Acordou, olhou o relógio e viu que ainda eram quatro da manhã. Virou na cama, viu ao seu redor o quarto na penumbra e nem sinal da luz do sol. Tentou dormir de novo e veio aquele pensamento de que não havia mais sono e os olhos sem obedecer ao seu senhor resolveram se abrir e pediram para ver a partir dali tudo que já haviam visto.  Eugênio resolveu levantar e foi ao banheiro. Urinava e ao olhar para o vaso se policiava para não pensar em nada, pois havia lido que o vaso sanitário é cheio de más vibrações e iriam dar para trás em tudo que ele ali planejasse.

Virou-se e foi na direção da pia. A água fria lavou seu rosto e começou a se ver no antigo espelho emoldurado dos anos 1850 que tinha sido de mamãe. Seu rosto era a prova de sua tristeza e da primeira chateação do dia. Olhos de intelectual, sobrancelhas grossas, cavanhaque junto da barba por fazer, cabelos desgrenhados, rosto magérrimo e gogó saliente. “Sim Eugênio”, ele se dizia, “sou só por merecimento”. Voltou para o quarto, sentou-se na escrivaninha de peroba, sentiu o conforto da poltrona acolchoada e olhando lá o candelabro pensou: “bem que já é tempo...”.

Saindo do quarto, lá ao longe um galo cantou. Alguns cães uivavam e a escuridão do caminho para a vastíssima sala da casa neoclássica em que vivia era mais uma razão de desespero em meio à solidão. Via-se aqui e ali uma estátua, dragões, um Buda, uma Musa com seu seio à mostra e os sofás perto da lareira nunca utilizada; oras lareira em uma casa no Rio de Janeiro só pode ser fixação por estilo ou loucura. Algumas colunas demarcavam o limite entre a sala e o corredor que ia para os quartos. Ali uma escada, lá fora o jardim e a escuridão da madrugada em pleno sono e que não acordava para ir embora.

Eugênio não quis mais  nada. Sentou-se em um dos sofás da sala, olhou lá longe pela janela uma luz que vinha de fora novamente pensou: “já é tempo”. Ali sentado já nem sabia mais se era sono, sonambulismo ou depressão, sabia apenas que aquela tristeza dos últimos meses parecia cada dia maior e sentiu completo despeito por tudo que tinha e tremendo desrespeito por tudo que pensava. “Pois se dane toda essa miséria de coisas, mas vale um sorriso do que a dominância”.

Ali recostado no sofá já havia até esquecido a escuridão, pensava atônito no que poderia ser o objeto de tanta melancolia. Era dono de fábrica de tecido em Petrópolis, acumulou fortuna, viajou pelo mundo, experimentou tudo que quis e ainda sim faltava uma coisa que só lhe afligia sem se dizer o que poderia ser.

Pensou que poderia dali a algumas horas comprar o jornal. Estava curioso para saber sobre a campanha presidencial de Rui Barbosa. “Homem detestável” pensava Eugênio lembrando dos prejuízos que chegou a ter durante o Encilhamento. “Mas que se dane tudo isso, pro inferno a política” dizia em voz alta para o silêncio.

O whisky desceu queimando a garganta, os olhos não tinham objeto para olhar, o pensamento no nada. Lembrou de quando era pequeno e estava com o seu pai em uma fábrica de vidro com dez ou quinze operários:

“Um dia meu filho você irá mandar em todos eles” dizia o pai burguês apontando em direção aos trabalhadores. “Mas eles já terão morrido papai” dizia o pequeno em mais pura inocência e sinceridade. “Sim, e você irá mandar nos filhos deles”.

Aquele pensamento permeou a vida inteira do Eugênio. “Eu irei mandar nos filhos deles”. Sim, mandar, “serei o chefe”. Para isso foi com o dinheiro do pai à Europa, formou-se em Contabilidade, voltou, comprou fábricas, era acionista em várias outras, passou a mandar nos filhos dos operários do pai e em muitos outros. Ficou rico, quase ficou pobre durante o Encilhamento, voltou a ficar rico e lá estava. Naquele fim de madrugada se deu conta que pouco adiantava ser senhor e rico se era ao mesmo tempo tão abandonado.

Abandonar era o verbo mais odiado de Eugênio. A mãe foi a primeira, fugiu com um operário italiano da fábrica, subordinado ao velho pai burguês de Eugênio. Só soube disso depois, pela boca de uma tia fofoqueira que não tardou em lhe contar assim que o pai passou a esfriar na cova. Sua amada Josephine, por quem se apaixonou em Marselha durante um tour na França, o abandonou após um ano de casada, simplesmente enojada pelo fato do marido ter a vida inteira se recusado a operar a fimose.

Outras mulheres, nada mais. Tanta riqueza, tanto vazio para nada.

Deram cinco e meia da manhã. Olhou para o candelabro e novamente pensou: “Já é tempo”. Lembrou-se de ter lido que os romanos quando ficavam velhos, cinquenta anos mais ou menos, se matavam. O suicídio era justo e até ético em Roma quando o indivíduo chegava a uma idade avançada e ficava inútil. Eugênio estava nos cinquenta e embora não estivesse na Roma Antiga, o suicídio estava ali na sua mente.

Voltou para o quarto. Arrumou a cama. Pegou o revolver na gaveta da mesinha de cabeceira. Sentou na cama. Colocou o cano da arma na boca. Sentiu um gosto metálico misturado à pólvora. Engatilhou e na hora de atirar desistiu. Guardou o revolver, voltou a se deitar. Agora seus olhos obedeciam ao comando do mestre que mandava ficarem quietos. Os pensamentos foram acalmando, o dia já tinha os primeiros raios do sol e Eugênio dormiu.