O tubarão

Por Ivan Henrique | 05/04/2024 | Contos

O Tubarão

Ivan Henrique Roberto, 14/15 de fevereiro de 2024.

        Como será viver 518 anos? Viver quinhentos e dezoito anos dentro do oceano, em águas profundas, escuras e geladas? Este ambiente inóspito é o melhor lugar do mundo. Longe dos olhares curiosos, cheios de cobiça, prontos para o ataque dos assim chamados seres humanos. Por séculos me deixaram em paz, mas me perceberam só agora que estou velho, que estou grande, que sou esquivo, mas não esquivo o bastante para escapar dos olhos curiosos destes humanos que querem saber de tudo.

       Vivo no escuro das águas geladas no lado de cima do planeta, esta é a minha casa. Aqui eu flutuo sem porto, sem ancoradouro, sem amarras, sempre em busca da minha refeição. Por quinhentos e dezoito anos eu tenho vivido em paz. Escapei logo no início, pois sou mais uma das inúmeras cobaias de Deus lançadas à própria sorte nesta manifestação material, uma das incontáveis possibilidades de projeção da mente divina. Deus brinca com suas criações e as deixa indefesas, incompletas, despreparadas, ao alcance da primeira boca mais ávida que aparecer pela frente. Nenhuma boca ávida foi rápida, voraz ou atenta o bastante para me perceber, e eu escapei e fui crescendo neste ambiente escuro, gelado e incerto até alcançar o tamanho suficiente para virar uma boca ávida que caça as cobaias indefesas, incompletas e despreparadas de Deus. Não tenho culpa, eu fui lançado neste mundo assim.

      E os anos foram passando, seguindo a corrente fria que é minha estrada. Quando nasci, ou fui parido, não era mais do que um óvulo invulgar que escapou do desastre e sobreviveu. Nada sabia do mundo que me cercava, esta é uma dádiva que nos foi dada, a de não saber das maquinações humanas. Quando nasci os homens já estavam por aí, ocupando todos os espaços deste mundo grande. E por força do destino o mundo que me cerca é gelado e escuro e os homens não têm muito apreço por lugares escuros e gelados. Quando nasci suas embarcações ainda eram rudimentares, feitas de madeira e movidas por ventos, os quais não podiam controlar. No quarteirão de mundo onde crescia, e ainda era um jovem ser marítimo aprendendo as formas mais eficientes de capturar as pequenas e indefesas cobaias de Deus, o frio intenso da superfície não era atraente o bastante para trazer as embarcações movidas a vento dos humanos, e assim eles me deixaram em paz e a salvo por anos sem conta, pois sou esquivo e de aspecto desagradável. Além do mais minha carne tem um gosto repugnante e sou grato a Deus por ter me concedido esta graça.

      Não sei nada do mundo acima da minha estrada de águas geladas, mas aos poucos mais e mais barcos de madeira singravam por entre as ondas que se erguiam e quebravam no teto de meu reino aquático. Por sobre o teto de meu reino aquático os raios de Sol revelavam os segredos dos caminhos marinhos em seus extratos mais altos, e assim era franqueado aos homens o acesso fácil aos corpos indefesos dos milhões de irmãos marinhos como eu, que não tem pernas e pulmões para correr e escapar às pontas de metal e tramas de cordas. Nada me interessa no brilho do Sol, nada me interessa nas ondas que sobem e morrem no teto de meu reino aquático, prefiro a escuridão que me protege dos olhares curiosos dos seres humanos sempre ávidos pelas carnes macias e suculentas de meus irmãos marinhos.

     A rotina é o que me mantém vivo, a rotina de vagar pelas correntes frias em busca do alimento que me faz crescer, a rotina de me esconder na escuridão e passar despercebido, invisível, incompreendido, inclassificável, desconhecido, indetectável. Por séculos tem sido assim aqui no meu ambiente acolhedor, aqui onde me movo com agilidade. Mas na superfície, no reino despressurizado os anos passam e os humanos vão aprendendo coisas novas. Há cada vez mais humanos, mesmo que eles tenham uma predileção especial em ceifar a vida de outro ser semelhante, como se houvesse de tempos em tempos a necessidade de colher a plantação de humanos que nasce, cresce e fica pronta para ser cortada e consumida. Mesmo assim com toda a fome desenfreada em devorar tudo, a plantação humana é grande demais e sempre sobram aqueles que escapam e germinam.

     Os anos passam devagar e o mundo despressurizado vai sendo ocupado, ocupado, desbastado, avaliado, preparado, ocupado, invadido, desbastado, incendiado, devastado, ocupado novamente, incansavelmente, queimado, transformado, sua essência primeva é vilipendiada, sua riqueza avaliada, medida, confiscada, apropriada por uso da força, novas ideias surgem, novas formas de explorar e desgastar a força que a terra ao se desgarrar do oceano levou eras incontáveis para criar. E já se criam impérios, que criam frotas de navios de madeira maiores e mais seguros para deslizar sobre as ondas que se crispam no topo do reino submarino, e esses navios já são incontáveis, levando e trazendo produtos, alguns criados pelos humanos e outros arrancados da terra, a mesma terra, o reino despressurizado, que teve uma paciência infinita de gerar, nutrir e fazer crescer tantas coisas admiráveis.

     Estes mesmos navios que vem e vão já levam em seu bojo outra carga, essa mais sensível: outros seres humanos. Tudo é mercadoria, tudo pode ser vendido e comprado, tudo tem um valor, e o que tem valor tem sempre alguém que possa pagar. A riqueza arrancada da terra não é suficiente então agora os navios trazem esta nova mercadoria, outros seres humanos. Arrancados de sua terra, avaliados, taxados, medidos e pesados, prontos para trabalharem a terra, não sua, mas de outros que, por graça do nascimento, herança, manobras políticas ou por outros meios escusos dividiram o melhor da terra entre si, e por não ter desejo de sujar as mãos e dobrar as costas ou se molhar no suor do trabalho, acharam melhor comprar outros seres humanos para fazer estas tarefas para si. E de acordo com as noções mais precisas e eficientes de como se obter o melhor valor para sua mercadoria acharam por bem explorar ao máximo cada peça comprada, sem considerar por um momento sequer a possível humanidade de suas aquisições. Tal mercadoria em função da possível humanidade inerente era bastante perecível, e nas longas travessias dos barcos de madeira cada vez maiores a perda destas peças humanas perecíveis era bastante significativa, sendo lançados ao mar sem pudor ou a mínima consideração, tomados apenas como um peso morto ou prejuízo financeiro.

     Mesmo longe, muito longe de meu ambiente escuro e gelado, eu fiquei sabendo pelos primos tubarões distantes, aqueles que viajam muito e gostam das águas quentes para passar o verão que o descarte sem pena e pudor destas peças humanas perecíveis criou para eles um formidável banquete de corpos negros de carne macia, fáceis de abocanhar porque já falecidos e sem condições de lutar. Para mim é muito longe e desconfortável e um motivo a mais para nunca chegar perto de um ser humano, pois se nos fosse dada a capacidade da razão eu não teria como justificar, por nenhum meio possível e imaginável que uma espécie possa agir desta forma com outro membro da sua espécie. E nesse momento eu prezo muito não ter a capacidade da razão, no mesmo molde que a razão humana se apresenta perante o mundo.

      O globo terrestre jamais se cansa de girar pelo espaço à fora e esta atividade tem seu custo medido numa unidade chamada tempo. E o tempo dispendido nesta atividade rotatória do planeta me faz crescer. Já sou grande agora, ainda jovem pelos padrões da minha espécie, mas firme em meus propósitos que é ser levado pela correnteza em busca de comida. Queiramos ou não as águas trocadas com a superfície acabam por trazer as novidades do mundo despressurizado, e estas novidades nos alertam sobre a atividade preferida dos seres humanos que é a guerra. Eu sei que a guerra é muito anterior a meu nascimento e ela estará na superfície muito depois que a minha longa existência termine. Estou apenas relatando fatos que nenhum outro ser vivo presenciou porque eu sou o ser vivo mais antigo que ainda interage com os elementos do mundo. Os navios já se fazem onipresentes, mesmo neste lado do mundo inóspito. Pobres das primas baleias, já que descobriram que seu corpo espesso e cheio de gordura serve para iluminar as ruas de suas cidades escuras. Elas não têm a mesma capacidade que eu tenho, de ficar submerso no escuro profundo, elas precisam respirar o ar da superfície, pobres delas! E os navios cada vez mais velozes se aproveitam desta fraqueza para caçá-las sem piedade.

     As cidades humanas crescem para acomodar cada vez mais humanos. As cidades humanas crescem e querem a riqueza de outras cidades humanas, e assim vão em busca do que cobiçam. Porém nenhuma cidade humana quer dar de graça suas riquezas e os humanos criaram o jogo chamado guerra, onde o competidor mais forte e mais astuto se acha no direito de levar para sua cidade as riquezas da cidade que perdeu a competição. Não satisfeitos em brincar deste jogo no amplo espaço do mundo despressurizado, eles se acharam no direito de brincar de guerra no topo do mundo pressurizado. Os humanos são seres muito inventivos, não se pode negar e já na minha juventude eles descobriram meios de colocar tubos de metal em suas embarcações, que cospem coisas pesadas na direção das outras embarcações apenas pelo prazer de derrubar as outras embarcações, aquelas dos humanos contrários, aquelas que penduram pedaços de pano em cores e formatos diferentes e que eles deram o nome de bandeiras, não sei como um simples pedaço de pano diferente pode causar tanta ojeriza aos olhos de alguns seres humanos.

    Da mesma forma que os navios que transportavam carne humana em troca de dinheiro, estes navios carregados de humanos ávidos por causar danos aos navios com bandeiras diferentes da sua quase sempre eram postos para mergulhar no tecido aquoso e gelado de meu mundo submerso. Na queda fatal em direção ao abismo sua assim chamada tripulação, muito a contragosto, era apresentada a um ambiente inclemente, inseguro, não afeito às necessidades humanas, diria mesmo que interditada à vida humana, tão bem adaptada à camada despressurizada do mundo. Quem gostava muito destas ocasiões eram os infindáveis cardumes de todo o tipo de irmãos marinhos à espera de uma refeição fácil. Fácil, mas de gosto indigesto. Não conheço o gosto da carne humana, eles não costumam vir na minha vizinhança com frequência, quem me conta são as primas baleias que escapam dos arpões e viajam muito, além dos vizinhos tubarões, que não apresentam um paladar refinado e tudo que chega em suas bocas é bem-vindo. A dieta do oceano, a partir de então, acrescentou para sempre um ítem novo aos comensais, muito embora a proporção entre os irmãos marinhos caçados, pescados e devorados e os humanos atirados às profundezas ainda seja totalmente desequilibrada.

      Minha pele já mudou sua cobertura diversas vezes, o que significa que já não sou tão jovem assim, mas permaneço firme e forte e apartado das artimanhas e escaramuças que se avolumam na superfície do mundo despressurizado. Num pequeno território encravado num lugar maior chamado Europa chegam notícias de que os humanos muito insatisfeitos com o rumo que as coisas haviam tomado resolveram dizer não aos assim chamados privilégios que uma fatia pequena, porém gulosa em extremo não queria deixar de ter. Os gulosos e surdos às reclamações de seus vizinhos despossuídos, famintos e desesperados se viram encurralados e muitos, mas muitos mesmo, tiveram suas cabeças cortadas num único golpe, para quem sabe assim aprenderem de uma vez por outra que os humanos nascem iguais e assim deveria ser. Eu tenho para mim que esta última afirmação não está embebida de verdade, mas quem sou eu para entender das peculiaridades dos humanos?

     A única coisa é que mesmo longe eu sinto as vibrações das transformações que chegam muito de leve, trazidas pelas correntes marítimas. O mundo da superfície está cada vez mais complexo, mais intrincado, novas ideias brotam nas mentes mais argutas e poderosas. E os humanos se multiplicam cada vez mais. Passam mais tempo sob o Sol pois que suas vidas vão se estendendo, já não vivem assim tão pouco, quer dizer, muitos ainda vivem assim tão pouco, que são os mais indefesos pois os mais indefesos são utilizados como a gordura das primas baleias para iluminar as cidades humanas, neste caso os indefesos não são queimados como a gordura das baleias, não, nada disso, pois seus corpos ao serem queimados exalam um odor atroz, que repulsa os não tão indefesos assim. A gordura dos mais indefesos, que na verdade é bem pouca pois são mal alimentados, é na verdade sua débil energia extinta logo após se esforçarem por horas a fio, por dias a fio, por meses a fio nas novas construções que são chamadas de fábricas. Os mais indefesos então podem queimar até o fim sem precisar exalar um mal cheiro repulsivo. Muitos deles terminam sua existência sem que se ouça um ai, ou um grito. São como os pequenos óvulos invulgareslançados ao mar, no meio da vastidão do oceano. Sobre seus pequenos corpos tão frágeis foi construída grande parte da riqueza dos homens.

     Quase não o sinto, mas o tempo corre como se precisasse se superar sempre, numa prova de velocidade insana. Ainda vivo em paz, ninguém me avistou e sigo ignoto, todavia eu prenuncio que minha tranquilidade está por ser destroçada. Mesmo neste lado gelado da existência o vai-e-vem dos navios só aumenta, os humanos não ficam satisfeitos com o lugar que já tem, eles querem sempre mais. Os navios estão cada vez maiores e mais fortes, novas carcaças. Inventaram uma nova maneira de iluminar as cidades e já não precisam assim tanto da gordura das primas baleias, agora só as perseguem por esporte, vejam só! E o mundo vai se enchendo de fumaça. Desta vez não é culpa dos vulcões, eles só acordam de seu sono profundo muito raramente. Eu por vezes chego próximo de alguns, suas pernas imensas nascem muito fundo dentro do mundo pressurizado e eu me aproximo para contemplálos em silêncio, o silêncio que me acompanha sempre pois não ouso despertá-los, acho que ainda sou muito pequeno para isso. Acho que jamais serei capaz disso. Lembro de uma ocasião em que um deles, jovem ainda, expelia suas entranhas para dentro da água. Suas entranhas eram tão quentes, que eu me afastei acelerado, tão rápido quanto jamais pudesse ter sido. Gosto da minha água bem gelada e as entranhas daquela jovem montanha submersa cauterizavam tudo que estava ao redor, o calor era sentido numa longa distância. Os homens temem os vulcões, estes são os verdadeiros dragões de suas histórias pueris, com seu fogo devastador. A ilha mais próxima de onde eu vivo é assim, cheia deles, todos quase sempre adormecidos, Deus salve a sua preguiça.

     Após tanto tempo vagando nestas correntes geladas e submersas eu aprendi a me esquivar, pois vivo no escuro e não atraio a atenção. Vivo minha longa existência em paz, mas agora o mundo da superfície quer invadir o meu domínio. Sinto minhas águas mais quentes, vejo o chão de meu mundo coalhado de objetos estranhos, muitos navios e aparelhos voadores, grande parte deles lançados aqui em baixo após duas enormes guerras, aquele esporte favorito dos seres humanos. E mais essa também: começaram a aparecer substâncias estranhas, maleáveis, transparentes, que são novidade, surgiram a muito pouco tempo e já ocupam tanto espaço. Muitos irmãos marinhos confundiram-nas com alimento e tiveram um fim antecipado. Ouço também notícias distantes que falam de um sangue negro e espesso que agora ocupa por vezes o lugar da água antes limpa. Este sangue negro deve ser muito nutritivo pois os humanos agridem-se por sua causa, este sangue negro e espesso que estava placidamente contido no imenso corpo de pedra lá embaixo, muito abaixo de onde eu costumo ir. Me disseram que este sangue negro está por trás da quentura crescente de minha água gelada. Quem saberá dizer se é verdade ou não?

     Só sinto uma tensão que cresce cada vez mais, como se não pudesse mais haver nenhum lugar onde se possa ficar em paz e em silêncio, onde se possa desfrutar do escuro intenso. Sinto que estou ficando cada vez mais indefeso, como me sentia quando era não mais do que um grão dentro deste corpo líquido imenso, ainda mais agora que me descobriram, eu que deslizei aqui em baixo por séculos e sou a testemunha viva mais antiga a relatar os acontecimentos por vezes infames e por vezes prosaicos, eu que me esquivei o máximo que pude da curiosidade deletéria que só os humanos podem ter, eu que presenciei tantas barbaridades cometidas contra meus irmãos marinhos, eu que fui contemporâneo do descarte de tantos humanos indefesos jogados ao mar, eu que vivo no escuro e assim gostaria de continuar. Mas minha foto agora está nos meios de comunicação e não sei por quanto tempo mais resistirei. Já vivi quinhentos e dezoito anos, sou velho e certamente cansado, mas gostaria de pedir que me deixassem terminar meus dias onde sempre fui feliz, e se, ao passar desta vida para outra encontrarem meu corpo de carne com sabor indigesto ainda inteiro, eu permito que me preservem para estudo.

      Agora, uma coisa muito me intriga: como calcularam tão bem a minha idade?