O desarmamento da população: outra visão sobre os discursos, ou falácias, dos governos brasileiros

  1. Introdução

Nenhum governo autoritário, injusto ou totalitário, em repúblicas ou monarquias, ditaduras ou democracias, jamais respeitou um povo fraco e sem meios para lutar.

O autor.

A história das civilizações, não há como ser negado, foi marcada por lutas e batalhas (guerra civil) entre os governos tiranos versus o povo que, não suportando mais os arbítrios e violências dos governantes e seus exércitos, era compelido a pelejar, até a morte se preciso fosse. Nos impérios, nas monarquias e nas repúblicas, com paus e pedras, espadas ou cutelos, armados de fuzis ou pistolas, as populações ou nações inteiras – como ocorreu na Primavera Árabe – tiveram que partir para o embate contra seus governantes tiranos (reis, príncipes, presidentes, governadores etc. e seus generais), Estados ilegais e poderes ilegítimos.

Em todos os casos nos quais o povo teve que lutar contra o governo – isto porque não houve justiça, honra, misericórdia, dignidade por parte de quem esteve governando –, desde as lutas de plebeus contra patrícios, ou servos versus senhores feudais, algo foi necessário e fundamental para as sociedades rebeladas: possuir armas suficientes para fazer frente aos exércitos de tiranos e soberanos levianos, que por décadas, ou séculos, açoitaram as massas como que açoitassem as piores das bestas existentes nas selvas, dia e noite sem cessar.

Não tem como a História ocultar ou negar que usar a força das armas foi vital para o povo sobreviver aos massacres, mutilações, prisões, repressões, genocídios etc. perpetrados por príncipes e presidentes, reis e generais, bispos e cardeais – na Idade Média, sobretudo – de modo que tanto o estado quanto a igreja só foram limitados ou impedidos de oprimir, prender e assassinar quando a sociedade se reuniu e se armou para lutar, com unhas e dentes, sem cessar, até o terro trazido pelo soberano (o governo, político ou eclesiástico) declinar; e renunciar aos mais diversos pesares e morticínios praticados contra o povo (a plebe, ou ralé, como nominavam no Império Romano). Como uma sociedade, com seus homens e mulheres fragilizados e impotentes, semelhantes a cordeiros, vão oferecer resistência eficaz contra abusos, desmandos e tiranias, sem a estratégia e as armas necessárias? Em que luta a população resistiu, com sucesso, aos seus soberanos, ou tiranos, sem “armaduras” e armas?

Depois de invadir, nazistas usaram listas pré-guerra de proprietários de armas para confiscar armas e muitos proprietários de armas simplesmente desapareceram. Após o confisco, os nazistas estavam livres para descarregar sua maldade contra a população desarmada, tal como contra estes desamparados judeus do Gueto de Varsóvia.[1]

  1. desenvolvimento

A narrativa histórico-política da humanidade traz diversos registros de lutas travadas entre o Estado e a Nação, Povo e governo, disputas estas onde os soberanos impuseram, com força e astúcia, valores, normas, tributos, doutrinas, muitas das quais para a insatisfação ou infelicidade geral das nações, sendo, desta forma, necessário a oposição ou resistência dos súditos. Resistência popular esta que, para ter êxito, precisa ter armas tanto quanto os governos, ou muito mais, para garantir um embate equiparado, com chances de sucesso para as massas (que poderiam escravos conquistas nas guerras, servos, estrangeiros ou outros grupos sociais desfavorecidos pelo poder dos soberanos).

Quando Roma tornou-se senhora e “mãe” do mundo ocidental ela conquistou e impôs condição de servidão a muitas nações, de modo que aumentava consideravelmente a população sob seus domínios, seja de nacionais, seja de estrangeiros, como, por exemplo, os povos bárbaros – celtas, berberes, visigodos, os hunos etc. Além da escassez de meios de provisão para manter os “cidadãos” romanos, o império haveria de encontrar solução para manutenção de tantos escravos. Sem meios provisionais – alimentação, habitação, trabalho, instrução etc. – para todos, os governantes necessariamente iriam se deparar com revoltas, sublevações, levantes das massas deixadas entregues a qualquer sorte ou infortúnio. E, certamente, em todas as revoltas populares, nos conflitos entre Povo e governo, este último temeu a possibilidade dos cidadãos possuírem as armas necessárias para realizar o embate com o Estado, pois uma nação desarmada é, para os estrategistas dos governantes, vítima fácil e impotente.

Muitos povos viram seus senhores, ou “donos”, príncipes ou presidentes se voltarem contra seus governados, enfraquecidos serviçais, fazendo uso de todos os meios possíveis, principalmente das armas – espadas ou esgrimas, pistolas ou fuzis – impondo-lhes toda forma de constrangimento, injustiça e opressão. Não foram apenas os plebeus farrapentos e famintos da Roma Antiga que se submeteu fragilizado diante da força das armas dos césares e seus generais. Nos séculos que se seguiam conflitos assemelhados aos do império ocorreriam.

Na Inglaterra dos séculos XIII[2] ao XVII muitas foram a lutas e revoltas sociais em virtude das injúrias e ofensas promovidas pela monarquia inglesa, pelas mais diversas razões, tendo-se como destaque “A Grande Rebelião”, “A Guerra Civil”, “A República de Cromwell” e “A revolução Gloriosa”. Governantes como Jaime II, Carlos I e II, Oliver Cromwell, enfrentariam revoltas populares em oposição à exploração e repressão das camadas sociais menos favorecidas, como o campesinato que perdia suas terras através do processo dos cercamentos, além da condição de vida da maior parte da plebe que piorava consideravelmente.

As revoluções inglesas, possivelmente, serviram de estímulo ou combustível para fortalecer os ideais de outras revoluções. Destas uma de maior destaque foi a Revolução Francesa, já no século XVIII.

Com condições análogas aos ingleses, os franceses enfrentavam os defloramentos da nobreza, juntamente com a igreja, o aumento da exploração dos seus bens, alta de impostos, privação de liberdades, cessação ou redução de direitos – como ocorre nos Brasis desta Nação – e uso da força e violência das armas oficiais (do Estado), que se voltavam contra o Povo francês. Contudo, os iluminados, ou iluministas, com suas ideias alimentaram o imaginário da burguesia que surgi – e se insurgi – levando esta camada social francesa a se organizar e se armar, juntamente com os “sans-culotte” (trabalhadores em geral), para se opor às violações do Estado.

Sem exceção, em todos os combates travados pelos súditos contra seus senhores, monarcas, imperadores, presidentes, generais ou governadores, possuir armas e estratégias foram fundamental para os povos rebelados, desde as guerras púnicas até os nossos dias. Eis aí, certamente, um dos maiores propósitos do governo, brasileiro ou não, querer desarmar a sociedade civil.

Vejamos o que afirmou o palestrante Bene Barbosa, presidente do “Movimento Viva Brasil”, em palestra sobre o livro da escrita Joyce Lee Malcolm, “Violência e armas”, do qual ele faz a apresentação:

No Brasil Colônia, os portugueses puniam com a morte os brasileiros que fabricassem armas. A preocupação, evidentemente, não era com a criminalidade, mas com o controle social. Com a nossa Independência, foi criada a Guarda Nacional e extintas as milícias de cidadãos. É exatamente o contrário do que foi feito pelo Bill of Rights, nos Estados Unidos. Os americanos declararam que a responsabilidade pela defesa da Constituição e da integridade nacional é de todos os cidadãos que, para essa finalidade, podem constituir milícias armadas. Como disse Bene, o Império Brasileiro declarou que a defesa da Constituição era atribuição exclusiva do Papai-Estado. Nesse período, os brasileiros de pele branca podiam possuir armas. Os negros, mesmo libertos, eram proibidos. A única exceção eram os capitães-do-mato. Mais uma vez, ninguém estava preocupado com o crime. O que se pretendia era evitar potenciais rebeliões de escravos.[3]

A verdade que é revelada, no decorrer do tempo e da História, desde muitos séculos, antes mesmo da luta de escravos e gladiadores, como Spartakus com seus 25 mil guerreiros nas lutas desfavoráveis ao império, é a necessidade dos governantes desarmarem a sociedade, deixando-a impotente perante os vilipêndios, violações e horrores que os estados podem praticar com os cidadãos incapazes de oferecer qualquer resistência armada, como se sucedeu em todos os estados totalitários, autoritários e terroristas,  a exemplo das ditaduras, de direita ou de esquerda, na América espanhola, na África, ou mesmo na Europa.

Sabedores dos arbítrios, injustiças e tiranias que um presidente, governador, ou mesmo um senado pode pratica contra a impotência de uma nação, o povo americano, desde as origens do seu direito constitucional, tem um dispositivo magno (artigo II), nos artigos acrescentados ou que emendaram aquela constituição, em 1787, que diz: “Sendo necessária à segurança de um Estado livre a existência de uma milícia bem organizada, o direito do povo de possuir e usar armas não poderá ser impedido”

Seria instrutivo neste momento lembrar por quê os cidadãos americanos e o congresso historicamente se opuseram ao registro de armas de fogo. A razão é simples. O registro torna fácil para um governo tirano confiscar armas de fogo e fazer de presa os seus súditos. Negar este fato histórico não é mais justificado do que negar que o holocausto ocorreu nem que os nazistas assassinaram milhões de pessoas desarmadas.[4]

  1. Conclusão

A nação romana é apenas um entre tantos exemplos de lutas entre dominantes e dominados, governantes e governados, na Antiguidade, já que nos séculos que se seguiram após a derrocada da “grande potência” foram, talvez mais ainda, de combates entre Povo e governo, sobretudo nas revoluções da Europa e nas chamadas revoluções burguesas, que vão dos séculos XIV ao XVIII. Estas irão serviu de modelo para o princípio de outros processos revolucionários, como a Revolução Americana de 1776, ou a revolução Russa de 1917. E, certamente, o motivo de tantas rebeliões do povo contra seus “senhores” ou governadores foi a opressão, a perfídia, a exploração, a malícia... com as quais o povo, faminto e açoitado, passou a ser conduzido, governos após governos.

As violações de direitos e garantias sociais, por parte daqueles que estiveram no poder, foram – e são até os dias atuais – frequentes desde os mais antigos Estados, ou nações, como na tirania de presidentes e reis como Xérxes (Pérsia), Nabucodonosor (Babilônia), César (Roma), Napoleão (França), Benito Mussolini (Itália), Hitler (Alemanha), Castello Branco, Costa e Silva, Ernesto Gaisel, Garrastazu Médici (Brasil), Pinochet (Chile) etc. etc. Tais condições – imposição de flagelos e açoites contra as massas – sempre retornaram na História da humanidade, submetida a tantos processos de desumanidades, por aqueles que se sentiram, ou se intitularam, Deus na face Terra.

O último grande registro de lutas da sociedade contra seus presidentes, príncipes ou reis foi o levante histórico da “Primavera Árabe”, iniciado em dezembro de 2010, na Tunísia, movimentos sociais estes que acarretaram na queda ou instabilidade dos governos da Líbia, Egito, Omã, Síria, Iémen, Bahrein etc. Alguns líderes – opressores e genocidas, como é qualquer ditador – renunciaram, outros foram derrubados, e com os horrores impostos à nação. Situação esta que qualquer governo, em qualquer parte do mundo, pode trazer aos seus governados.

Em todos as pelejas da “Primavera Árabe”, assim como em todas as guerras civis ou resistência oferecidas ao Estado e seus exércitos, que se tem notícia, a população precisou de algumas coisas primordiais: coragem, força e armas. Em todos os povos ou nações onde os soberanos (tiranos, ilegais, terroristas, genocidas), com seus generais e exércitos, esmagaram seu povo, existiam algum código, tratado ou lei que impedisse a multidão de adquirir força bélica, pois desde tempos imemoriais talvez esta seja a única força respeitada, ou temida, pelos soberanos: armas nas mãos do Povo para que este possa lutar por dignidade, justiça, liberdades, direitos etc.

Mesmo que a mídia dominante procure fazer crer que deixar a sociedade civil desarmada é a grande solução – o que é favorável a quem governa – sabe-se que as opiniões sobre a temática não são unânimes. Vejamos o que foi publicado na página (site) da câmara dos deputados, no final do ano de 2014:

Em enquete realizada pela Agência Câmara sobre o projeto que revoga o estatuto do desarmamento, 86,33% dos internautas que participaram demonstraram-se favoráveis à proposta de criar novas regras para a aquisição e a circulação de armas de fogo no Brasil. Apenas 12,97% são contrários a qualquer mudança (até as 11h do dia 24/11/2014).[5]

O tempo se passou em séculos, contudo visões, doutrinas e saberes continuaram sendo retomados após gerações. Uma delas é a ideia de que os súditos, o povo, tem o direito de resistir ao príncipe (governo), seja de forma pacífica – a desobediência civil – seja, inclusive, por meio do uso da força, como ocorre em todas as guerras civis, quando o soberano atentar contra as garantias sociais, individuais ou coletivas. Uma coisa que todos os iluministas disseminaram é que o Povo precisar opor-se ao soberano quando ele violar o “contrato social”, não mais garantindo a vida – com dignidade –, a liberdade, a segurança, a propriedade etc. Juristas, filósofos, sociólogos, poetas, escritores, incontáveis, concordaram que os cidadãos têm direito de resistência à opressão, às injúrias, aos vilipêndios promovidos pelos dirigentes das monarquias e das repúblicas.

Que quer que use a força sem direito, como aquele que deixa de lado a lei, coloca-se em estado de guerra com aqueles contra os quais a usa; e nesse estado invalidam-se todos os vínculos, cessam todos os outros direitos, e todos têm o direito de defender-se e resistir ao agressor. Isso é tão evidente que o próprio Barclay, defensor da origem divina do poder dos reis, vê-se obrigado a conceder que seria legítimo ao povo, em certos casos, opor-se ao rei; e o faz em um capítulo que pretendia provar que a lei divina tolhe o povo de toda rebelião. Sua própria doutrina evidencia que, uma vez que se possa em alguns casos resistir, nem toda resistência ao príncipe é rebelião.[6]

  

 Referências

AQUINO, Rubim Santos Leão de. et all. História das sociedades: Das Sociedades Modernas às Sociedades Atuais. 36ª edição rev. e atualizada. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1997.

HOBSBAWN, Eric J. A revolução francesa. Tradução: Maria Tereza Lopes Teixeira e Marcos Penchel. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. (Coleção Leitura).

LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. Tradução: Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2002. (Coleção a obra-prima de cada autor).

KROPOTKIN, Piotr. O estado e seu papel histórico. Tradução: Alfredo Guerra. São Paulo: Editora Imaginário. 2000.

FARIA, Ricardo de Moura. História – vol.1. Belo Horizonte: Editora Lê, 1989.

_____________________. História – vol.2. Belo Horizonte: Editora Lê, 1995.

Filmografia

Os três mosqueteiros. Título original: The Three Musketeers. Produção: Joe Roth e Roger Birnbaum. Direção: Stephen Herek. Austria, Inglaterra e EUA. 1993. 1 DVD, 110 min.

Robin Hood. Produção: Ridley Scott; Brian Graser. Direção: Ridley Scott. Estados Unidos da América. 2010. 1 DVD, 140 min.

Spartakus. Título original: Spartacus. Produção: Edward Lewis. Direção: Stanley Kubrick. Estados Unidos. 1960. 1 DVD, 198 min.

Gladiador. Título original: Gladiator. Produção: Douglas Wick. Direção: Ridley Scott. Estados Unidos, Reino Unido e Irlanda do Norte. Distribuição: Columbia Pictures.  2000. 1 DVD, 155 min.

Publicações eletrônicas

http://marcelocentenaro.blogspot.com.br/2014/10/palestra-de-bene-barbosa-no-lancamento.html

http://www.mvb.org.br/palestras.php

http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/radio/materias/COM-A-PALAVRA/478142-MOVIMENTO-VIVA-BRASIL-APOIA-REVOGACAO-DO-ESTATUTO-DO-DESARMAMENTO.html

http://www.infomoney.com.br/blogs/economia-e-politica/economia-e-politica-direto-ao-ponto/post/5200649/dos-eua-para-brasil-por-que-nao-devemos-desarmar-sociedade

http://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/artigos/as-armas-dos-criminosos-e-a-utopia-do-desarmamento-0hcsx5nvlc5mzqow0ufhn8lo1

https://www.algosobre.com.br/interesse-publico/o-desarmamento-e-a-seguranca-dos-bandidos.html

[1] Repressão nazista aos donos de armas, disponível em http://www.mvb.org.br/campanhas/desarmamentonazista.php, capturado em 13/11/16.

[2] No ano de 1225, os chamados “barões de ferro”, da Inglaterra levantaram-se contra o rei João Sem Terra (João VI), após este assumir o trono e trazer várias imposições aos súditos, como, por exemplo, aumento de tributos, confisco de terras, safras, ouro etc. haja vista os gastos excessivos da monarquia inglesa, ora com conforto, ora com as declarações de guerras.

[3] Palestra de Bene Barbosa no lançamento do livro “violência e armas – a experiência inglesa”, disponível http://marcelocentenaro.blogspot.com.br/2014/10/palestra-de-bene-barbosa-no-lancamento.html, capturado em 14/11/16.

[4] Repressão nazista aos donos de armas, disponível em http://www.mvb.org.br/campanhas/desarmamentonazista.php, capturado em 13/11/16.

[5] Movimento Viva Brasil apoio revogação do estatuto do desarmamento, disponível em http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/radio/materias/COM-A-PALAVRA/478142-MOVIMENTO-VIVA-BRASIL-APOIA-REVOGACAO-DO-ESTATUTO-DO-DESARMAMENTO.html, capturado em 16/11/16.

[6] LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. Tradução Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 154.