Revelações

− Muito bem, querida, pode se vestir.

− E aí, doutor? Será que eu posso ter filhos?

− Bem... Infelizmente não.

− Como assim, doutor? O quê que houve?

− Nada demais. Apenas você não pode ter filhos por ter feito laqueadura.

− Hein? Quê? Laqueadura?

− Sim, laqueadura.

− Como assim, doutor? Eu nunca fiz laqueadura!

− Fez sim.

− Não fiz não! Nunca!

− Fez sim. Fui eu mesmo que operei você.

− Não, doutor. O senhor está enganado. Eu fiz uma pequena cirurgia de mioma, lembra?

− Não, querida, foi laqueadura, mesmo. Eu inventei a história do mioma pra fazer a laqueadura.

− O senhor fez o quê?

− Isso mesmo que você ouviu. Fiz a laqueadura no lugar da retirada de mioma.

− Como assim, doutor? Por que o senhor fez isso?

− Bem, minha filha. Sente aí que eu tenho algumas coisas pra te contar.

− Não me chame de minha filha, que eu não sou filha e eu não quero me sentar! Quero saber que história é essa de me fazer laqueadura sem minha permissão! Meu Deus, eu sempre lhe falei que queria ser mãe! Era meu maior desejo na vida!

− Eu sei. Por isso fiz a laqueadura.

− Não, eu não posso acreditar nisso. O senhor não podia ter feito isso! O que senhor tem contra eu ser mãe?

− Na verdade, nada. Eu tenho é contra você ter filho.

− Eu acho que não entendi isso. Dá pra ser mais claro?

− Bem, é que eu não queria que você tivesse filho algum. Pra não atrapalhar sua carreira.

− Não atrapalhar minha carreira? Que absurdo é esse?

− Bem, nem sei por onde começar...

− Acredito que seja melhor pelo começo.

− Não é tão simples.

− Imagino que não. Afinal, quando o senhor se deu esse direito?

− Você não entende. É o amor de mãe que faz isso.

− Como? Amor de quê?

− Amor de mãe, Samara. É que, na verdade, eu sou sua mãe.

− Como é que é doutor? Mãe? O senhor bebeu?

− Não, querida, sou eu sim. Sua mãe.

− Olha doutor, eu não estou gostando da brincadeira. Primeiro o senhor diz que me esterilizou sem eu saber e, agora, fala que é minha mãe. Dá pra explicar de uma vez se isso é alguma pegadinha ou se o senhor está maluco?

− Samara, eu sou sua mãe sim. Estive disfarçado, quer dizer, disfarçada durante quinze anos pra cuidar de você pessoalmente. Cuidar pra que você tivesse um caminho de sucesso.

− Como assim? O senhor quer dizer que é minha mãe disfarçada de doutor? A minha mãe, quer dizer, você, não morreu quando eu era adolescente?

− Não Samara. Não morri. Você sempre foi uma menina decidida, de personalidade. Aos quinze anos não queria mais receber meus conselhos. Não queria mais me ouvir. Dizia que eu a sufocava com meu excesso de preocupação. Então resolvi desaparecer de propósito. Forjei minha morte pra sumir de sua vida, ou pelo menos fingir que sumia.

− Mas por que, mãe? – Meu Deus, eu estou chamando um senhor de mãe – Por que isso? Por que enganar a mim e ao papai?

− O Abelardo? Aquele bocó sabia de tudo. Quer dizer, de quase tudo, mas ai dele se te contasse.

− O quê? O papai sabia de toda essa farsa?

− Não o culpe, Samara. Fui eu que disse para ele não falar nada. Queria que ele me dissesse tudo de você. Me manteria informado quando estivesse trabalhando aqui.

− Como é?

− Já disse que planejei tudo. Sairia da sua vida através de uma falsa morte. Depois, passaria a vigiar você de longe, que dizer, de bem pertinho aqui no consultório.

− Peraí, mas você não era veterinária?

− Não, não. Eu fazia medicina. Disse que era veterinária para você não desconfiar de me ver usando jaleco quando fosse à universidade.

− Mas eu via um diploma de veterinária na parede de casa!

− Pois é. Era falso. Queria me formar em ginecologia para poder ficar perto de você e vigiar sua saúde.

− Será que eu entendi bem? Você queria me vigiar? Fingiu que morreu para me vigiar de perto sem eu desconfiar? É isso?

− Exatamente.

− Mas mãe, eu não entendo por que tudo isso!

− Calma, você vai entender. Como disse, você era muito decidida e eu não conseguia convencê-la de ser advogada.

− Mas é claro que eu não queria ser advogada! Eu queria ser professora!

− Pois é. Esse é que é o problema. Você queria ser professora. Obviamente não tinha a menor noção do que queria. Por isso, tive que agir.

− Como assim, teve que agir?

− Bem, primeiro tive que contratar o Hugo.

− Quem é Hugo?

− Aquele que você chamava de Vítor.

− Mas o nome dele era Vítor.

− Não era não. Era Hugo. Ele se apresentou a você como Vítor.

− Peraí. O nome dele era Hugo e ele se apresentou como Vítor? Por quê?

− Porque Vítor era mais forte, mais sonoro. Hugo era muito cafona.

− Como é? E por que ele fez isso?

 − Porque eu mandei. Eu o paguei para se aproximar, se apresentar com esse nome e namorar você.

− Mãe, eu não acredito! Você contratou uma pessoa para me namorar? E por quê?

− Ora, para te convencer a ser advogada! Ele já cursava Direito e, namorando você, iria sempre falar bem do curso, da profissão. Iria, aos poucos, influenciando você para fazer Direito e desistir da ideia de ser professora.

− Oh, não! E não é que ele conseguiu me convencer a ser advogada? Ele falava tão mal do magistério que eu acabei desistindo! Por isso que, depois que eu me formei, ele foi embora. Namorei aquele canalha por oito anos! Meu Deus, como sou burra!

− Não, minha querida. Eu é que fui muito sábia em contratar as pessoas certas para te influenciar.

− “As pessoas certas”? Houve outras?

− Sim, claro. Teve a Analice.

− Analice?

− Ah, sim, claro. Você a conheceu como Bernadete.

− O quê? A Bernadete foi contratada para me espionar? Mas ela era a empregada!

− Um disfarce. Eu precisava de uma mulher para te vigiar também. Os homens são muito patetas.

− Você não podia fazer isso!

− Como não? Se estivesse viva, não iria te observar mesmo? Oh, claro, ainda estou viva. Bem, ainda teve a Bernadete.

− De novo a Bernadete?

− Não. Estou falando de outra Bernadete. Que você conheceu como Amanda.

− Mas mãe, a Amanda é minha prima.

− Não é não. A “Amanda” era uma personagem inventada por mim. Contratei-a para te acompanhar de mais perto ainda. Só ela podia entrar em seu quarto, lembra? Só ela sabia seus segredos, pois você contava tudo a ela e, depois, eu conseguia ficar sabendo.

− Eu não posso acreditar! Como pôde? Inventar uma prima para me espionar! Isso é total violação de privacidade!

− Sabia que iria dizer isso! Mesmo não querendo ser advogada, você já defendia seus direitos com unhas e dentes.

− Não mude de assunto! O que você fez não tem o menor cabimento! Quem mais me espionou?

− Calma, não precisa ficar nervosa. O seu tio Manuel.

− Mas o tio Manuel...

− Eu sei. Ele dizia que era meu irmão e que tinha ficado anos longe da gente. Tudo mentira. Ele apareceu somente depois da minha “partida” pra colher mais algumas informações. Aquela história de que sempre quis conhecer sua sobrinha predileta pessoalmente, mas vivia viajando, foi criada por mim também.

− Mas ele me levava para tomar sorvete. Me levava ao Shopping, ao zoológico...

− Pois é. Ele era muito profissional.

− É por isso que faz dois anos que ele não liga mais...

− Humm... Não. É que ele morreu de acidente de moto. Mas, enfim... Não era seu tio.

− O quê!? Morreu?! E agora? Sinto como se tivesse perdido alguém importante, mas, ao mesmo tempo, sinto que fui duplamente enganada!

− Espera aí que eu ainda não terminei. Tem o Clóvis, que dizer, para você, Ataíde.

− Como assim o Ataíde? Ele é apenas o empreiteiro da casa!

− Pois é. Assim, ele podia ter acesso ao seu banheiro para consertar a pia, lembra? E aí, qualquer coisa mais íntima que você tivesse, remédios, pomadas, xampus, sabonete íntimo, eu poderia saber.

− Isso é um absurdo! Ele falava da filha dele cadeirante pra mim.

− Ora, minha filha, eu sou uma mãe zelosa. Tinha que saber tudo ao seu respeito. Mandei-o criar essa história pra você se sentir mais vinculada a ele. Deu certo, né?

− Eu não acredito, não acredito! Você não tem a menor noção do que é sentimento!

− Eu sei que é difícil pra você, mas ponha-se no meu lugar: você não me deixava entrar no seu mundo, não confiava em mim.

− E aí você resolve arrombar a porta e entrar assim mesmo quando eu estou dormindo, não é?

− Não é bem assim...

− Ah não! Como é então?

− Bem, eu precisava mostrar a você que eu estava certa. Como você não me ouvia, eu resolvi falar com você através de outras pessoas. E elas não “arrombaram” nada para saber da sua vida. Entraram normalmente e foram sabendo de você o que eu saberia se morasse ainda com você.

− Acho que eu não contaria a você os segredos que contei à “Amanda”, ou melhor, à “Bernadete”, minha “prima”.

− Bom, mas isso não vem ao caso agora. O importante é que pude mostrar assim que eu tinha razão.

− Como é? Tinha razão? Não consigo enxergar onde, “mamãe”.

− Ora, você seguiu a carreira de sucesso como advogada! Não perdeu uma causa sequer. Sem filhos para atrapalhar, pôde se dedicar ao máximo em cada causa.

− É, não perdi... Peraí, não vá me dizer também que...

− Eu sei minha filha, é chato dizer isso, mas... é isso mesmo.

− Não acredito no que estou ouvindo, mãe!!

− Calma, Samara!

− Calma nada! A senhora contratou alguém para ser meu cliente?

− Contratei, não nego. Cliente e acusado. Armavam um caso e te chamavam. Era para te dar mais segurança. Para estudar bem as causas e não perder.

− Quantos a senhora contratou?

− Todos.

− O quê? Todos?  

− Todos, para você sentir bastante confiança quando fosse defender alguém sozinha.

− E quando é que isso iria acontecer?

− Bem, no planejamento, ainda tinha uns duzentos.

− O quê? Então a minha carreira toda foi apenas um teatro? Um faz de conta?

− Não, que é isso? Claro que não. O seu pai é seu pai mesmo. Um bocó, mas é.

− Você não podia ter feito isso, não podia...

− Não chore, Samara, quer dizer, acho que agora já posso contar o resto...

− Como assim, “resto”? Ainda tem mais? E por que não tira logo esse disfarce?

− É que eu fiz plástica para ficar assim. Agora que você já sabe, preciso reverter.

− É muita loucura numa história só... E qual é o resto, então?

− Bem, é um detalhezinho besta...

− Vindo de você, já sei que não é tão besta assim.

− Que nada. É uma coisa à toa. Uma bobagem...

− “Bobagem”? Você me diz que forjou a própria morte pra me espionar sem eu te notar, contratou um monte de gente pra se infiltrar em minha vida, pagou gente pra me enganar e agora deixou uma “bobagem” por último?

− Era para preparar você...

− Não creio que eu esteja preparada, mas vá lá.

− Bem, Samara. É que você não é “Samara”.

− Essa não. A loucura não tem fim, meu Deus. Como não sou Samara?

− Pois é. Na verdade, você não é “ela”, é “ele”, quer dizer, nasceu “ele”.

− Mãe, não brinca com essas coisas...

− Não estou brincando. Eu sempre quis ter uma menina, mas...

− Eu não acredito que você quer me dizer o que eu estou pensando!

− É isso mesmo: você nasceu menino, mas eu queria uma menina.

− Isso é um absurdo!

− Aí eu esperei você fazer doze anos para fazer a cirurgia.

− Não acredito!! É por isso que eu sentia tanta dor! É por isso que não me deixava tomar banho sozinha! É por isso que eu sempre sentia uma pressão no meio das pernas. É por isso que fiz uma cirurgia com doze anos e as dores passaram. Claro: não tinha mais nada sendo apertado!

− Pois é, batizei você de Samara. Para mim, você nunca foi menino.

− E o meu pai? Nunca falou nada?

− Aquele bobão? Nunca desconfiou de nada.

− Mas mãe, o que você está me contando é um absurdo! Eu sempre tive orgulho de ser mulher, mas nunca imaginei que já fui homem. Quer dizer, na verdade, biologicamente, sou. Embora saiba que sou uma mulher, agora sei que biologicamente, sou homem. Jamais poderia gerar filhos.

− Pois é. A história da laqueadura era falsa. E a do Mioma também. Foi uma cirurgia para alargar mais um pouco sua nova genitália. Você estava crescendo.

− Eu não acredito. Entrei nesta sala com a esperança de gerar filhos e agora descubro que a minha vida toda é uma farsa. Que tudo nela foi manipulado desde o início. Que deixei de viver uma vida de homem porque minha mãe queria menina, que minha mãe fingiu morrer para controlar minha vida, que minha prima e meu tio nunca existiram e eu era rodeada por espiões, que minha carreira é um verdadeiro teatro e que meu ginecologista nunca foi homem e é minha própria mãe. Esqueci alguma coisa?

− Não é verdade Samara. Nem tudo é mentira. Seu pai é seu pai mesmo. Um bocó, mas é seu pai.