de aparências enganosas e efêmeras.

Fé e razão, ciência e crença, obviamente, não são elementos desprezados na arte do U2, pelo contrário, sendo conciliados, por exemplo, em canções como “Miracle Drug”, do álbum “How to Dismantle an Atomic Bomb”, de 2005, de forma que, exemplificativamente, o capítulo redigido por Timothy Cleveland, segue as pistas do filósofo escocês David Hume (1711-1776), sobretudo, em supor que a razão sem sentimento não nos conduza à ação, de maneira que para concretizar o sentimento no amor de Deus é preciso o interesse pelos que sofrem. Constitui-se, assim, o saber apto para a descortinação da verdade. Diante disso, esse amor apto para a revelação – demonstrado na preocupação da banda ante à questão da fome e doenças no mundo – também é performado e idealizado pelo quarteto de Dublin em “Beautiful Day”, especialmente no momento em que ouvimos “what you don’t have, you don’t need it now, what you don’t know, you can feel it somehow” (p. 188-189), quase que finalizando em plenitude o verso e a enunciar que o ínterim percorrido em amor – e pela evolução em distorções de The Edge e compassos “desritmados” e “metafísicos” de Larry Mullen Junior e Adam Clayton –, dirige o U2 para a revelação.

A existência terrena é finita. Mas traz a esperança de renascimento, como se vê na canção “Breathe”, do álbum “No Line on the Horizon”, de 2009, que está no seio de amor de um Pai compassivo e justo que permite a existência imortal em direção ao progresso, como no ato incessante de respirar. Observe-se que aqui a elevação se assemelha à revelação, concatenando progresso científico e moral na seara do amor, donde no trigo desse conhecimento fermentar-se-á uma nova era, que em aprendizado, terá por ícone uma banda chamada U2, que legou sentimentos, ensinamentos e proposições humanísticas de um saber esclarecedor, clarificador que fora da caridade não há salvação, igualmente superador dos cânones estéticos da matéria ignominiosa e capaz de gerar enternecimento e regeneração.

Não poderia ser diferente que os temas da paz e da perda pessoal sejam recorrentes nas letras do quarteto de Dublin, podendo nos conduzir à sensação que o próprio U2, em alguns momentos, prossegue na mensagem de pugnar um mundo melhor, sabedor da impossibilidade de se alcançá-lo na época presente, como se pode deduzir da audição de “I Still Haven’t Found What I’m Looking For” e “Where the Streets Have no Name”, do icônico álbum “The Joshua Tree”, de 1987, construídas na profusão de uma pós-modernidade titubeante. Entrementes, os vários símbolos escritos e sonoros do grupo transmutam-se em libelo e crença para a sua arte e para o enorme aparato que os acompanha nas turnês, materializando um concerto como o momento de reajuste de ânimos, de possibilidade de resgate da espiritualidade e de avivamento ante ao vazio.

Por certo que o U2 comunica igualmente para além das letras das canções. E, sem melodias competentes, talvez não muito adiantaria a mensagem insculpida na linguagem escrita.

U2 e a Filosofia, com coordenação de William Irwin e coletânea de Mark A. Wrathall traz, portanto, ensaios de filósofos que contribuem em favor do sentimento para melhor revelação do U2, que continua a elevar-se através do som e da palavra por mais de quatro décadas.