Origem e características da política de economia popular na Venezuela

A política pública de economia popular começa efetivamente na Venezuela entre o final de 2003 e 2004. A primeira fase começa com a elaboração da Constituição de 1999, quando se inclui no texto constitucional termos como 'economia social' e o incentivo ao cooperativismo. O que se percebe é que a nova Constituição tem um forte impacto nas políticas públicas pois é um momento em que se configura uma nova estrutura para o fluxo político, sendo que os venezuelanos citaram a constituinte ao falar sobre como surgiram as políticas públicas de economia solidária. Assim, elementos como a disposição nacional, a formatação de governos, eleições e partidos políticos, além dos limites de atuação das forças políticas organizadas, todos são diretamente afetados por um processo constituinte.

Já depois da Constituição de 1999, as políticas públicas caracterizavam o que uma das entrevistadas chamou de “primeira etapa do processo revolucionário venezuelano”, que consistia em buscar o desenvolvimento com inclusão social. Ou seja, o objetivo, nas palavras de uma ex-dirigente governamental entrevistada, era “buscar um capitalismo com aspectos mais humanos”. Assim, foram criadas algumas instituições financeiras destinadas a promover a inclusão social, como o Banco do Povo, o Banco da Mulher e o Banco de Desenvolvimento Micro-Financeiro. Tratava-se, portanto, de instituições financeiras que seguiam a lógica capitalista, porém objetivando ampliar o acesso a financiamentos e à bancarização da população mais pobre.

Nas alternativas de ação em que foram implementadas nesse primeiro período, além da criação das instituições financeiras, houve ainda algumas mudanças na estrutura da administração direta, como a criação de um Ministério para o Desenvolvimento da Economia Social.

Por fim, o quadro político deu origem a dois episódios, no ano de 2002, que mudaram os problemas que o governo se propunha a enfrentar, marcando o início de uma segunda fase da revolução bolivariana. O primeiro episódio foi tentativa de golpe de 2002, conduzida por setores militares, empresarias e da mídia, não se consolidou graças, em parte, à manifestação popular de apoio a Chávez.

O segundo episódio foi a sabotagem petroleira, promovida inclusive pelos setores de direção da empresa de petróleo venezuelana, a PDVSA. Essa paralisação, que durou cerca de 3 meses, entre o final de 2002 e início de 2003, teve um forte impacto na economia do país, gerando graves problemas de desabastecimento e desemprego.

Em suma, esses dois eventos focais causaram mudanças no fluxo político e na identificação de problemas pelo governo venezuelano

A disposição nacional dividiu o país em duas partes com pouca disposição para colaborar entre si, sendo que a parte que apoia o governo era maior que a dos opositores.

Como conseqüência desse processo, no final de 2003 é lançado pelo presidente Chávez o plano de atuar por meio de missiones, que seriam estruturas paralelas ao Estado, com participação de diversos órgãos, e voltadas para áreas como saúde, educação e geração de trabalho e renda cooperativamente

A figura das missões refere-se à organização de forças-tarefa que funcionam como fundações e respondem diretamente ao presidente, com maior agilidade para contratações e recrutamento de pessoal.

A criação das missões é uma decisão de grande importância para a mudança na caracterização do governo Chávez. Dessa forma a atribuição dos órgãos é alterada, com o enfraquecimento e esvaziamento de alguns órgãos onde não se conseguia encaminhar as políticas públicas, enquanto outras estruturas saem fortalecidas.

A política nacional de economia solidária venezuelana surge, portanto, com a missão Vuelvan Caras cujo desenho inicial é proposto por uma comissão de ministros e funcionários. Identifica-se aqui uma adequação entre o processo e a teoria de Kingdon (1995), com o presidente tendo definido pela inclusão do item na agenda, e seus ministros tendo a atribuição de especificar alternativas de ação.

A missão Vuelvan Caras é entendida pelo governo venezuelano como uma estratégia de transformação social, econômica e luta contra a pobreza por meio do desenvolvimento endógeno e sustentável.

O propósito básico do programa, o qual é também o que permite a sua identificação como uma política nacional de economia solidária, é de “mudar o modelo econômico, alterando as relações de produção, com um enfoque no desenvolvimento endógeno (...) baseado na economia popular, centrada na eqüidade, solidariedade e cooperação.

Outra medida governamental que pode ter grande impacto na política de economia popular, conforme todos os entrevistados, foi a criação dos conselhos comunais. Criados em 2006, esses conselhos são instâncias onde os cidadãos e organizações da sociedade civil podem participar da gestão das políticas públicas, recebendo recursos públicos para tanto.

Esses bancos comunais, no que lhe concerne, são normatizados pela Lei de Associações Cooperativas, e não pela legislação aplicável a bancos comerciais.

A Lei dos conselhos comunais apresenta uma série de definições que esclarecem qual é o caráter dessa medida e explicitam sua relação com a política de economia popular. Ao analisar esse documento, verifica-se que é uma assembleia de cidadãos que define a base territorial e a quantidade de famílias que compõe cada conselho, respeitados apenas os limites indicados na Lei.

Um elemento fundamental para distinguir a concepção dos conselhos comunais de conselhos temáticos ou setoriais, como os existentes no Brasil, é compreender suas fontes de recursos. A lei dos conselhos comunais afirma que estes receberão, de maneira direta:

  1. Os recursos, que forem transferidos pela República, estados e municípios;
  2. Recursos provenientes do Fundo Intergovernamental para a Descentralização e Lei de Dotações Econômicas Especiais derivadas de Minas e Hidrocarburetos; 3- Recursos provenientes da administração de serviços públicos que lhe sejam transferidos pelo Estado;
  3. Recursos gerados por suas próprias atividades;
  4. Recursos provenientes de doações;
  5. Qualquer outro recurso gerado de atividade financeira permitido pela legislação.

O impacto que essa medida pode ter na política de economia solidária deve-se ao fato de que as alternativas de ação que se dispõe para as políticas públicas são consideravelmente alteradas

O reforço ao poder popular era uma das grandes medidas tratadas pela proposta de reforma constitucional na Venezuela, encaminhada no ano de 2007. A proposta de reforma abrangia várias áreas, com destaque para o reconhecimento da propriedade coletiva, a transferência da gestão de empresas estatais para o controle popular, por meio de conselhos comunais e a introdução de diversos mecanismos de democracia direta. Havia também itens polêmicos como a possibilidade de reeleição ilimitada do presidente, que foi algo bastante explorado pela oposição para conseguir derrotar a proposta no referendo popular durante o referendo público realizado.

Vale ainda destacar que a reforma constitucional comporia os cinco motores constituintes rumo ao socialismo. Esses motores seriam: a) uma nova Lei Habilitante, que permite ao presidente legislar por um determinado período; b) a própria reforma constitucional; c) educação com valores socialistas; d) uma nova geometria do poder e; e) a explosão do poder comunal.