Resenha sobre “O Homem Novo”, de José Herculano Pires

Rogério Duarte Fernandes dos Passos

PIRES, José Herculano (1983). O Homem Novo: Crônicas. São Bernardo do Campo/ São Paulo: Editora Espírita Correio Fraterno do ABC, 1ª ed., 107 p.

Jornalista, tradutor, ensaísta, escritor, orador, comunicador, filósofo. A grandeza de José Herculano Pires (1914-1979) não se mede por substantivos. Ou adjetivos. O espírita brasileiro foi exímio nas tarefas em que se obrigou, bem cumprindo a missão de divulgar a Doutrina que com excelência contribuiu e primou pela pureza de seus postulados, afastando misticismos e conjeturas.

Herculano Pires já tinha alcançado êxito em sua missão na produção e apresentação do programa radiofônico “No Limiar do Amanhã” – que foi ao ar na década de 1970 na extinta Rádio Mulher de São Paulo, AM 730 Khz, integrante do grupo de comunicação do empresário Roberto Montoro –, no qual pôde compartilhar o seu conhecimento e a sua retidão intelectual diante dos temas filosóficos mais altivos da Doutrina Espírita sem abrir mão da linguagem preclara e acessível.

Como nos informa Wilson Garcia, introduzindo a obra, em “O Homem Novo” (p. 7), temos a coletânea de trinta e nove crônicas que, sob o pseudônimo de “Irmão Saulo”, José Herculano Pires publicou no jornal “Diário de São Paulo” em coluna dedicada aos temas espíritas no período de 1969 e 1970. Embora curtos, os textos conseguem harmonizar grande poder de síntese em face de temas de profundo conteúdo filosófico, científico e religioso, demonstrando mais que conhecimento, mas, sobretudo, distinto domínio comunicativo.

Na obra, Herculano, sem abandonar a profundidade de sua sapiência sobre a Doutrina Espírita, nos oferece dela uma visão geral por meio do perpasse de temas que foram objeto de interesse do público espírita e não espírita.

Observe-se que o eixo axiológico da obra de Herculano Pires prima pela unidade da Doutrina, demonstrando uma integridade pessoal e intelectual à prova de quaisquer intepretações distorcidas, esclarecendo que o Espiritismo retoma os fundamentos de simplicidade e ausência ritualística do Cristianismo primitivo, ainda que em finais do Século XIX redivivo pela codificação de Allan Kardec (1804-1869) como a Terceira Revelação, apta a conduzir o Planeta Terra para a sua jornada de compreensão, conhecimento, progresso, caridade e renovação.

Ciência, religião e filosofia, alicerçado no modelo e melhor exemplo – Jesus Cristo – o Espiritismo oferece por meio da codificação a premissa que “fora da caridade não há salvação”, tornando-se acessível a todos – independentemente da fé religiosa –, concitando ao progresso os povos na existência do Deus Uno, nas orações e vibrações de coração e amor puro a todos os irmãos, capazes de superar o sectarismo e conduzir à elevação por meio do entendimento, da não imposição, da compreensão e instrução fundantes da fé apoiada na razão (p. 38 e 41).

Saulo mostra ânimo e destemor para tornar-se Paulo – reconhecendo a palavra “não na letra que mata”, mas no “espírito que vivifica” –, convidando a todos para seguir na estrada de Damasco (p. 35 e 41), assim como O Homem Novo, capaz de trilhar a superação em direção de si mesmo – em elogio da fé raciocinada – para além da teosofia e da própria filosofia, concretizando uma epistemologia da caridade, apta a fazer o eu pleno em auxílio do outro, que no seio social, revela-se no palco de operações para o recebimento do Consolador prometido rumo ao progresso, à justeza pelas boas obras e, obviamente, à felicidade.

A conduta do Homem Novo – homens e mulheres, humanidade – parte de um despertar, cientes que somos de uma jornada longa e infinita de progresso, necessária rumo à superação de aspectos embrutecidos no egoísmo e ignorância de filhos do Pai que imperfeitos, tornam-se dignos de misericórdia.

Na justeza e amor infinito do Pai, por meio de sua bondade revela-se a reencarnação como ajuste de contas e reparação com o passado, de maneira que todos os seres humanos devem aproveitar a ocasião de forma a progredir individualmente e oferecer o seu contributo ao meio social (p. 42). Por evidente o Cristianismo é processo histórico em curso, inacabado pela incapacidade de compreensão dos seres humanos dos aspectos da Primeira Revelação Mosaica, e da Segunda Revelação (João, 16:12-13), que progressivamente se lhes desvela (p. 54). A Terceira, por sinal, por fé raciocinada corrobora Deus como “a inteligência suprema, causa primeira de todas as coisas” (p. 62), igualmente confirmando os caminhos inexoráveis da autoinstrução e do não acomodamento na edificação do mérito espiritual de cada um dos filhos do Pai.

José Herculano Pires, outrossim, põe fim aos materialismos. Põe termo às suas diferentes versões, vieses e concepções. E nem poderia ser diferente, afinal, se o Reino do Pai não é deste mundo, como poderia neste amealhar-se algo diante daquele que É e sempre Foi, em que o bastante ou o infinito sequer se aproximam? Como se pode juntar algo material se o Pai concede “por empréstimo” bens em natureza transitórios, para que por meio do livre arbítrio, veja-se o que deles se faz?

O Pai Celestial não deixa seus filhos sem indicações e conclamando-os à superação do egoísmo, exige espontâneo desejo de melhora, despertamento da inércia e sinceridade de propósitos, oferecendo meios generosos a se galgar o progresso. E é nesse sentido que Allan Kardec e os pioneiros do Espiritismo revivem no final do Século XIX a epopeia apostólica, vascolejando a prostração e ignávia nocivas através das renovadas, elucidadas e sempre pertinentes lições do Evangelho (p. 67).

Herculano Pires, com razão, defendia a pureza doutrinária do Espiritismo, de forma a corroborar amplamente o método kardeciano de fundo socrático, ciente dos processos sociais que perpassam o conhecimento e semeiam sincretismos incompatíveis para a busca de objetivos amplos. Mais que ciente dos fenômenos de ordem social, valorizava sobremaneira a experiência de Allan Kardec, visto que  o codificador não prescindiu ele mesmo de sua própria observação, empirismo e razão no cotejo aos princípios que lhes traziam dúvida, tendo a oportunidade de verificá-los não só pelo próprio olhar de pedagogo discípulo de Johann Pestalozzi (1746-1827), educador e cientista, mas pela ótica da lógica filosófica.

Na tarefa de compreensão do Espiritismo, os escritos de José Herculano Pires seguem a melhor trilha científico-histórica, bebendo da herança da práxis e do pensamento de nomes como Victor Hugo (1802-1885), Camille Flammarion (1842-1925), Charles Richet (1850-1935), Léon Denis (1846-1927), Gabriel Delanne (1857-1926), Ernesto Bozzano (1862-1943), Cairbar Schutel (1868-1938), Konstantin Raudive (1909-1974), entre outros, estando igualmente atento aos trabalhos de cientistas da antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, como Wladimir Kotelnikov (1908-2005), Vassili Troizly e Vladimir Siforov (1904-1993) – muitos imersos no materialismo de Estado –, ainda que em âmbito ideológico vociferasse o período da Guerra Fria (1945-1991). Tenaz em suas considerações, outrossim o mestre Herculano jamais se fechou à máxima epistemológica que, em prova em contrário, a ela se renderia.

E justamente por meio da pureza doutrinária que coerentemente praticava que Herculano foi capaz de entender a física como ferramenta de demonstração da filosofia e no bojo da reencarnação, enfrentada com plena lucidez e segurança na sua demonstração ao grande público, em entendimento muito além do aforismo de morte de Martin Heidegger (1889-1976) – onde ela seria o momento que se completa o ser –, superando até mesmo a corrente existencialista em voga no período pelo expoente Jean-Paul Sartre (1905-1980), em que ao lado da responsabilidade por suas ações e a liberdade de escolha e de destino – há o verdadeiro complemento, que é o alcançado pelo livre arbítrio concedido pelo amor de Deus. Afinal, “nascer, crescer, viver, morrer, renascer ainda, progredir sempre, tal é a lei”, como enunciou Kardec, nos sentenciando, inexoravelmente, por meio do amor enquanto força criadora, à evolução. 

 E é o próprio José Herculano Pires que melhor esclarece:

Acabando com os chamados “mistérios da morte”, o Espiritismo demonstrou, experimentalmente, que o homem se liberta do seu corpo físico de modo tão natural quanto a larva se transforma em borboleta. Lembrando os ensinos de Cristo e dos seus apóstolos, mostrou que a ressureição, como escreveu o apóstolo Paulo em sua primeira epístola aos Coríntios, é de ordem espiritual e não material. “Planta-se o corruptível, nasce o incorruptível; enterra-se o corpo material, nasce o corpo espiritual”. Nem anjo, nem demônio, nem alma do outro mundo, nem entidade misteriosa, o espírito daquele que morreu é o próprio morto que ressurgiu da morte. É o mesmo homem que conhecíamos na Terra, com seus vícios e suas virtudes, apenas desprovido de um envoltório grosseiro, como um escafandrista que, por tirar o escafandro, não deixa de ser o que era (PIRES, 1983, p. 80-81).

A evolução é contínua no ser humano (p. 82), para além de quaisquer especulações relativas acerca da conciliação (e conflito) entre conhecimento e fé que perpassavam os teólogos medievais (p. 89), e para além da dicotomia (ou negação) entre corpo e espírito pugnada pela ciência materialista, conduzida pela fé raciocinada em direção, finalmente, ao amor, bondade e exemplo inolvidável de Jesus, desprendida de convenções, preconceitos e sectarismos, em renovação humilde e iluminada pela Doutrina Espírita.  

Nesse sentido, apoiado no Novo Testamento, o próprio Herculano Pires em suas palavras insubstituíveis:

Jesus, que compreendia bem essas coisas, mostrou que na verdade não se pode amar a Deus sem amar ao próximo. E que o amor do próximo é o caminho, e ao mesmo tempo a prática do amor de Deus. Por isso acrescentou aquela regra de ouro: “Assim, tudo o que quereis que os homens vos façam, fazei-o também vós a eles: porque essa é a lei e os profetas”. O egoísmo farisaico, com toda a sua enorme soberba, com a sua pretensão de exclusivismo religioso, foi condenado para sempre, nessas doces lições de humanidade. Jesus nos convida sempre ao amor, que é compreensão do próximo, sob o auxílio paternal de Deus, e não ao sectarismo exclusivista e agressivo, ao farisaísmo arrogante” (PIRES, 1983, p. 34-35).

Expoente do Espiritismo brasileiro, José Herculano Pires legou exemplo e obra de cunho filosófico e, no que é mais importante, esclarecedor, possibilitando o conhecimento enquanto alavanca da reforma íntima apta a materializar O Homem Novo, que tanto se requer no Planeta de Regeneração.