A perseguição

Início da perseguição: noite de 5 de novembro de 2023

Término da perseguição: manhã de 11 de dezembro de 2023

 

     Não sei ao certo por que tenho sentido essa estranha urgência de me mover mais rápido, de não parar quieto nem por um segundo, de passar despercebido, diria mesmo que camuflado, de não deixar vestígios nem minha impressão digital, de não me demorar e nem ficar em pé empertigado ao alcance da luz. Não me recordo de ter feito algo errado embora minha memória possa estar me enganando, há espaços em branco e há como borrões, pensamentos indefinidos, fragmentos de imagens duvidosas, espaçadas, intermitentes como um vagalume. A dúvida é um instrumento que pode muito bem servir de tortura, pois a falta de certeza, de clareza, da compreensão do espaço que me cerca contribui para este estado de inquietude que me assola.

    A única certeza é que eu vi a silhueta esguia e sorrateira, que achava que fosse me surpreender e me alcançar, só que a estranha urgência de me manter em constante movimento me deu uma vantagem de dois quarteirões. Por sorte ou talento eu consigo mapear os lugares por onde passo com muita rapidez e vejo as alternativas de escape. Não tenho como saber onde adquiri esta habilidade, ou se foi herança genética. Não conheci meu pai e minha mãe está longe de ser considerada um ser talhado para o combate ou para ações desta natureza, pobre dela sempre muito ordeira e ajuizada. Ela nunca falava sobre meu pai então nada sei sobre ele, só sei que os olhos de minha mãe quando se referia a tal figura traía um desgosto e um desapontamento. Nada sei sobre ele.

   Por que esta atração por saídas improváveis, por rotas de fuga, por atalhos encontrados em lugares insuspeitos? Sempre andei um pouco desconfiado, olhando para os lados, de soslaio, talvez seja o efeito da paranoia inoculada nos cidadãos empilhadas nas grandes cidades, como um veneno de ação lenta potencializado pelas imagens de caos urbano servidos em doses potentes diariamente. Vasculho por um instante minha memória de longo prazo e não descubro nenhum evento onde eu tenho sido vítima deste caos urbano. Faço uma varredura em minhas memórias de infância e não me lembro de ter sido violentado por qualquer modalidade de maldade que esteja disponível no mercado. Então de onde vem esta urgência, esta agitação imperativa que me leva a buscar saídas onde ninguém mais vê?

    Eu vi a silhueta esguia e sorrateira há poucos minutos. Na galeria, entre os quiosques de roupas, com muitos casacos longos, vestidos longos, echarpes penduradas, amontoadas as pessoas que escolhem suas próximas roupas, seus casacos para o inverno que não tarda. A iluminação diminuída por contenção de custos dificulta um pouco as escolhas, quem sabe para ocultar a qualidade duvidosa das peças de vestuário na espera de serem vendidas, então uma certa quantidade de confusão visual está embutida nesta equação, e assim, quem sabe, uma silhueta esguia, sorrateira pode estar mimetizada nesta penumbra proposital. Mas não quero gastar nenhum segundo com essa suposição porque preciso me afastar o mais possível da silhueta esguia, sorrateira e duvidosa.  Não vou dar de bandeja nenhum centímetro de vantagem, então apresso os passos e de uma distância agora suficiente me escondo atrás de um letreiro luminoso onde olho em direção à galeria para me certificar que despistei a silhueta esguia, sorrateira, duvidosa e improvável.

     Abrando um pouco minha respiração e sinto o ar carregado deste beco apinhado. Um homem encorpado se aproxima pelo meu lado esquerdo e minha atenção se apruma imediatamente. Cerro as mãos e logo procuro o bolso do casaco em busca de defesa. O homem encorpado carrega uma bengala, a qual arrasta de um lado para outro pelo piso tátil num sinal claro de sua deficiência visual. Dou um suspiro aliviado e saio de seu caminho, levemente envergonhado. Não demoro mais do que uns segundos nesta distração e apresso o passo em direção ao fim do beco.

     No final do beco há uma profusão de latas de lixo com cerca de um metro e meio de altura encostadas ao muro baixo de onde pode-se facilmente pular para o beco de trás, simétrico e apinhado de restos de papelão e plástico. Transponho com agilidade o muro baixo não antes de deixar de olhar para ver se estou sendo observado. Ando apressadamente e entro na rua paralela. Outra rua similar a muitas outras desta zona de comércio popular. A feição urbana antiga, ultrapassada e decadente desta região é um ponto forte a meu favor, repleta de vãos entre as construções, escadas em espiral, tendas e bancas avulsas, grandes placas de anúncios apoiadas nas calçadas, iluminação deficiente neste crepúsculo, tudo o que preciso para me esgueirar e desaparecer caso seja necessário. 

     Cubro minha cabeça com meu capuz deste casaco cinza escuro, desbotado e anódino, praticamente invisível no meio desta multidão. Sou discreto, sempre fui e acho isto uma grande vantagem. Não deixo rastros, ou pelo menos penso que não, mesmo neste ambiente de atroz vigilância. Mesmo que faça um esforço consciente de diminuir a velocidade do passo eu não consigo. Verifico sempre meu relógio para checar a quantidade de passadas ao longo do dia e nunca acho suficiente. Me aproximo da loja onde são vendidos chapéus. Não entendo muito a insistência ou a persistência de se manter em funcionamento uma loja dedicada à venda de chapéus, já que é uma moda tão ultrapassada, muito embora eu tenha uma grande atração por chapéus. Passo rapidamente pela porta e vejo poucos consumidores em seu interior. Não me demoro, nunca me demoro. Capto o máximo de informação num mínimo de tempo.

      A rua continua apinhada de gente, mesmo que a noite se aproxime. Talvez estejam com os bolsos ainda cheios após o dia do pagamento e se apressem a gastar antes que seja tarde demais. Passam por mim como uma torrente e ninguém repara. É o que quero, que ninguém repare em mim, mas eu estou atento e reparo em tudo. Gosto de pensar que meus olhos são duas câmeras de vigilância ligadas em tempo integral. Um homem se volta e anda rápido em minha direção. Hesito por um segundo e acelero mais um pouco. Após uns dez passos acelerados eu volto minha cabeça para perceber que ele entra numa pequena e malcuidada loja de artigos para fumantes, aquele velho hábito hoje em desuso e declínio. Vejo os olhos amarelados e os dentes enegrecidos quando o homem abra a boca num sorriso embebido em fumaça e nicotina para saudar o balconista. Sigo em frente.

    O decréscimo da luz natural é um componente a mais para aumentar o grau de atenção no ato de esquadrinhar o ambiente ao redor. Por mais treinado que eu seja o limite humano é inevitável e ainda não avançamos o suficiente para a disponibilidade de próteses oculares que permitam dobrar ou mesmo triplicar a acuidade visual. Pelo menos eu não tenho conhecimento disto, ou mesmo que já existam, que tivesse recursos para tanto. Como consequência deste atraso tecnológico a minha tensão aumenta, pois nunca tenho certeza de ter despistado de vez a tal figura esguia e sorrateira.

      Este bairro é um emaranhado de vielas e ruas estreitas. No passado já foi um lugar de requinte e destaque, mas que não soube se adaptar às mudanças. O eixo do luxo virou e se transferiu para ruas mais modernas, largas, arborizadas, perfumadas, cheias do dinheiro novo que mudava de mãos e bolsos, e os filhos e filhas desta nova geração do dinheiro novo assumiu o novo gosto, o novo estilo e se mudou com alívio. Nestes dias cheios de penumbra e alarido o dinheiro curto e duramente auferido, e em alguns casos sorrateiramente desviado, circula com desconfiança por entre as lojas apertadas, as barracas malcuidadas, as paredes sujas e rabiscadas. Este é o ambiente onde melhor me adaptei.

    Mantenho as mãos cerradas dentro dos bolsos do casaco cinza escuro. Camuflagem. No meio de tanta gente eu sempre passo despercebido, e noto tantas cores espalhafatosas em vestimentas mais espalhafatosas ainda. Na minha percepção são alvos fáceis, como se fossem latas empilhadas colocadas em cima dos tocos de árvores esperando as balas certeiras que chegam em velocidade espantosa. Evito ao máximo o contato com estes pontos de referência. Sigo em frente, e as vezes sigo para os lados, ziguezagueando. A linha reta é traiçoeira. Luz de mais é um precipício, fere meus olhos treinados. A penumbra me atrai, é onde as nuances ficam mais escondidas, o que enseja um maior esforço em percebê-las, é mais instigante e me estimula.

     Ouço um murmúrio mais alto que sai detrás de um velho cartaz da loja de artigos de toucador. Um murmúrio como se fosse uma máquina em baixa vibração. Pode ser uma voz humana, mas não tenho certeza. Eu vejo melhor do que ouço, portanto, eu dobro a atenção. A desconfiança casou-se com a curiosidade e fez morada dentro de mim. Estou ao lado do velho cartaz e sem espaço para uma saída rápida, então não me resta nada a não ser olhar e cessar a dúvida. Com alívio sinto o cheiro de álcool barato que exala de um homem deitado no chão atrás do cartaz, e que ronca despreocupadamente. Alheio a tudo e a todos, repousa sua cabeça desgrenhada num amontoado de plástico e papelão das embalagens descartadas sem nenhum pudor ou cuidado. Ele não é o único nesta posição, neste exato momento pode-se contar às dezenas os indivíduos largados em sono etílico por trás dos becos e das fachadas desbotadas, nas vielas detrás e nos vãos entre as escadas em espiral.

    A luz diminui um pouco mais ao se escorrerem os minutos. Assim eu fico mais confiante e mesmo assim eu não diminuo a atenção. Estou chegando perto da praça. Aqui o espaço fica mais aberto, porém as árvores estão muito copadas e sem poda, longos galhos que quase tocam o chão. Os morcegos já começam seu turno de trabalho atrás dos insetos que hão de encher seus estômagos por mais um dia. Os cestos de lixo atraem muitos ratos também, então as pessoas evitam esta praça que já foi ponto de encontro e hoje faz justiça ao entorno. Aqui estou mais destacado, mesmo na penumbra de uma praça com postes muito espaçados, árvores de troncos largos e escuros, e ratos que não se apavoram mais quando encontram seus predadores.

   No canto esquerdo da praça, junto à Rua dos Centuriões, uma figura baixa e volumosa repara em mim. Disso eu tenho certeza, noto sua cabeça que gira à medida que acelero o passo. Desta vez eu tenho certeza, não é uma simples desconfiança. A praça está vazia e eu dei um passo errado escolhendo esta rota. Noto que pelo contorno da figura sua mobilidade estará aquém da minha, portanto estou em vantagem se precisar correr. Para isso é que treino bastante, para não ser pego desprevenido. Para isso estou sempre com calçados adequados, para evitar escorregar no momento exato. Paro, respiro e me aprumo. Para seguir em frente eu precisarei cruzar com a tal figura. A alternativa é voltar, mas voltar é dar chance para a figura esguia e sorrateira que eu tenho certeza de que estava no meu encalço. Bom, certeza, certeza eu não saberia dizer. Impasse.

     Só cinco segundos, é o máximo que eu permito de hesitação. Decido seguir em frente e me deparar com esta figura baixa e volumosa. Não mais do que uns trinta metros nos separam. Dou passos decididos e subitamente um automóvel surge quase desgovernado, em movimento errático. A figura baixa e volumosa toma um susto tremendo e pula em direção à parede do prédio antigo e desbotado, que no passado ostentava brasões de uma realeza duvidosa, mas que hoje é refúgio para atividades ilícitas. O automóvel sobe em parte da calçada e passa perigosamente perto das pernas da figura baixa e volumosa, que solta um grito agudo carregado de horror. A cena toda foi muito rápida, mas o suficiente para entender que a tal figura baixa e volumosa estava apenas em busca de uma aventura amorosa descartável, de preferência com figuras em bom estado físico e idade tenra. Com certeza eu me encaixava neste quesito, mas eu dispenso a honraria. Passei rápido e nem perguntei se estava tudo bem à figura baixa, volumosa, assustada e lívida. O amor descartável ficaria para outra oportunidade, dado o susto inesperado.

    A Rua dos Centuriões é uma rua decadente, com edifícios quase centenários que se estendem por cerca de oitocentos metros. No intervalo a cada três edifícios há uma passagem que serve às entradas de serviços. Em tempos mais bem aquinhoados era uma maneira de ocultar os serviçais das famílias abastadas. Os empregados adentravam os recintos pelas entradas laterais, longe das vistas dos proprietários, incomodados com a visão terrena, mundana e servil. Hoje as vielas são um bom esconderijo para o comércio livre e desenfreado de Doxifedril, ScarletDream e Moxazeletl, entre outras drogas menos conhecidas. Desnecessário dizer que a delegacia de polícia mais próxima fica a pelo menos quinze quilômetros daqui. A fauna humana que se move aos tropeções por aqui não me preocupa. Todos alheios, todos desconectados, todos inertes. Sei me esgueirar e me desvencilhar com facilidade destes arremedos de seres humanos. Só quero atravessar o quanto antes esta rua. Já é noite completa e o céu está cinza. Cinza, mas firme.

   Vou em frente em meio à multidão de mortos-vivos. Relaxo um pouco minhas mãos dentro dos bolsos do casaco cinza. Avanço em bom passo e já vejo o cruzamento com a Periferal, onde os vagões de VLT passam a cada hora, lotados, sujos e inseguros. Prefiro seguir andando. O comércio de Doxifedril é livre nos vagões de VLT e pelo menos a cada semana ocorre um ou mais óbitos de usuário. Vez em quando algum é jogado nos trilhos, e aí o intervalo entre os vagões aumenta bastante. Prefiro seguir andando. Embaixo dos viadutos é mais frequente o comércio de ScarletDream, por isso se vê com frequência a sequência de corpos encolhidos em posição fetal. Prefiro seguir andando e continuar limpo. Nos prédios outrora revolucionários, arquitetonicamente falando, e hoje decadentes, ocorre de preferência o comércio e o consumo de Moxazeletl. A euforia toma conta sem freios e os muitos apartamentos hoje sem janelas e portas muitas vezes são usados como trampolim para os “Vôos do condor”, as vezes também chamados “d’Experiência de Galileu”, onde o feliz usuário desafia a lei da gravidade em seu sonho infinito de voar como os pássaros. Após tantas ocorrências os prontos socorros locais já não atendem com presteza e alguns corpos são retirados já em adiantado estado de putrefação. Prefiro seguir andando e continuo limpo.

     Nem tudo são espectros e quase mortos-quase vivos. Em certas ocasiões eu consigo sentir o cheiro do perigo, como agora. Em sentido contrário, no outro lado da calçada, dois sujeitos com gorros e viseiras de soldador se viram e atravessam em minha direção. Justamente quando chega a última viela, que liga à entrada da estação do VLT. É para isso que eu treino: arranco velozmente e quase passo por cima dos primeiros quase mortos-quase vivos acocorados na viela. Derrubei dois deles que nem esboçam reação. Em segundos eu chego ao portão de acesso e escalo com agilidade felina. Não há bloqueios e subo as escadas. Paro por cerca de três segundos atrás de uma placa com o mapa dos arredores e olho meus perseguidores. Eles pararam em frente à porta onde são feitas as transações para mais uma noitada plena de delírios. Em caso de dúvidas é melhor correr.

    Escapei, mas vim parar onde não queria, por força das circunstâncias. Não era minha intenção entrar num vagão de VLT, A plataforma de embarque está bastante cheia e mal iluminada, pelo menos isso está a meu favor. Cobri de novo minha cabeça e vou serpenteando entre os corpos tensos que esperam a composição chegar, se alinhar, abrir as portas e rezar para que nada de mal aconteça até cada estação de destino. Preciso decidir se embarco ou se saio da estação. As luzes dos faróis já despontam e o ruído característico do atrito com os trilhos está audível. A composição se alinha com a plataforma e abre as portas. O empurra-empurra dos que querem entrar versus os que querem sair já é a rotina. Tenho cerca de vinte segundos para decidir o que fazer. Se entro no vagão e sigo até a próxima parada terei obtido uma boa vantagem de espaço e tempo. No último momento antes da sirene que anuncia o fechamento das portas eu dou o último passo e me espremo no meio da multidão.

    O vagão está cheio e por medida de economia ou falta de manutenção as luzes estão parcialmente apagadas. A penumbra benfajeza aos meus olhos me protege. Mas me protege do quê, se tenho certeza de ter escapado? Com este pensamento cruzando minha mente resolvo relaxar por alguns poucos minutos até a chegada na próxima estação. De repente eu olho em direção a interseção dos vagões e lá está de novo a figura esguia e sorrateira. Um choque me traz de volta à prontidão. Meu cérebro retoma a sua velocidade usual e quase por impulso automático vou me esgueirando entre os corpos suados, cansados e amedrontados dos passageiros no sentido oposto à interseção do vagão. São apenas alguns segundos até a próxima parada.

     A estação Vanguarda chegou e consegui ficar bem na segunda linha de passageiros a desembarcarem. Uma massa de gente sai aos trancos e tropeções, mas eu me desvio e desvencilho com passadas rápidas e firmes. Em segundos já estou na escada que leva a saída. Na rua novamente e uma lufada de ar foi muito bem recebida. Por sorte eu também conheço os arredores, e a feição urbana pouco difere entre os bairros adjacentes. O relógio segue sem interrupções o seu curso e vai retirando mais pessoas das ruas neste horário. Minha atenção aumenta, pois, assim fico mais exposto. A iluminação pública aqui é um pouco melhor e os becos e vielas são mais escassos. Apresso o passo. Olho para os lados e nada me inspira cuidado. Após duas esquinas eu noto um carro estacionado com os faróis baixos e cabeças no interior. Atravesso para a outra calçada, mas antes disso reparo num sinal feito com os faróis deste veículo. Instintivamente volto minha cabeça e vejo a resposta do sinal luminoso dado por um sujeito com uma lanterna, que pisca rapidamente três vezes. Reconheço o sinal para confirmar que a transação pode ser completada. Três piscadas rápidas significam que o fornecedor espera no prédio em frente. E assim segue o ritmo frenético de suspensão da realidade nesta cidade infestada.

    Uma viatura da polícia está estacionada na próxima esquina e um policial conversa com uma figura de gênero indefinido em trajes sumários, quase supérfluos, com olhar vidrado e cicatrizes pelos braços. O policial aparenta estar muito interessado, diria até que embevecido na conversa com a tal figura. O outro policial se aproxima com um maço de dinheiros nas mãos, a “caixinha de Natal”, gentileza do bar em frente que permanece aberto até a manhã seguinte, muito embora a legislação não permita. Mas sempre se pode recorrer aos amigos. A propósito o Natal foi comemorado há dois meses.

    Não quero saber de nada disto. A fauna noturna é peculiar e já estou acostumado com ela. Há muitos tipos interessantes e curiosos que se espalham por estas ruas depois que o Sol se põe, como aquele que fica plantando bananeiras a cada dez minutos até que o Sol dê o ar de sua graça num novo dia repleto de oportunidades e esperanças. Uma vez eu parei por alguns minutos para conversar e reparei nas suas mãos calosas por conta do exercício diário e repetido à exaustão. Seu nome é Nondas, e achei bastante inusitado este nome, e ele me disse que era abreviação de Epaminondas. Ele detestava o nome e se rebatizou com o diminutivo. Não mais do que alguns minutos me deram a certeza de que aquele sujeito pacato e inofensivo, embora excêntrico, era apenas mais um dos inúmeros enjeitados, ignorados, desprezados e abandonados pela família tão logo seu estado mental ficou patente.    Morava num quarto infecto, sobrevivia de uma pequena pensão conseguida em função de seu estado mental delirante e saía todo entardecer para aprimorar suas habilidades atléticas. Cruzei com ele muitas outras vezes e sempre estava daquele jeito quieto, manso, com um sorriso tímido, roupas puídas e de cabeça para baixo. Acho que era a melhor forma que achou de ver e entender o mundo.

     Faz algum tempo que não vejo a Madame Viegas. Ela tentava de todas as maneiras manter a pose, pobre criatura. Havia sido uma mulher bem colocada na vida, cercada de luxos e mimos. Mas correm boatos que o marido descobriu uma traição, que gerou uma criança, que foi tirada de seus braços pelo agora ex-marido com influência e valiosos contatos no mundo das leis e decisões judiciais. Dizem que foi largada só com a roupa do corpo e sem nunca mais ver sua criança. Hoje perambula coberta de trapos, sem dizer coisa com coisa. Pobre criatura. Porém há os belicosos e os perigosos.

    Na Praça Subhotai Khan vive um sujeito alto e forte, de olhar flamejante e muitas cicatrizes, quase sempre ébrio e pronto para uma briga. Certa ocasião ele agarrou ao acaso um assustado pedestre, que certamente ia em direção ao seu trabalho, e quase o enforcou com as próprias mãos. Foram necessários cinco homens para dissuadi-lo, ou melhor, para apagá-lo, após uma pancada certeira com um martelo em sua cabeça. O pobre homem atacado não entendeu o que havia ocorrido e certamente jamais passou por ali novamente. Na semana seguinte lá estava de volta o brigão, com a cabeça raspada e um curativo sujo no ponto do impacto do martelo. Não julgo ninguém, só vou em frente aprendendo a desviar dos belicosos e perigosos. Corro bem e sou muito ágil. Vivo assim desde muito jovem e acho que me viciei nisto. Me adaptei à selva. Já vi muita coisa e me tornei um cético. Ou talvez um cínico, e desconfiado. Os piores são os que tem a melhor lábia, aqueles que enganam os outros por profissão, devoção ou somente má intenção. As ruas estão cheias destes também. Não só as ruas, mas também os locais designados para dar segurança e apoio, usando o divino como isca, atraindo os pobres desesperados e desiludidos para uma armadilha que acena com promessas de conforto e esperança. Os melhores na arte de enganar cresceram na vida e já se sentam nas poltronas do poder. A mim não enganam.

     Já atravessei durante esta breve digressão o espaço de três quarteirões e a companhia mais constante é o barulho de vidros quebrados e xingamentos trocados entre os bêbados, que disputam os melhores espaços embaixo das marquises e nos vãos das lojas fechadas pelo adiantado da hora. Há rumores nunca confirmados de que um acordo foi feito entre o poder público e os fabricantes de bebidas, de forma a adicionar aditivos químicos que auxiliam, e muito, na diminuição da expectativa de vida destes usuários como forma de assepsia social, inclusive com distribuição gratuita de bebida para os dependentes. A justificativa é a de tal qual numa epidemia onde se distribui remédio contra os surtos mais agudos da doença, este grave problema social precisava ser abordado e equacionado. E os ébrios unidos jamais vencidos ficavam controlados e saciados, amortecidos e apaziguados, sem causar muito transtorno aos contribuintes.

   O tal acordo secreto sempre foi negado e quem se atreveu a investigar mais a fundo teve sua carreira abreviada, e num caso extremo dado como desaparecido. Não sei ao certo, porém como ando muito e todo dia pelas ruas desta bela cidade, as madrugadas contemplam comboios de ambulâncias que vão recolhendo com frequência crescente os corpos de indigentes encharcados em tonéis de carvalho, ou qualquer madeira menos nobre. Em alguns casos o excesso de álcool era tamanho que os usuários eram incendiados e as chamas subiam celeremente, servindo de fogueira para aquecer os vizinhos de bebedeira nos dias mais frios do inverno. Todavia isto jamais chegou às páginas principais da imprensa.

   Cheguei em frente ao prédio sede da Secretaria de Segurança Interna. Quase todo apagado, apenas alguns seguranças adormecidos em guaritas. A vigilância tem sofrido seguidos cortes de verba e grande parte das câmeras que antes davam a sensação de segurança para uns e a impressão de invasão ostensiva de privacidade para outros está desligada, muito embora venham à público negar veementemente este fato. O fato é que não funcionam e não coíbem mais. Muitas delas são usadas como alvo para treino de tiro e até um campeonato foi criado, para descobrir o melhor atirador da cidade. Clandestino, é claro. O campeão recebeu como prêmio cerca de 200 gramas de Doxifedril, que foi consumido em tempo recorde. O que vem fácil, vai fácil é o que diz o ditado. O corpo do campeão foi um dos muitos que foram lançados nos trilhos do VLT. Só descobriram sua identidade por conta do pacote com a identificação do produto achado dentro de um bolso do pouco que restou de seu corpo estraçalhado.

    Pensei em costear o prédio e entrar pelos fundos, apenas pelo prazer de invadir o que antes era um símbolo do poder e do medo. Me dei de presente este pequeno intervalo de tempo como devaneio. Demorei quem sabe um minuto nesta divagação. Numa fração de segundo o som de pneus derrapando foi como um raio que tivesse caído próximo de mim. Um conversível de capota arriada dobrava a esquina, com quatro sujeitos que gritavam obscenidades, apenas uns idiotas de cara e cabeça cheia de anfetaminas. Tão rápido quanto apareceram sumiram. Mas eu me virei e lá estava de novo: a figura esguia, sorrateira e lúgubre. De relance, entre dois postes, de forma que no espaço havia mais escuridão do que o efeito das lâmpadas no solo. Pisquei firme e passei as mãos pelos olhos para ter certeza de que meus olhos estavam limpos e que não haveria dúvida. Olhei novamente e pensei ter distinguido na verdade uma pilha de sacos de lixo, parados esperando serem recolhidos. Na dúvida resolvi entrar no prédio da Segurança Pública e escalar o muro dos fundos que dava para um pequeno bosque anexo ao complexo. Estaria vazio nestas horas, já quase madrugada.

     Não hesitei mais e assim foi feito. Sem nenhum obstáculo, sem nenhuma contestação cheguei no muro e escalei, pois seus vários ressaltos facilitam muito um escalador mesmo que iniciante. Transpus o muro e desci para o pequeno bosque, que à luz do dia é bem bonito e até bem cuidado. No escuro teria alguma dificuldade, mas em menos de quatro minutos eu cheguei na outra extremidade. Pensei ter ouvido barulhos enquanto me esgueirava entre as árvores, e ouvi chamarem meu nome. Ôpa! Será que estou delirando? Não, observei com mais cuidado e percebi que era uma coruja. O farfalhar de asas em vôo ficou mais nítido e mais um rato perdeu sua vida nesta noite. Pensei no rato e na brevidade de sua existência. Pensei na coruja e sua estratégia de caça muito eficiente, seu vôo no escuro e seus olhos enormes capturando migalhas de luz, o suficiente para posicioná-la frente à sua presa. Ela em breve estará banqueteando, garantindo sua sobrevivência por mais um tempo. A vida não é fácil.

    Meus batimentos cardíacos estão normais, ou seja, normais para mim, sempre cercando a marca de 120 BPM. Este é o ritmo que eu gosto, é onde me sinto alerta. Minha mente irrigada com um fluxo intenso de um sangue vermelho, quente e jovem. Este é o meu maior tesouro, meu melhor trunfo, esta capacidade de reagir com rapidez e nunca hesitar por mais de cinco segundos. Isto pode ser a diferença entre estar quente e ágil ou frio e inerte, numa fração de segundos. Já escapei de vários acidentes e só aprimorei esta capacidade, com o passar dos dias vividos com intensidade na selva urbana.

   No outro extremo do parque há uma grade com um grande buraco. Após transpassar a grade chega-se ao vão central de um grande complexo de edifícios que faziam parte da universidade pública, hoje desativados. É um lugar perfeito para os mais variados tipos de casais, trisais, grupos mixtos, grupos múltiplos, solitários voyers, adeptos das mais diversas formas de conjunção carnal já imaginadas pelos seres humanos, prostitutas e prostitutos, aberrações diversas, fetiches simples e complicados e até jovens casais de namorados de mãos dadas, o que causa grande espanto. Há um acordo tácito estabelecido de ninguém se ocupar com a atividade de seu vizinho, um civilizado equilíbrio de se fazer vista grossa, mesmo que à luz do dia alguns participantes exibam um afetado pudor e uma fachada moralista. Alguns participantes são próceres da sociedade, formadores de opinião, líderes empresariais, intelectuais respeitados, políticos de qualquer espectro do campo, impolutos líderes religiosos, celebridades da mídia e dos esportes. Não se há de negar que é a maior experiência democrática desta sociedade, num ambiente de extremo sigilo e discrição. Pelo jeito estes prédios jamais serão reativados ou demolidos.

     Só que eu não estou interessado nestes assuntos agora. Aqui posso passar despercebido, embora ouça alguns convites e perceba alguns acenos com os olhos, alguns sorrisos maliciosos. Alguns são tentadores. Porém o estranho senso de urgência é imperativo e, tal qual Ulisses amarrado ao mastro evitando o chamado das sereias, eu atravesso aquele Domo do prazer em passo largo já dentro da madrugada. Venho no sentido oposto da ideia original da construção do complexo. Entrei pelos fundos e saio pela frente, no saguão principal, nas paredes onde estão expostos os retratos dos fundadores e financiadores, todos em poses hieráticas. Tenho quase certeza que um deles estava participando de uma animada festinha, minutos atrás na ala de Geografia.

    Saio defronte uma grande avenida com um canteiro central, muito utilizada para eventos cívicos. Está bem vazia nesta hora. Olho para os lados e cubro minha cabeça. Sigo com os olhos voltados para o chão num passo firme. Um sujeito pula por cima do canteiro central e vem na minha direção. Fico alerta imediatamente.

Ele me dirige a palavra: “E então meu camarada, tem fogo?”, com um cigarro entre os dedos.

- Não, não fumo.

- Que pressa é essa?

- Pressa nenhuma

- Para aí agora! E puxou uma faca pequena. Eu capto muita informação em curtíssimo espaço de tempo. Vi que a faca estava cega e que o sujeito estava muito embriagado. E eu não me apavoro com facilidade.

- Guarda essa faca!

- Guardo nada, me dá teu casaco! Nisso ele deu um passo trôpego na minha direção, a cerca de três metros de distância. É para isso que eu estou sempre em guarda. Num movimento rápido e inesperado para ele, eu pulei na mureta e fiquei na altura do seu peito. Dei um salto no ar e chutei com força sua cabeça. A faca voou pelo ar e o ladrão bêbado caiu para trás. Com a surpresa e a contundência do golpe ele ficou deitado, sem atinar muito bem o que havia acontecido. A avenida estava bem vazia, somente alguns automóveis passavam desatentos. Eu poderia ter descido da mureta, pego a faca e riscado minhas iniciais na cara do sujeito bêbado, ladrão atrapalhado, mas só cuspi nos seus olhos e segui em frente. Um pouco excitado pela adrenalina despejada na corrente sanguínea soltei um berro de contentamento. No outro lado da avenida, embaixo da marquise do Cine Howlin’Wood, com seu neón neogótico, uma figura me olhava fixamente, empertigada, na penumbra. Impassível. Com certeza ouviu meu grito. Foi testemunha de toda a ação. Menos de dez metros nos separavam.

    A adrenalina ainda estava abundante na corrente sanguínea e serve para duas coisas: atacar ou correr. Achei melhor correr. E corri, muito, muito rápido. Como um antílope que foge do leopardo, como uma lebre que foge da raposa, como um condenado que quer escapar de seu carrasco. Só parei três quarteirões depois, com o pulmão estourando e o coração saltando pela boca. Mesmo assim eu tinha a certeza de que ninguém ou nada poderia ter me acompanhado. Levei alguns minutos para retomar o estado inicial. Nisso eu vi uma garota que cumpria seu turno nesta esquina, olhando para mim com muita surpresa.

- Ei garoto, tá fugindo do capeta?

- Olá princesa! Nem sei dizer do que estou fugindo.

- Boa coisa você não fez, né verdade?

- Olha, de verdade eu não fiz nada errado. Não hoje, nem ontem.

-Ei, pode falar a verdade pra mim. Sou firmeza.

- Ô garota, onde você vê verdade nestas ruas?

- Ah, sei lá.

- Você já deve saber disso, não é? Quanto tempo que você está nas ruas?

- Ah, sei lá. Uns cinco anos.

-Qual sua idade?

-Vou fazer 21 no mês que vem. (Aparentava mais de trinta, mas ainda mantinha alguns traços de beleza e juventude)

-Ah sei. Qual seu nome?

- Nefer.

- Que nome é esse?

- Um cliente que me chamou assim uma vez e eu gostei. Ele disse que era de uma rainha do Egito. O nome todo eu não lembro, só guardei o início.

- Nefertiti (Lembrei do nome por completo)

- Esse mesmo!

- Tá certo. É um nome chique e diferente. E então, como está o movimento?

-Ah, tá meio devagar hoje. Os caras só querem saber de Dóxi ou ScarletDream. Se eu não conseguir uns cinco, pelo menos, o bagulho vai ficar estranho.

    Por cerca de alguns segundos me passou pela cabeça a ideia descabida de chamá-la para se juntar a mim nesta louca aventura em que me meti. Só que em seguida a realidade se impôs, e eu não quero arrumar confusão com nenhuma máfia.

- Olha Nefer, legal nossa conversa, mas eu já vou.

- Ah, você não quer subir um pouquinho? Já vai tão cedo? Não gostou de mim?

- Gostei, gostei sim. Mas eu nem sei te explicar o que está acontecendo comigo hoje.

      Neste instante eu reparo que seus olhos mudaram de direção e estão inquietos. Com isso ela me dá a indicação de que alguém, ou alguéns, se aproximam por trás. Estava bom demais para ser verdade. Nem pensei meia vez e, já com a respiração refeita eu disparo mais uma vez pelas calçadas saturadas de vício e traições. Os dois que estavam prontos para me pegaram por trás não esperavam pela reação e ficaram para trás. Dobrei na primeira rua e logo percebi que era uma rua sem saída, mas tinha certeza dos latões de lixo que sempre estão colocados junto ao muro. Não olhei para trás e pulei em cima de um latão tapado, que dava acesso para uma escada de serviço vazada. Enquanto escalava a escada vi que os perseguidores acabavam de entrar na rua sem saída. Hesitaram um pouco porque o beco estava escuro, mas eu os via com facilidade. Um deles sacou uma arma e veio em minha direção, ou na direção dos latões de lixo. Notei que estavam muito tensos, talvez pela frustação de não terem conseguido dar o bote no otário, e porque estavam expostos, de uma certa maneira. Com certeza que não me viram mais, mas eu os via e resolvi seguir adiante, não sem antes pegar um pedaço de telha quebrada e arremessar em cima de um dos latões de lixo. Com o barulho do impacto o perseguidor com a arma dispara à esmo, já que estava tão tenso e com o dedo no gatilho, sem perceber que atingira o outro perseguidor na perna. Ainda deu para ouvir com clareza o grito de dor e surpresa.

    Atravessei para a viela simétrica e vazia, totalmente vazia, com somente alguns gatos revirando os sacos de lixo atrás dos ratos graúdos que infestam o lugar. Sei que não posso relaxar nunca e a tensão só aumenta. E o cansaço começa a querer me dominar. Sou preparado, saudável e ágil, mas todos temos limites. Ao final da viela novamente outra rua cheia de edifícios comerciais vazios nesta hora da madrugada. Um solitário caminhão de limpeza urbana asperge água em jatos potentes no asfalto castigado, numa tentativa diária e quase inútil de arrastar a sujeira para baixo do tapete, ou para dentro dos ralos e galerias pluviais. É uma cena que se não fosse pela minha urgência e tensão daria alguns momentos de uma beleza quase insuportável, uma poesia urbana calcada na banalidade de uma tarefa mundana, onde os jatos de água atravessados pela luz das lâmpadas cria respingos de água refratada, quase um arco-íris em contraponto com o cinza das paredes, o negro do chão e da noite alta. O silêncio circunda o local, apunhalado pelo ruído do motor e da bomba d’água que varre impassível os resíduos da frenética atividade humana ao longo do dia. Amanhã tem mais, muito mais.

    Passo pelo caminhão que realiza seu trabalho lentamente e o operador me acena com a cabeça, achando que sou mais um perdido pelo emaranhado de ruas, vielas e becos, outro desgarrado, outro habitante noturno desta teia pegajosa. O fato é que a sua suposição está certa. Já vim longe demais, atravessando a cidade fugindo do quê eu nem sei. Será que estou criando e materializando fantasmas? Talvez por efeito do cansaço eu começo a duvidar do que vi. E vi muitas vezes nesta noite quando ainda não estava cansado. Vi a figura esguia e sorrateira, muito embora não tenho divisado traços humanos nela. Usava roupas escuras? Usava. Mas eu também estou usando roupas escuras. Se movia? Não tenho certeza, não vi se mover usando meios humanos de movimento. Mas vem me acompanhando enquanto atravesso a cidade. Até dentro do VLT eu vi. Será que lê meus pensamentos? E sabe para onde é o meu próximo passo? Não lembro de ninguém que eu tenho tido algum tipo de atrito ou desavença recentemente, procuro viver com a mínima interação, pouco sou dado a convescotes ou amabilidades, fico mais tranquilo assim.

   Estou na Avenida Silveira da Costa, a tal artéria comercial cheia de agências bancárias, casas de câmbio, importadores e exportadores, hotéis e restaurantes. O setor de hotéis costuma ter um movimento maior de pessoas chegando e saindo, já é no próximo quarteirão então é melhor eu mudar o rumo, pois posso ser confundido com um assaltante e os seguranças não dão refresco. Automóveis mais luxuosos circulam despudoradamente e exigem a presença de manobristas subservientes que prezem pelo bom estado de suas latarias e do bom humor dos proprietários. Aqui também é o epicentro das casas noturnas, onde a qualidade da diversão é mais bem refinada do que nas vielas laterais e viadutos, e eventuais excessos são tratados com discrição. A diversão chega em quantidades suficientes para manter a euforia e a alegria artificial sempre em ebulição porque a vida as vezes parece uma festa, e aqui a festa é como um moto perpétuo, o dinheiro circula e todos ficam felizes. Eventuais excessos são tratados com discrição, tamanha discrição que nunca foi preciso o arremesso de nenhum corpo nos trilhos do VLT, embora há quem jure que corpos boiando a centenas de quilômetros na represa tenham alguma relação com isso. Como sempre ninguém consegue provar nada.

    Passei em frente à porta da Herbarium, o lugar da vez, o lugar mais quente, mais badalado. Uma fila de pessoas ansiava por triagem, cada uma com o melhor e mais caro argumento possível para adentrar e demonstrar seu prestígio. Uma vez dentro as portas do sucesso estarão abertas, até que uma casa mais nova e mais chique se imponha. Jamais serei admitido num lugar assim. É uma bolha com projeção de raio laser na superfície translúcida, aromas exclusivos que emanam de máquinas colocadas em cada canto para perfumar o ambiente e sistema de som suficiente para estilhaçar dezenas de taças de champanhe. É uma gaiola pendurada na beira do precipício, com um leve fio de seda a lhe segurar.

     Atravesso a calçada e fico esquadrinhando os personagens deste lugar de faz-de-conta. Muito brilho, muitos sorrisos fáceis e devidamente ensaiados, roupas caras embora nem sempre elegantes, poses, caras e bocas, olhar dos que se acham donos do poder, escroques e golpistas, bajuladores, falsos e perversos. Ninguém em que se possa confiar. Ninguém que se possa apertar a mão sem lavar em seguida.

     Sigo andando porque o ambiente é carregado, o ar ao redor fica denso e turvo. Não se pode decidir qual vizinhança é a mais perigosa. Pelo menos lá embaixo ainda persiste uma tênue dignidade e um esboço de ética entre os decaídos.

   Sinto o cansaço avançando pelo corpo à medida que o caminho se alonga e eu ainda não tenho certeza do que está me perseguindo. Meu grande trunfo é conhecer muito bem os atalhos e desvios desta cidade que parece sólida, mas tem buracos demais, buracos e abrigos, buracos que viram abrigos quando mais se precisa. Esta certeza injeta umas gramas de euforia e esperança que mitiga por um momento o cansaço que consome minhas calorias.

   Já superei quatro quadras e a avenida se aproxima do seu fim. No final há uma rotatória com um obelisco e vinte estátuas circundando e cercando a rotatória. Nestes momentos eu fico exposto. Após a rotatória começa uma série de ruas estreitas feitas para pedestres, o que é mais a minha feição. Cruzo por fim a estátua do herói desconhecido e chego à rua de sobrados de dois e três pavimentos. Tudo está fechado e deserto nesta hora, nem os gatos de rua dão o ar da graça, talvez estejam saciados e sem motivos para se expor. O silêncio é quase ameaçador e meus passos sobressaem.

    Quase que por instinto eu ando rente às paredes, mais próximo dos atalhos, embaixo das marquises. Será que minha pequena odisseia está chegando ao fim? Não me dou ao luxo de relaxar. O estilo construtivo das casas e sobrados é sempre rebuscado, com muitos ressaltos, colunatas, beirais, escadas em espiral, quinas, sempre um ponto de apoio para mãos e pés, diria que um impulso necessário para um salto, uma escalada, um jeito fácil de pular para o prédio vizinho, quase sempre colado, sem recuo, sem espaçamento, o que dificulta a circulação do ar, mas ideal para quem, como eu, tem alma de gato e espírito de lagartixa. Se preciso eu subo os três pisos em menos de quinze segundos. Espero não precisar pôr em prática esta habilidade, já que o fim desta jornada pela noite adentro parece estar chegando e nada de pior me aconteceu, em que pese os fortuitos encontros com o perigo, mas o perigo é parte integrante da vida nas ruas e os exemplares desta noite eram muito amadores para o meu gosto e minha capacidade.

    Quem sabe tenha estado fugindo de uma quimera, de uma ilusão, de uma invenção ou uma peça pregada pela minha mente fervilhante. Só que... lá está de novo a temida e estranhamente aguardada figura esguia, fugidia, apenas insinuada, e ainda assim sorrateira e ameaçadora. Agora é quase certeza, é quase real, quase concreta. Está no final da rua, à espreita, a minha espera. A rua é estreita e está vazia e para chegar ao meu destino eu preciso atravessar. Eu paro e observo. A figura está parada, totalmente parada. Não esboça reação alguma, não emite som, não emite luz, nem parece existir de fato. Estou confuso.

   Os segundos escorrem pelo chão e arredores, parece um duelo encenado em filmes antigos. Minha mente fica turva por mais tempo do que eu gostaria e me deu de presente um impasse. Lentamente recolho minhas mãos para dentro do casaco em busca de defesa, ou quem sabe insinuar que possuo um trunfo importante, uma arma escondida que me dê uma vantagem psicológica. Estou confuso.

   Por um momento pensei nem estar respirando, nem estar existindo, estar fora de meu corpo, estar em suspensão, apenas um invólucro, uma casca extirpada, uma pele de cobra que se soltou de um corpo que cresceu demais e pede por um abrigo maior e mais evoluído. E tudo ao mesmo tempo se passava numa velocidade estonteante, um filme exibido numa taxa de compressão tão alta como se quisesse resumir em microssegundos toda a história de uma vida. Mesmo assim continuo confuso, sem reação, sem saber como agir e que próximo passo dar.

   Paradoxalmente em descompasso com a velocidade alucinante do desenrolar do filme da vida, um observador externo que porventura estivesse analisando e tentando entender a situação o que veria? Nada, somente uma cena estática, congelada, e quem sabe nem estaria vendo dois personagens. Talvez estivesse vendo dois borrões escuros contra um fundo de paredes ocre, cinza, branca e bege, numa noite alta e mal iluminada, duas figuras indistinguíveis.

    Preciso reagir e decidir o que fazer, já que a jornada noite adentro resolveu estender sua permanência neste palco de teatro inusitado. Respirei fundo e calculei melhor minhas possibilidades. Creio que possa subir pela marquise e correr pelo telhado até três casas à minha esquerda, dali eu escalo pela tubulação externa até o quinto andar do único edifício mais alto desta rua e que tem um toldo seguro por cordas ornamentais e firmes o suficiente para aguentar meu peso, desço por elas até o passadiço do sobrado de três andares quase na esquina. De lá eu posso descer pela escada externa que fica nos fundos, pular o muro e chegar até a passagem subterrânea escondida por um tapume móvel usado pelos contrabandistas para guardar suas cargas desviadas. Quando lá chegar meu caminho até o meu esconderijo estará seguro. Não conheço ninguém que saiba mais dos atalhos do que eu.

   Então finalmente eu quebrei estas algemas que estavam segurando minha ação. Mesmo cansado eu puxei energia de onde menos se espera, e de onde eu nem esperava que houvesse, e como uma lagartixa faminta que desliza em direção à uma mosca suculenta eu me atirei ao encanamento. O encanamento externo foi como uma escada para mim e logo alcancei a marquise. Segui exato o meu plano e em pouco mais de um minuto eu já estava quase alcançando o final da rua. Ao chegar perto do tapume que cobria a entrada secreta para a passagem subterrânea eu resolvi parar e olhar para trás, cheio de soberba e confiança em despistar meu perseguidor. E para minha surpresa lá estava a figura esguia, sorrateira, silenciosa e que agora eu tinha certeza de que se movia, porque de outro modo como poderia estar assim tão próximo de mim, em meu encalço? Quando parei para olhar a figura parou também, a me observar. O mais estranho de tudo é que eu não conseguia distinguir seu rosto, ou qualquer traço de humanidade. Que se movia acho que agora estava claro, mas ao parar e olhar a figura continuava estática, não mexia braços, pernas ou cabeça. Era mais um borrão escuro, na noite escura. Comecei a duvidar do meu estado mental. Como era possível?

   O instinto de defesa e fuga falou mais alto e eu puxei o tapume e me lancei pela passagem secreta pois a figura estava a cerca de quinze metros de mim e eu permanecia em vantagem. A passagem estava muito escura com somente duas das doze lâmpadas acesas. Isto atrasou um pouco meu deslocamento, mas eu ia avançando sem ouvir outros sons de passos além dos meus. A passagem estava seca e razoavelmente limpa. Ao final há duas saídas, à esquerda e a direita, e a pouca iluminação estava mais evidente neste final de túnel. Só alguém muito familiarizado para conseguir distinguir os acessos. Sem pensar muito virei à esquerda para os trinta e oito degraus que me levariam de volta ao nível da rua.

    Novamente com o batimento cardíaco de volta aos 130 BPM cheguei à Alameda Semedo. Olhei para baixo de relance e não percebi nada ou ninguém. Apenas alguns bêbados cambaleando alheios ao que estava acontecendo ao redor. Resolvi não me demorar e continuei andando em passos largos e acelerados. Minha boca estava seca e meus pulmões berravam por uma pausa e um descanso. Parei por um breve momento, me virei e novamente lá estava a maldita figura em pé na saída da escadaria. Meu medo agora aumentou de tamanho e a cada momento eu sentia que o perigo era real e imediato. Como escapar e principalmente entender o que estava acontecendo comigo nesta noite? Virei novamente e continuei caminhando, já com menos da metade da energia, que agora mais do nunca era drenada pelo aumento do medo. Estava ficando sem opções pois me aproximava do meu destino e do meu esconderijo, e se fosse descoberto o que poderia me proteger? Voltar e fazer o caminho inverso para despistar agora estava fora de questão porque estava começando a ficar exausto com aquela perseguição. Somente por impulso eu entrei numa viela que tinha uma passagem estreita que dava acesso a um depósito de tecidos. Minhas opções estavam escasseando.

   Cheguei na passagem e chequei a viela. Lá estava a tal figura. Desta vez mais perto. Entrei no tal depósito e havia pilhas de bobinas de tecidos de todas as cores e muitas padronagens. Colocados na vertical, mas não ordenados, era um bom local para brincar de esconde-esconde, se tratássemos de crianças num recreio. Ou quem sabe daria um bom labirinto, para quem estivesse com tempo livre e despreocupado, com seus amigos num momento de lazer e despreocupação. Porém não aqui, nem agora. No teto algumas telhas translúcidas já deixavam passar os primeiros raios de Sol de um novo dia. A noite terminava, cronologicamente falando, mas para mim o pesadelo só aumentava. Fui me esgueirando, serpenteando entre as bobinas, tateando o caminho que me levasse até a saída, no outro extremo daquele galpão imenso. Em breve um novo turno de trabalho começaria e nem quero pensar no que aconteceria se me pegassem aqui, nesta situação. O modo fuga desesperada estava ativado, definitivamente. O ar estava pesado, quase irrespirável, com a saturação de cheiros emanados das bobinas de tecidos aliado à minha perda acelerada de energia e a incerteza crescente. Agora com dois focos a me preocupar, uma figura aterrorizante no meu encalço e a iminência da chegada de trabalhadores que acionariam a segurança armada assim que me avistassem. Não tinha noção da hora, mas pressentia mais do que sabia que a hora se aproximava. Como um náufrago arremessado ao mar e que nada com desespero antes que seu suprimento de oxigênio termine, eu buscava a maçaneta da porta no extremo da sala. Já não dava mais tempo de olhar para trás.

    Chego no limite de minha respiração. E ainda me restam forças para abrir a porta e escapulir daquele labirinto têxtil. De relance me certifico que o turno ainda não começou. Basta escalar uma parede munida de escada para alcançar a rua. E é isso o que faço, no desespero. Quase no topo da escada eu viro a cabeça e lá está a figura sinistra ainda no solo se aproveitando da porta aberto por mim para tentar me alcançar. É certo agora que se move, de outra forma não poderia estar aqui. Volto a cabeça para o muro, pois só me ocupo em fugir. Cheguei na beirada do muro, que tem cerca de um metro de espessura, o suficiente como base de apoio. Modo fuga em alerta máximo. Vou para a direita e vejo que na extremidade do muro, no lado de fora, há um talude com rejeitos de tecidos, plásticos, papelão de embalagens, cacos de telhas, latas de tinta vazias, bancos quebrados, móveis descartados, tudo criando uma plataforma logo abaixo onde posso pular sem grandes cuidados, pois a maior parte é papelão e plástico. O descaso com o lixo é a garantia da minha fuga.

   Um segundo antes de pular eu me viro e vejo a figura sinistra de pé em cima do muro. Como estes olhares são imediatos e demoram-se um quarto de tempo, eu percebo a cena como um quadro estático, por isso não vejo o deslocamento de tal figura, acabei de entender isto. Só que ela está cada vez mais perto, a cada última olhada que eu tenho dado. Se este jogo de gato e rato persistir por mais tempo a figura esguia, sorrateira, disforme e maligna acabará por me alcançar, pois estou no meu limite. Sem pensar, ato contínuo, eu me jogo na pilha de rejeitos e rolo talude abaixo. O que importa é que estou fora do galpão e perto da minha chegada. Me levanto para correr e tropeço num balde vazio. Caio logo a frente e chuto o balde para longe. Isto me atrasou.

    Automaticamente volto a cabeça em direção à pilha de rejeitos e lá está, incólume, impávida, sem parecer que sofra o mínimo desgaste. Cada vez mais perto. Não ouvi o mínimo de ruído, mas ela teve que descer pela pilha de rejeitos também, então o que será isto? O chute no balde acabou por ferir meu pé, mesmo com a adrenalina alta eu sinto uma dor aguda. Nem posso pensar nisto agora, a dor que suma. Falta somente um quarteirão e o dia vai clareando. Ao mesmo tempo que me ajuda na fuga, pode revelar o lugar onde me escondo.

   Tento me aprumar, mas a dor não cede. A rua ainda está vazia e agora eu praticamente me arrasto, faltando apenas uns cinquenta metros até a minha porta. Neste momento eu ouço um som grave, gutural, como uma lamúria, ou um uivo, um som das profundezas. Este som atinge meus ouvidos e trás um arrepio gelado que busca me paralisar. O uivo aumenta de intensidade enquanto eu quase imploro por mais ar. Faltam menos de trinta metros, é muito pouco depois desta jornada muito louca, se não me pegou antes não será agora. Sinto também algo como se fosse uma emanação de ar gelado junto ao som gutural que agride meus ouvidos. Essa mistura de gelo e uivos murmurados vai aumentado em grande escala, sinto que se aproxima cada vez mais, me prendendo numa atração gravitacional crescente. Faltam dez metros até a minha porta. No canto do meu olho esquerdo eu reparo no que acredito ser um tentáculo, não um braço humano. No canto do meu olho direito outro tentáculo que avança e se volta como se pretendesse um abraço. Faltam menos de cinco metros para a minha porta, que ficou aberta. Os tentáculos me cercam e se dirigem para as minhas pernas, o ar gelado me cobre e o uivo quase me ensurdece. Como se por milagre ou encantamento a minha porta se acende e cria uma trama de luz incandescente entre os batentes. Eu paro de súbito e me viro para perceber os tentáculos se recolhendo, o gelo dissipando e o uivo que vai se esvaindo até que não tenha mais força para mover nenhuma molécula de ar.

    Minha porta está aberta e a figura esguia, sorrateira, sinistra e disforme começa a se desfazer bem na minha frente, como uma fotografia que se queima lentamente, se contorcendo, com as bordas se apagando em direção ao centro. Assisto paralisado este estranho espetáculo, perplexo, sem entender coisa alguma. Num breve momento, que pareceu uma eternidade, eu repassei todos os eventos desta noite estranha, a mais estranha que já me ocorreu. Num esforço desesperado de aplicar alguma lógica que desmembrasse a cadeia de eventos que me levou até este ponto, eu não encontrei nenhuma resposta. Resignado me voltei para minha porta que parecia se fechar com vontade própria. A luz incandescente de um instante atrás se apagava, como se apagara a noite e a claridade plena de um dia de Sol já despontava no canto dos meus olhos. Temendo ficar do lado de fora ao relento, eu me atirei para dentro de minha morada.

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    A janela havia ficado aberta, eu esquecera de fechá-la, bem como havia esquecido também de programar o temporizador do ar-condicionado. Os primeiros raios de Sol entraram sem minha permissão e o aparelho de ar-condicionado gelou além do que eu queria. O incômodo da temperatura e a intromissão de uma luz inesperada e indesejada somaram forças para este despertar desagradável. Além disso, em função da idade que já pesa, eu definitivamente preciso cuidar desta apneia, porque não é a primeira vez que o meu roncar me acorda. O despertar súbito, pelos elementos relatados acima, me faz esquecer do que tenho sonhado, e hoje mais do que nunca acordei cansado, como se tivesse corrido, brigado e fugido a noite toda. Vai entender?

Ivan Henrique Roberto 11.12.2023