Velas

 

Para uma pequena cidade do interior mineiro, perdida a muitos quilômetros de qualquer grande cidade, oculta entre montanhas e espessa vegetação, ainda remanescente da Mata Atlântica, a sirene da única viatura policial era um grande acontecimento.  Aquele fusquinha 1200, ano 1968, preto e branco, pneus “linguiça”, com uma grade metálica separando os bancos dianteiros dos traseiros impunha sua autoridade.  Interessante naquele veículo é que, como eram apenas duas portas, o eventual apreendido acessava o banco de trás, reservado aos capturados, de uma forma bastante deprimente: com as mãos algemadas às costas, o detento entrava quase se contorcendo e se arrastando sob a grade separadora, pelo vão, quadrilátero exposto quando se baixava o encosto do banco do passageiro.

As crianças olhavam com curiosidade aquele veículo trafegando em altíssima velocidade, quase sessenta quilômetros por hora.  As pessoas, então, sabiam no seu íntimo que alguma coisa grave havia ocorrido. O zumbido da American sirene SS651MT, instalada no teto daquela baratinha da PM, que ainda não possuíam as vibrantes luzes vermelhas, davam o tom de, talvez, um momento histórico para a cidadezinha.

O foco daquela operação, soube-se mais tarde, era o Sô Laurindo, um simpático senhor de seus sessenta e oito anos de idade, magro, calvo, negro, adepto das religiões afro, que mantinha um diminuto Centro Espírita de onde tirava seu sustento pela doação de uns poucos e inconfessos membros. Quem assumiria ser seguidor da macumba, termo que alcunhava equivocadamente qualquer religião ou seita de ascendência africana ou espírita? Seria, sem dúvida, deserdado do convívio social, eminentemente católico, falsamente puritano, hipocritamente temente a Deus.

E a acusação fora feita por uma beata, vizinha que morava próximo à casa do pobre homem, na outra esquina do curto quarteirão. Ela era das raras pessoas ali que possuíam uma linha telefônica, num lugar onde menos de meio por cento dos moradores podia fruir de tal dispendioso luxo.

- Ele fica olhando para a minha filha, e para mim, com olhar libidinoso! Não podemos tolerar isso nessa vizinhança de gente honesta.

Declarou a senhora de meia idade, segurando pela mão a filha de seus vinte e dois anos.

Bem no fundo, desde que o marido a abandonara por uma jovem da idade de sua filha, que ele havia conhecido numa de suas frequentes visitas à rua boêmia da cidade, a irascível senhora vivia ressentida e se recolheu. Recrudesceu no hábito de fiscalizar e controlar toda a vida dos vizinhos através das persianas fixas da janela de madeira de sua sala, ante a qual se ajoelhava num velho sofá verde, em que já imprimira, pelo uso constante, a marca de seus joelhos. O marido havia sumido da cidade, não sem antes declarar a muitos dos colegas e amigos, o relacionamento difícil com a esposa dominadora e, muitas vezes, histérica.

A esposa traída e abandonada se mantinha com alguns aluguéis que auferia de imóveis herdados da família, apesar de poucos luxos, como a linha telefônica utilizada em raríssimas vezes. Uma delas, para denunciar o velho pai-de-santo, por quem nutria desprezo, tanto pela opção religiosa quanto pela etnia, pela cor da pele.

O veio Lau, cognome do senhor Laurindo, era egresso da antiga usina de açúcar, agora em vias de encerrar atividades. Foi aposentado por invalidez após um grave acidente no moinho que por pouco não lhe ceifou a vida, enquanto auxiliava um amigo que também se feriu; mas herdou uma sequela importante que reduziu os movimentos do braço direito e uma cicatriz profunda do mesmo lado do corpo, da axila ao íleo, como um papel celofane amassado de coloração incomum. Tinha catarata. Nos dois olhos. Sua visão, que já não era boa quando jovem, agora era um quase nada, refletindo borrões e imagens distorcidas.  Mas ele nem se ressentia muito disso. Desde que a esposa fora para outro plano, há pouco mais de onze anos, ele dizia que a luz de sua alma se fora, então já não se importava muito a dos olhos.

Era um homem bom. Apesar de todas as mazelas de seu corpo e por sua idade, das dores físicas e da saudade da companheira de tantas histórias, com frequência capinava os cantos da rua, varria as calçadas, inclusive da vizinhança, ajudava a alimentar e hidratar os cães e gatos que por ali passassem. Rezava por quem padecia, dava bons conselhos, tinha o caminhar daqueles que haviam, há muito tempo, vencido a pressa, superado a aflição. Era um homem bom.

Essa vida modorrenta do bairro, encontrava seu par nas pernas do velho Lau. Por outro lado, se nos fosse dado fotografar sua mente, veríamos revelado o burburinho das grandes cidades que nunca dormem, cujas luzes rivalizam com o próprio sol na arte de brilhar e esmagar as sombras em reflexos de policromia. O mesmo espectro luminoso que, acariciando com doçura ou frenesi cada contorno de um rosto, cada esquadria dos edifícios, cada bueiro que capte, pelas enxurradas das chuvas os nossos dejetos e que, enfim, decairá de seu glamour, cederá diariamente o seu fulgir ao sol que sempre volta ao fim de cada noite.

Este homem velho, cansado, solitário, em paz e quase cego, sofre agora a acusação de assédio.  Quem, em tão incultas plagas saberia dizer o que significa esta palavra: “assédio”? O que motiva alguém ao desejo de transferir a sua própria dor a outrem, como se causar o mal remisse o assombro de sua alma, incapaz de alguma cura, por recrudescer nos gestos de empáfia frente à vida; na ignomínia da intriga, na tristeza de não se perceber o agente do escárnio à própria felicidade? Quem saberia dizer?

A viatura estaciona e dela saltam os dois policiais.  Um deles, de meia idade, com um jeito característico de quem já está contando os minutos para aposentar, vestir um calção surrado, um par de chinelas velhas e pescar até o fim de seus dias. O outro, um pouco mais jovem, de uma magreza cadavérica, e expressão também cansada, é o primeiro a falar e questiona:

- ... Mas é o veio Lau. Tem certeza de que é esse o endereço?

- Sim. Também acho que deve ter algum engano, mas vamos cumprir a ordem, depois a gente vê.

O velho senhor já havia ajudado a ambos os policiais em ocasiões distintas, por isso, e por conhecerem a sua história e antecedentes, os policiais, constrangidos, duvidavam da acusação. No entanto, precisavam cumprir a ordem. Mas não algemaram o veio Lau. Nem o obrigaram a entrar na “gaiola”. O mais jovem cedeu o banco dianteiro e se esgueirou para o banco de trás.

O delegado, por seu turno, como tantos naquelas redondezas, também tinha respeito por aquele velho homem. Mas precisava cumprir os preceitos legais.

Ao final dos trâmites iniciais, quando já caiam juntas, sobre a pequena cidade, a negra noite e uma chuva fria, era hora de encaminhar o “macumbeiro” à cela. O veio Lau, com um sorriso doce e ao mesmo tempo triste, vincado por duas lágrimas, sentia um peso que nunca sentira antes. O peso dos anos, da solidão, da difamação, da ausência de sua amada Teuzira, dos filhos naturais que nunca teve e da enorme prole do mundo para os quais sempre fora pai.

- Amanhã vamos resolver isso, seu Lau. Tem coberta e um travesseiro aí na cela. Pode usar aquele banheiro ali no canto.  O senhor precisa de mais alguma coisa?

- Ô meu fi, priciso de vortá pro meu cantim, pra cultuá minha véia. Eu nem divia de tá aqui.

- Seu Lau, também acho que tem coisa errada aí, mas até amanhã a gente resolve. Espero que o senhor entenda. Eu sou delegado, mas esse tipo de acusação tem que ser apurada.  Mas tenho certeza que amanhã tudo se resolve.

- Sim sinhô. Mais hoje era aniversário dela.  

- Não está nas minhas mãos. O senhor precisa de mais alguma coisa?

- Sim sinhô. Pode trazê uma vela? Pro niversário dela?

- Vou providenciar.

Não foi difícil atender àquele pedido simples. Às vezes, em dias de chuva como aquele, havia queda de energia, assim se mantinha no velho armário atrás da mesa do delegado, um maço de velas longas, para essas emergências.

Foi entregue ao veio Lau duas velas já acesas. Devidamente trancada, mais por hábito do que por necessidade, a grade do calabouço, os policiais, acostumados à falta de quaisquer ocorrências, se recolheram ainda cedo naquela noite escura e chuvosa, para aproveitar o tamborilar das gotas nos telhados que acalentava seus sonos pesados e, quase sempre despreocupados.

Havia chuva, mas não havia vento. As poucas pessoas daquele aglomerado de casas cheias de lacunas deixadas pelos filhos jovens que foram buscar em outras plagas, oportunidades de estudo e de emprego, tiveram uma noite sufocante. Estava frio, silencioso demais, e mesmo assim com um estranho abafamento que dificultava respirar. Não se ouvia o costumeiro latido dos cães, nem o cantar dos galos, ou qualquer pássaro. Mesmo a chuva não diminuiu o volume, apenas parece cair mais devagar e tocar de leve o chão, as folhas, os telhados, como a evitar qualquer transtorno a tão consistente silêncio.

Sem qualquer distúrbio a noite seguiu lenta, calma, fria e muito escura.

Por volta de cinco e meia da manhã, a vida parece sair de seu estado letárgico.  Algumas lâmpadas se acendem no casario, quebrando, pelas vidraças e portas, o negrume da noite. Agora já se percebe uma brincalhona brisa. Ouve-se uma porta que bate, alguns latidos e cantos de pássaros. A cidade acorda.

Esmeralda, a filha da beata, sentada à mesa observa as costas da mãe, numa camisola surrada de dormir, os cabelos ainda amassados do travesseiro, as plantas rosadas dos pequenos pés cujas sandálias aguardavam em frente ao sofá o retorno da velha senhora que já então fiscalizava a rua pela veneziana. Foi o externar do rancor e da miséria de alma da sua mãe, e ambas sabiam. Foi preconceito e desprezo pelo quanto era querido aquele homem velho, encurvado, vestido sempre com simplicidade, negro e sem grandes posses.

Distante desse olhar, na delegacia do povoado, os dois policiais e o delegado olhavam aturdidos para a cela em que prenderam seu Lau.  Tudo estava conforme deixaram na noite passada: as grades aferrolhadas; o catre, as cobertas e o travesseiro intocados; os restos, em montículos, de duas velas exauridas.

O espanto dos policiais se justificava por um cheiro consistente e ao mesmo tempo suave de jasmim que só se percebia dentro da cela... e, claro, a inexplicável ausência do veio Lau, de quem jamais se teve notícias desde aquela noite.

Dizem que...

Ora, não importa o que dizem. O que se sabe é que a maledicente beata apresentou uma profunda depressão que a acompanhou em tristeza e choro até o fim de seus dias; distante de sua jovem filha que, pouco depois da falsa acusação por sua mãe, também sumiu daquela apagada aldeota, fugida com um jovem namorado, em busca da própria felicidade.