O cantor no divã

Ao entrar no consultório do analista, ele cumprimenta-o e é convidado a se deitar no divã para começar a sessão. Sr. Sigreud, o analista, inicia o diálogo:

― Bem, é um prazer conhecê-lo pessoalmente. Na verdade eu tinha dúvidas se você existia mesmo.

― Como assim?

― Bem, é que você é um astro da música e a gente fica meio que extasiado em vê-lo na TV. Ao vivo, então... parece um sonho... mas... o que o trouxe aqui em meu humilde consultório? Quer um copo de suco? De laranja obviamente, que é seu suco preferido e com um pouquinho só de açúcar refinado.

― O meu problema é não saber lidar com o excesso de tietagem em torno de minha pessoa. Isso está me deixando maluco.

― Ah, é isso é? Hunc! (pigarro)

― Bem, conte-me mais de seu problema, por favor.

― Bom, eu me lembro de que, quando criança, eu via os cantores na televisão e desejava ser exatamente isso quando crescesse. Eu achava demais ver as pessoas agarrando o cantor na hora em que ele se dirigia à plateia. Era uma sensação maravilhosa. Era um êxtase e eu sentia que estava lá abraçando ele também. Não perdia um programa do Chacrinha por causa dos cantores. Mas é necessário mesmo segurar minha mão, doutor?

― É pra aliviar a tensão da primeira sessão. Mas continue, por favor.

― Depois eu lutei para realizar esse sonho de ser artista. Estudei. Fiz aulas de canto e violão. Ouvia todos os discos que meu pai comprava e participava de eventos musicais na escola e na minha cidade. Aí surgiu a oportunidade de participar de um programa de calouros e dois festivais de música. Foi o início de minha carreira. Mas por que o senhor não pára de alisar meu cabelo?

― Nada não. E depois?

― Aí eu assinei contrato com uma grande gravadora e com um empresário que me passou a me arrumar shows para fazer e comecei a ganhar dinheiro, fazer carreira e me consagrar como ídolo musical. Mas por que está tirando self de nós dois?

― Relaxa. É só pra registrar a consulta. E então, o que deu de errado depois?

― O que deu de errado é que eu passei a viver uma vida diferente da que imaginava. Pensei que, ao ganhar muito dinheiro com a música, eu iria comprar e curtir casa com piscina, sala de jogos, campo de futebol pra jogar como os amigos, fazer churrasco aos finais de semana, carro para passear pela cidade, viajar para diversos países e conhecer seus pontos turísticos, seus principais restaurantes, etc. Dá pra afastar só mais um pouquinho?

― Claro, claro. E não foi isso que aconteceu?

― Só a parte de ganhar dinheiro e comprar. Agora viajar a passeio, curtir carro e casa, nem pensar. Não tenho tempo e nem privacidade. Os fãs ficam de plantão na porta de minha casa me implorando para eu mandar um tchauzinho. Nos hotéis é a mesma coisa: perseguição desde o momento em que me hospedo. O senhor acredita que dia desses um fã apareceu entalado na chaminé de minha casa?

― Sei, sei. É a síndrome de Papai Noel. Costuma afetar fãs de astros como você. E o que mais?

Nos aeroportos não consigo sair de lá em menos de duas horas depois que desembarco, pois tenho que atender a todos os que querem autógrafos ou tirar foto. Todas as semanas, praticamente todos os dias. Os carros que tenho só enfeitam minha garagem. Nem sei andar direito pela cidade. Preciso de motorista particular para dirigir meu carro, o que, obviamente, não é a mesma coisa que dirigir seu próprio carro. Mas, doutor, eu não sabia que essas consultas pediam impressões digitais.

― Pois é, temos que ter o máximo de segurança contra falsificações. Coisa de rotina, não ligue. E o que mais tem pra me contar sobre sua angústia?

― Olhe, doutor, eu não estou conseguindo viver como eu queria. Eu não vou pra onde quero. Não encontro as pessoas que quero. Não como o que quero, enfim, estou vivendo outra vida. Uma vida que não é minha: é de um artista, uma pessoa pública. Mas não sou eu. Eu preciso de uma coisa que todo ser humano sonha em ter: liberdade! Mas o meu estilo de vida e o meu trabalho não me dão isso. Tudo o que faço é determinado pelos meus empresários. Não faço nada que não seja por ordem deles. Eu não aguento mais!

― Um tanto rebelde, não? Não quer obedecer mais ninguém. Já tratei muitos adolescentes assim, mas você é outra história. Agora eu quero lhe pedir que vire de bruços, por favor.

― Como assim, de bruços? Não entendi.

― Calma, querido. Faz parte do tratamento. Assim, você se sentirá mais próximo da origem de tudo. Do útero materno. Vamos reprogramar suas expectativas e sonhos para que você aprenda a lidar melhor com sua vida atual. Não se preocupe. Não dói nada.

― E o senhor já fez isso com algum outro artista?

― Se já fiz? Conhece o Leonard Choppeng? A Barbara Tunnik? O Pablo Sotomayor? O Arthur Bertunowisk?

― Não doutor, nenhum deles.

― É. Você anda muito atarefado mesmo; nem sequer tem tempo de acompanhar os outros artistas. Eu entendo.

― Ei! E esse beliscão no meu traseiro? Isso tá parecendo assédio!

― Assédio? Nota-se que vocês, artistas, precisam se atualizar nas notícias. Isto é um modo de testar se o bebê já está no útero. Ele pode sentir qualquer estímulo externo.

― Mas ninguém belisca um bebê dentro de uma barriga!

― Mas podemos causar a mesma sensação. É só beliscar o dedão esquerdo da mãe durante a lua nova.

― Hein? O senhor tem certeza? Isso não é superstição?

― Xiiiiiii! Silêncio! Agora devemos nos concentrar em sua reprogramação intra-uterina pós-desvios de causa-efeito na endogênese batraquiana.

― É o nome de sua técnica?

― Mas você pergunta, hein? Não se preocupe, que inventei agora. O importante é relaxar, tentar dormir e deixe o resto por minha conta.

― Mas doutor, estou muito nervoso. Não quero dormir. E acho que agora o senhor pode sair dessa posição de massagem tailandesa. Afinal, não dá pra relaxar com isso de jeito nenhum.

― Ok, já entendi seu problema. Não precisa mais dormir. É uma grave resistência a estímulos do tratamento que lhe impedirão de qualquer avanço. Infelizmente, não poderei fazer nada por você.

― Como assim? Está dizendo que não consigo sequer ser tratado?

― Infelizmente, é isso mesmo. A falta de confiança em seu analista impede o sucesso de qualquer tratamento. Não posso fazer nada.

― Está bem, doutor. Eu vou confiar no senhor. Pode fazer o que quiser. Eu quero mesmo é me conhecer e me reprogramar para me adaptar ao meu estilo de vida, pois tudo que sei fazer nesta vida é cantar. Passarei fome se desistir da carreira de artista!

― Ótimo! Então vejo que posso passar logo para a outra etapa do tratamento, pois agora você demonstra mais confiança.

― Peraí, doutor! Aonde o senhor vai?

― Ora, onde. Buscar o equipamento necessário para a continuação do tratamento que vai estimular sua submissão e aceitação de seu estilo de vida, seu bobo.

― Ah, sim. E o que é?

― O que haveria de ser? Algemas, máscaras e chicote, claro!