A cerimônia

Ivan Henrique Roberto _agosto/setembro 2014

 

       O relógio desperta pontualmente às sete horas da manhã, com uma música pré-fabricada feita sob medida para não provocar sobressaltos no sujeito profundamente abraçado em seus travesseiros. Cinco minutos mais tarde, sem um pingo de clemência, o mesmo despertador dá por encerrado o período de repouso deste mesmo sujeito vestido em pijamas discretos. É hora de levantar, é mais um dia de trabalho, e o trabalho enobrece o homem como dizem, embora há quem discorde.

       Meia hora mais tarde e já desperto, Oliveira traja-se de forma neutra para exercer suas funções na Companhia de Seguros Praetorius. A mesma rotina dos últimos oito anos, mesmo nas férias e feriados. Esta rotina é um ponto de apoio seguro e um fio condutor que pauta a vida deste indivíduo controlado, previsível, metódico e cético, principalmente cético. A sua religião é a normalidade. Ele não acredita em milagres nem no sobrenatural, só acredita no que vê e sente com seus sentidos limitados. Uma imersão na pia de São Tomé foi seu batismo, e sua primeira comunhão foi no catecismo de René Descartes. O céu é de onde vem a chuva e a estrada dos aviões, helicópteros e pássaros, tão somente. E nuvens, que passam e ele não vê, pois não acha graça. Eis o homem. Mas ele nunca fez mal à ninguém, é um sujeito educado, correto, honesto e eficiente em seu trabalho, paga seus impostos em dia e pouquíssimas multas de trânsito maculam seu histórico. Às vezes até ri e faz alguma brincadeira, mas nunca lhe ofereçam um drinque. Ele odeia álcool. E odeia qualquer coisa que o aparte de sua consciência e que impeçam seu contato com o presente.

       Não que seja do interesse de alguém, talvez sim em função desta história, mas nunca como fofoca ou motivo para denegrir sua imagem, o que se sabe é que, quando criança, numa certa ocasião num réveillon, tendo chegado muito cedo na praia, ele resolveu caminhar um pouco sozinho, sem seus pais ou sua irmã, só para observar o movimento naquela dia tão festivo, com fogos já espoucando e prédios iluminados e enfeitados à espera do ano novo. Na orla, como é costume nesta cidade onde a tolerância religiosa é a regra, muitos grupos que praticam cultos afro-brasileiros fazem seus rituais mais cedo, antes que a multidão seja tamanha que não sobre mais espaço para expressar sua fé. O menino então, ainda deslumbrado por todas aquelas luzes e sons, foi atraído por um estranho espetáculo feito por um grupo de pessoas vestidas de branco e cheias de adereços, e homens que tocavam tambores e outros instrumentos de percussão. O som em primeiro lugar foi a isca, foi o imã que puxou a atenção do menino. Um som profundo, ritmado, colorido, em tons que combinavam com o branco das vestes e com os demais adereços de braços, pernas e cabeças daquelas pessoas que ele nunca havia visto, e nem sabia da existência. Ao chegar mais próximo ele distinguiu cantos em uma língua desconhecida, e percebeu que parte das pessoas dançavam e giravam, algumas sacudiam a cabeça. Durante algum tempo ele ficou parado, somente olhando intrigado e curioso, pois curiosas são as crianças de um modo geral. Em determinado momento algumas das pessoas abriram caminho e uma mulher negra, já idosa, começou a se contorcer e revirar os olhos. Grunhindo sons ininteligíveis ela se atirou ao chão e se debatia de forma incontrolável. Aquela visão foi um choque para o menino. As demais pessoas continuavam procedendo da mesma forma que estavam até então, os mesmos cânticos, a mesma dança, só o som dos tambores aumentara de intensidade. A negra idosa começou a dar saltos com um vigor impensado para alguém desta idade. Ela fazia movimentos acrobáticos e se atirava ao chão sem parecer sentir qualquer dor ou desconforto. E então começou a falar alguma coisa que o menino não conseguia entender, entremeado com gargalhadas pavorosas, no entender de uma criança. O chão parecia ceder aos pés do garoto. Ele não tinha ideia do tempo decorrido neste espetáculo, e os sons ritmados e intensos da percussão junto à cantoria e a multidão que dançava e gritava ao redor da idosa transtornada começaram a mudar a curiosidade e o fascínio do garoto para um temor crescente.

     De repente aquela figura de avó de momentos atrás se transformara num ser assustador, que se voltara e encarava fixamente o menino assustado. Os olhos traziam um brilho estranho, e ela ao olhar para o garoto parecia não olhar para nada, ao mesmo tempo. Começou a chamá-lo com uma voz horrível, sorrindo e em seguida gargalhando a todo volume. Em seguida o olhar mudava de novo e agora parecia um olhar suave e caloroso de uma avó de verdade, o que ela parecia ser de fato. No instante seguinte voltava o ser pavoroso que cuspia e gritava, agora sem dar atenção ao pobre garoto assustado. As pessoas ao redor fechavam um círculo em torno da mulher, que agora parecia chorar e balbuciava como uma criança. Uma mão forte agarrara o braço do menino. Ele quase pulou no susto. Era seu pai que já o procurava, preocupado.

     “-Ei, você quer me matar de susto ?! Como é que some assim sem me avisar? E ainda mais no meio desses macumbeiros !!!” Depois disto a festa da passagem de ano perdera a graça para o pobre menino. Na volta para casa, em silêncio no carro do pai, ele ficou matutando o que significava a palavra “macumbeiros”, que seu pai havia dito com notável sentido de coisa ruim e pecaminosa. No entanto não tivera coragem de perguntar ao pai ou a mãe o que era aquilo tudo que havia visto, e guardou para si aquele momento e aquela figura assustadora que o olhara fixamente. ---------------------------------------------------------------------------------------------------------------

       A vida seguira seu curso e levara consigo a criança, que se transformara em jovem, que se descobrira adulto em algum momento de reflexão ou susto, e que agora, assim como todos os que sustentam a existência humana em suas mãos, trabalhava e ganhava seu pão com seu suor, embora trabalhasse num escritório confortável com ar condicionado e vista para o mar, que ninguém é de ferro. Casara, descasara, namorara, viajara a trabalho e nunca se interessou muito por outras coisas além do âmbito de seu labor. Como dito antes era um sujeito educado, honesto e cético, que via a folhinha mudar de ano para ano sem dar muita importância para a mudança das estações.

     Chegou pontualmente à sua estação de trabalho às 08:30h. Se inteirou das prioridades do dia, leu suas mensagens e alguns relatórios, tomou um café, fez alguns telefonemas, participou de uma reunião, isto tudo até a hora do almoço. Saiu para comer em algum restaurante por quilo nos arredores do prédio. Quando voltava para o escritório uma chuva inesperada desabou por sobre a cabeça de todos. É claro que não trouxera guarda-chuvas, ninguém esperava uma chuva assim não anunciada e tão inconveniente, justamente na hora do almoço.

     Para se proteger da chuva forte ele correu para debaixo de uma marquise. Uma marquise qualquer. A chuva engrossava e poderia demorar mais do que devia. Ele então reparou que estava defronte a um sebo de livros chamado “ A árvore do saber”, especializado em livros e publicações de inclinação mística e religiosa, ao lado de livros didáticos e romances mais apelativos, pois a vida não está fácil e era preciso pagar o aluguel do ponto, ainda mais neste setor tão valorizado da cidade. Oliveira nunca reparara nesta livraria, pois não era de seu interesse, apenas a chuva forte o obrigara a parar por aqui, nesta hora do dia. Era um cético e um materialista, todavia o germe da curiosidade sempre estivera encubado no seu íntimo, encapsulado naquele corpo sem muitos arroubos de criatividade e transgressão. Ele entrou na loja para passar o tempo e a chuva.

      A loja não era grande mas bem organizada, com prateleiras bem dispostas e acessíveis. Passou sem muito entusiasmo pelo setor de livros didáticos, pelas revistas antigas e não tão antigas, pelas estantes de CD's e LP's e foi para a parte mais ao fundo do estabelecimento onde ficava o ponto forte e que mais atraía a clientela. Além de Oliveira havia outros clientes, não muitos mas atentos aos livros, alguns muito raros que faziam a fama da “Árvore do saber”. Ele começou a perceber os demais frequentadores e não gostou nem um pouco do que via. Pessoas estranhas, vestidas com roupas esquisitas, a maioria composta por homens, porém poucas mulheres, também com roupas não muito usuais. Alguns usavam chapéus e emblemas com símbolos desconhecidos, camisas de bandas de rock antigas e capotes apesar do calor. Havia um sujeito desgrenhado, com uma longa barba já embranquecida, com uma bata colorida bastante surrada e mais apropriada para uso na década de 70 do século XX. As mulheres usavam saias compridas e cabelos descoloridos, maquiagem carregada nos olhos e bijuterias intrincadas, entre outros detalhes. Ele mais do que nunca parecia um peixe fora d'água, com suas roupas neutras para não dizer insípidas. Uma aversão instintiva mas inexplicada invadia sua mente, uma repulsa automática àquelas pessoas diferente, que mais pareciam ter brotado da terra já dentro da loja. No entanto era ele o diferente naquele ambiente. Neste instante ele se vira para sair daquele setor quando repara num rosto familiar quase escondido atrás de uma pilastra. Demorou um pouco para lembrar-se de onde conhecia aquela pessoa, mas era o Osíris, que também trabalhava na mesma empresa, em outro departamento. Por seguir as normas de vestimenta recomendadas no trabalho, Osíris também estava discreto dentre aquele grupo tão excêntrico, e por isso parecia um pouco escondido. Não que tivesse intimidade com ele, mas uma referência num ambiente desconhecido é sempre um alento. Ao longo destes oito anos em que trabalha na Praetorius podia contar nos dedos as vezes em que trocara algumas palavras com ele, meramente cumprimentos protocolares em aniversários ou festas de fim de ano. Mas a curiosidade falou mais alto.

     “O que será que este cara está fazendo aqui? Ele parece tão comum! Ele está bastante concentrado naquele livro velho. Bom, vou puxar conversa

“ - Olá Osíris! Osíris toma quase um susto, pois estava literalmente mergulhado até a cintura no livro.

– Olá Oliveira, que surpresa !

– A chuva me pegou no meio do caminho e então eu entrei nesta livraria para me esconder e passar o tempo até a chuva diminuir e voltar para o escritório.

– Ah sim. Eu frequento esta livraria há muitos anos, sou até amigo do dono.

– Estava olhando as estantes. Parece que só tem livros sobre coisas esotéricas.

– Sim, poucas lojas na cidade tem o acervo que eles tem.

– Eu não acredito nestas coisas

– Eu acredito e gosto muito destes assuntos. Mas é questão de gosto, não é mesmo?

– Sei lá, não creio que seja questão de gosto, acho que é questão de formação.

– Como assim formação. Formação religiosa?

– Não religiosa, digo formação de personalidade. Eu só creio naquilo que vejo.

– Ah então você é uma pessoa materialista.

– Talvez seja, mas pensar em algo que eu não possa medir, pesar ou atestar me deixa desconfortável, sei lá, me deixa inseguro.

– Você é um cartesiano?

– Sim, talvez seja. “Penso, logo existo”

– Eu penso também, e logo insisto em pensar que as coisas não são tão simples, tão preto no branco como parecem a primeira vista.

– Acho que sou uma pessoa simples, que gosta de tudo nos “conformes”, como dizem.

– Sim, cada um na sua praia, é verdade. Mas veja bem: você só acredita naquilo que vê, não é? Então você não acredita na televisão ou no rádio, pois não vemos as ondas que carregam a informação, seja imagem ou som, ou som e imagem ao mesmo tempo...

– Não, não sou assim tão burro. Só não acredito em vida após a morte, fantasmas, espíritos, ET's, e coisas do gênero, ou charlatões que enganam essas pessoas muito crédulas.

– Chegamos a um acordo, pois também não gosto de charlatões. Por isso é sempre bom buscar mais conhecimento e não somente informação. E abrir a mente às coisas novas, não somente às novidades passageiras, mas coisas novas que possam enriquecer sua mente. Quanto mais desperto menos chances temos de ser enganados.

– É verdade. Mas estas ideias de sair da mente, sair do corpo me causam irritação.

– Seria por medo do desconhecido?

– Sei lá, pode ser, mas eu gosto é dos pés no chão, da realidade.

– Desta realidade ?

– E há outra ? Eu só conheço esta.

– Pode haver, mas é uma questão de crença, ou de intuição e imaginação. Criatividade.

– Sei não. Como eu te disse, eu só acredito em fatos e números, principalmente números.

– Os números podem ser muito misteriosos, não acha?

– Misteriosos como? Números são números, 1, 2, 3, 20. 340, 72000, qual mistério há nisso? São símbolos gráficos somente.

– Tá certo, vamos deixar este assunto de lado, pois não sou especialista, só aficcionado.

– É, acho que a chuva está passando. Temos que voltar para o trabalho.

– Claro, claro. Escuta Oliveira, eu gostei desta conversa sabe? Eu nunca havia conversado com você antes. Você aceitaria um convite?

– Convite? Que tipo de convite?

– É o seguinte: eu frequento um grupo de estudos destes assuntos, que você vê nestes livros em grande número nesta loja. Não é um grupo religioso, nem uma seita. Poderíamos chamar de uma Ordem. Que se chama “Ordus Frateorum Celestiae”. Na semana que vem haverá uma festa num sítio não muito longe. Se você quiser poderá ir como meu convidado para conhecer. Talvez você possa mudar um pouco seus conceitos, e olhar por outro ângulo. Pode ficar tranquilo que não haverá sacrifícios humanos, nem de animais hahahahahah. São apenas cantos, danças, música e leituras.

– Ah não, não creio que vá gostar. Obrigado pelo convite, mas acho que não vou aceitar.

– Sem problema, mas pense melhor a respeito e depois me responda. Vamos que a chuva já passou.

– Passou? Como você sabe? Não tem janelas aqui.

– Ahahahahah, há mais coisas entre o céu e a Terra do que supõe nossa vã filosofia, conhece esta frase?

– Acho que é do Chacrinha.

– Ahahahah, gostei da piada.

      Oliveira andou em direção à porta com Osíris sem entender por que o outro achara que era uma piada.

       A semana passou dentro do que se espera de uma semana rotineira. A única diferença é que Oliveira não esqueceu da conversa com Osíris. Estranhou nunca ter conversado antes com este colega, e justamente quando conversaram o assunto havia sido tão improvável e delicado, para ele. Podiam ter falado de futebol, cinema, mulheres; mas não. A conversa foi como um alçapão que o tivesse jogado num porão escuro. Era assim como ele estava sentindo-se, mas não conseguia entender o motivo. Vasculhar as profundezas não era seu forte.

     “Ordem secreta, ora essa ! Eu é que não vou me meter nisso! Essas ordens são de adoradores do demônio. Mas o Osíris não parece adorar o Mal. Ele é um cara tão discreto, não parece fazer mal nem para um mosquito. Sei lá! Bom, o que é que custa, ele falou que era só uma festa com danças e músicas. Já sei, vou com meu carro e se não estiver gostando eu pulo fora. Mas, por que aceitar? Eu mal conheço ele, ele mal me conhece, por que me convidou? Isso não faz sentido. Eu vou dizer não. Espera aí, eu nem preciso dizer não. Acho que ele nem lembra que me convidou. Se bem que ele agora está me cumprimentando mais vezes. Sei lá, por que não? Nunca foi numa coisa dessas, pode até ser divertido. Será que tem mulheres bonitas? Sei não, aquelas que eu vi na loja eram bem esquisitas! Ora, não tenho compromisso mesmo! É, acho que vou. Acho que vai ser no mínimo curioso”.

      Após tantas considerações, hesitações e senões, finalmente Oliveira resolveu aceitar o convite para a tal festa daquela gente esquisita. No dia seguinte ele cumprimentou Osíris e na conversa informou ao colega que gostaria de participar da tal cerimônia.

– Ok Osíris eu pensei muito a respeito e gostaria de participar daquela festa que você me falou outro dia na livraria.

– Ah sem dúvida. Acho que você vai gostar. É uma festa muito tranquila, sem bagunça, sem gritaria e sem bebedeira. O detalhe mais importante que eu tenho para lhe dizer é que se costuma ingerir uma bebida um pouco diferente.

– Que bebida? Olha, eu não gosto de beber, eu não suporte álcool. Eu não gosto de ficar tonto e não saber onde estou...

– Não , não se assuste. Como eu disse não fazemos bebedeiras, nem badernas. A bebida que eu mencionei é uma beberagem feita com uma raiz de planta. Chamamos de “Mayaszolote”. É uma planta sagrada e mística. É uma planta ancestral que sempre foi usada em rituais.

– Eu sei! É como aquele Santo Daime. Já ouvi falar.

– Bem, é parecido. O processo é quase igual, só difere no caráter religioso. E na quantidade de gente. Nosso grupo é pequeno. Não sei se você sabe, mas durante toda a história sempre houve o uso de plantas nos rituais religiosos, seja entre os indígenas, entre os povos do Oriente Médio, na África, entre os celtas, os gregos. Plantas cujo efeito facilitavam o contato com o divino. Os xamãs utilizam e hoje em dia vários grupos neopagãos usam.

– Espera aí, eu agora fiquei confuso. Eu não acredito nisso e não gosto de me sentir fora da realidade.

-Não, mas você não vai experimentar nada na primeira vez. A menos que queira. Mas eu te garanto que é tranquilo.

– Tudo bem. Então me passe o endereço e me diga como chego neste sítio

– Sim.

       Então o endereço foi anotado e as instruções para chegar ao tal local ficaram claras para o convidado. Seria no sábado seguinte a partir das 19 horas. A lua cheia estaria em plena visibilidade. Um momento muito esperado pela ordem. Osíris guardava uma grande expectativa pela presença daquele colega tão reticente e descrente de tudo. Ele também ficara em dúvida porque havia convidado alguém que mal conhecia, não conseguiu achar para si mesmo uma explicação plausível, ainda mais envolvendo um grupo muito fechado. A ignorância e preconceito generalizado da população em geral costuma trazer desconfiança e hostilidade para eventos pouco entendidos. Quem sabe ele estaria fazendo proselitismo? Pescando peixes para o cardume? Se convencendo do próprio poder de convencimento?

       O sábado chegou com Sol pleno e temperatura agradável. Os preparativos para a cerimônia já haviam começado na quinta-feira com a limpeza e montagem das estruturas necessárias. Tudo estaria pronto no momento certo. O rigor e a disciplina eram questões de honra naquele grupo. Sempre eram recebidos novos membros, poucos, mas convictos após as tarefas de iniciação e aprendizado. Osíris já era um membro antigo e muito inteirado da estrutura e hierarquia estabelecida.

      Por volta das 18:30h os primeiros participantes começaram a chegar, entre eles Osíris, muito ansioso pela presença ou não de seu convidado. Cumprimentou a todos, circulou pelo ambiente para se certificar que tudo estava em ordem. Um clima de muita paz e congraçamento vestia aquela terra e aquelas árvores. Só estando lá, e sendo receptivo, para perceber a energia que emanava do solo. A lua cheia alta no céu era testemunha muda e impávida da celebração prestes a ser iniciada. Às 18:55 chega Oliveira. Ressabiado e deslocado, procurando por Osíris, seu ponto de referência. Este logo o localiza e faz as honras da casa.

– Seja bem vindo à Ordem. Eu lhe recebo em paz e de bom grado.

– Ah, obrigado

– Estamos esperando somente a chegada da Grã Sacerdotisa para começar .

– Grã o que?

– A Grã Sacerdotisa. Nossa ordem é regida por uma mulher.

– Que estranho!

– Nós somos muito igualitários. Não há distinção de gênero.

–Como eu devo me portar? Há algum roteiro escrito? Eu estou meio nervoso, tem muita gente aqui. 

–Olha, somente acompanhe a cerimônia.. Não é difícil. Eu não poderei ficar à seu lado, pois eu exerço funções que me obrigam a ficar ao lado da Grã Sacerdotisa durante parte do ritual. Mas pode perguntar a qualquer outro membro, pois todos terão prazer em lhe ajudar.

 – Quer dizer então que você é importante aqui?

– Sim, eu sou veterano e galguei vários degraus na hierarquia.

– E a tal bebida?

– Ela é servida na primeira parte do ritual.

– Eu terei de beber?

– Só se você quiser. Você veio como convidado e observador. Não é obrigado a nada.

– Hummmm, ainda não sei. Sabe como é, eu tenho receio, mas também, parece absurdo, sou curioso, sabe? Parece uma pulga que fica picando o tempo inteiro, H“e se, e se, e se ?”

– Entendo, é normal, faz parte do ser humano. O desconhecido é um ente poderoso na mente da humanidade. Amedronta, eu sei, mas instiga. Por isso nós evoluímos, E por isso atravessamos oceanos e cordilheiras. Por isso queremos olhar mais longe e mais perto, tão perto que chegamos no mais ínfimo, no limiar do visível. O limiar do visível leva ao invisível, aquele lugar que não sabemos. Só a imaginação pode nos guiar nestes caminhos impensados. Eis uma sugestão importante para hoje: libere sua imaginação.

– Imaginação não é o meu forte. Como eu te disse eu gosto das coisas certas, tudo preto no branco.

– Imaginação é uma ferramenta poderosa. Ela pode salvar. Guarde isto como um talismã.

– Tá certo, tá certo. Eu sou seu convidado. Prometo me comportar.

– Lembre-se que está no meio de amigos.

     A Grã Sacerdotisa chegou às 19:17h. E todos a reverenciaram. Ela distribuía sorrisos e afagos até chegar ao altar, ou algo parecido, segundo à percepção de Oliveira. Ele ficou impressionado com a beleza daquela mulher. Tinha entre 45 e 50 anos e um rosto com traços marcantes, como se esculpidos por algum artista muito inspirado, quase encantado. Boquiaberto,a partir de então ele começou a olhar aquele ambiente estranho com outros olhos. No caminho até o centro da cerimônia, em meio àquela pequena multidão, num determinado ponto a sacerdotisa se virou e olhou direto para Oliveira. Ele ficou paralisado. Numa fração de segundo ele se lembrou de um olhar parecido, numa lembrança que remontava a sua infância, na praia numa noite de 31 de dezembro, longe no tempo. Ele, que começava a ficar interessado no encontro, de repente ficou desanimado e confuso. O olhar penetrante e inquisitório daquela linda mulher tinha o estranho poder de desnudar o interlocutor, não de tirar suas roupas mas de tirar as máscaras que porventura obscureçam as reais intenções. Não havia como mentir ou falsear naquele território. Osíris, muito perspicaz, logo percebeu e serviu de ponte entre os dois.

 - Grã Sacerdotisa, este é o convidado que havia mencionado. Ele tomou coragem e veio em nosso encontro.

–Eu pude perceber que tínhamos estranhos entre nós. Você preparou o caminhou para ele ?

– Sim, tivemos uma longa conversa e o coloquei ciente de nossas intenções.

– Que seja bem vindo então! Esta última frase foi acompanhada de um sorriso amistoso e ao mesmo tempo distante. Oliveira se sentia como aquela criança rodeada de pessoas desconhecidas, sendo resgatado por seu pai de olhar severo e tenso. Osíris tomou-o pelo braço e o levou ao local reservado aos iniciantes. Com o coração acalmado ele sentou-se nas almofadas preparadas com todo o cuidado para receber os novos interessados, e os que voltavam por uma segunda vez. A cerimônia começou às 19:30min. Um grande gongo soou e vários incensórios foram acesos. Os participantes formando círculos de 7 pessoas respiravam compassadamente e recitavam frases em uníssono, com voz baixa e ritmada. Vários archotes já iluminavam o território, e as chamas ondulantes formavam uma moldura de luz espectral, porém muito confortável à vista. Uma música suave preenchia o ar já impregnado com o aroma sutil dos incensos. O volume não atrapalhava o andamento das recitações. Por sobre todos, a Lua não poderia estar mais linda nesta noite, branca e redonda, com sua pele velha das eras incontáveis, morta mas ativa ao mesmo tempo, dardejando raios de uma luz pura furtada do Sol. O grande gongo soou pela segunda vez e os iniciados entrelaçavam suas mãos, formando redes de sete em sete, sentados na grama em contato direto com o solo e suas emanações. Deu-se início a um canto sussurrado, acompanhando pela música, agora um grau acima do tema inicial, uma música circular, quase uma espiral, quase uma hipnose. O vento suave combinava com a música, como se fosse controlado por forças desconhecidas, acariciando a todos os afortunados que partilhavam deste momento tão ímpar. A Grã Sacerdotisa acompanhava tudo em silêncio respeitoso. Seus olhos atentos e profundos mantinham vigilância sobre seu território. Seus segundos sacerdotes auxiliavam na condução da cerimônia, ciosos de que tudo corresse em paz. Nada que contradissesse a intenção inicial e principal desta ordem. O grande gongo soou pela terceira vez. Sua vibração se elevou no ar por alguns minutos. Depois fez-se silêncio. A Grã Sacerdotisa iniciou um cântico em voz solo, uma melodia mântrica ondulante, calma, aconchegante; um cântico evocando um útero, um abrigo, uma fonte de calor, uma carícia aos ouvidos convertidos em fiéis depositários de verdades antigas e incontestáveis. Por longos minutos foi só o que se ouviu naquela propriedade coalhada de árvores grandiosas, onde o mal, a cobiça, a inveja não poderiam entrar sem ser convidados. E pela vontade da maioria não seriam jamais. Então o grande gongo soou uma vez mais. Era o quarto toque. Os grupos de sete se desfizeram e começaram a ser formadas as filas para compartilhar a bebida sagrada. Nos galpões do sítio outros auxiliares preparavam a infusão, onde em grandes tachos a bebida borbulhava exalando um cheiro acre, não muito agradável, pelo menos às narinas desacostumadas. Cinco grandes tachos cheios seriam suficientes para atender àquela pequena multidão de iniciados e os poucos convidados, que poderiam ou não ingerir o néctar. Osíris, um dos segundos sacerdotes, neste momento liberado de suas incumbências, foi ter com Oliveira. O homem descrente e reticente estava ainda num estado entre o choque e o encantamento pela voz e pela presença da Grã Sacerdotisa. O primeiro olhar que ela lhe dirigiu ainda o queimava e gelava simultaneamente. Ele pouco acompanhou do restante da cerimônia até aquele momento, também em função da repulsa que este tipo de atividade o acometia. Balbuciar é o que se poderia dizer do som que jorrou de sua boca, quando Osíris chegou e perguntou:

-E então, o que está achando? Não lhe falei que seria um momento bonito e de muita tranquilidade?

_ Ehhhh, eu, eu,eu, não sei......É tudo novo pra mim, eu não entendo aonde isso vai....

– Nós só buscamos o conhecimento, a paz, a convivência harmônica, o equilíbrio com o mundo natural

 – Ah sei.

– Agora é a hora da comunhão. Nossa hóstia é a Mayaszolote. Você se decidiu a experimentar?

        Se a comunhão de alguma forma fizesse com que Oliveira pudesse se aproximar da Grã Sacerdotisa, então sua hesitação estava enfraquecendo rapidamente. Seu medo de perder contato com a realidade estava em conflito com algo que ele não saberia expressar em palavras no momento, mas uma força maior o atraía para um terreno desconhecido.

– Sim, eu vou experimentar.

– Então pode se dirigir para a fila. Após a ingestão, apenas lembre-se de manter a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranquilo (onde foi que eu ouvi esta frase ?).

       Oliveira ficou no final da fila. Num clima de congraçamento os participantes vertiam os copos em suas bocas com grande alegria. As conversas durante o intervalo da cerimônia transcorriam num volume baixo e respeitoso, como se as pessoas não quisessem deixar escapar aquela paz que ocupava seus corações. Os iniciantes estavam ansiosos para fazer parte daquele estado, tão bem descrito pelos mais experientes, que os haviam convidado, cada um com sua experiência particular, pois não se pode transmitir de forma completa o que cada um sente, é uma jornada muito particular e intransferível. Finalmente chega a vez de Oliveira. Ele está tenso, mas por fim se convenceu de que deveria experimentar. “Em Roma, como os romanos, é o que dizem”. No fundo a real motivação dele agora era outra. Pode ser que o ambiente campestre de certa forma tenha estimulado algum canto animal mantido escondido à custa de muito esforço, e que agora quer dar as caras. Não se sabe, pois a vida em sociedade impõe muitas amarras e convenções, decerto necessárias para manter animais em jaulas de consciência. A outra opção é a barbárie, que foi banida, a menos que os valores monetários envolvidos sejam relevantes. Mas isto é antropologia, ou quem sabe sociologia, corroborada pela economia, assuntos que não entendo. Ele segura o copo com receio. A bebida está quente e o cheiro não é lá muito atraente, parece sopa rala misturada com peças de roupas suadas. A cor é terrosa e o aspecto desagradável. “Credo, o que será que este povo vê nisto !? Isso tem de ser muito bom, tem que valer muito a pena. Será que eu consigo? Será que eu não vou vomitar ? Seria o maior vexame.” O rosto da Grã Sacerdotisa veio de novo em sua mente, e foi o impulso para virar de uma vez a beberagem garganta abaixo. “Ahhhhh, o gosto é forte. Mas... até que não é ruim. É, não é ruim. O gosto é adocicado. Acho que vou tomar mais um copo. Não senti nada de diferente.” 

      Enquanto os últimos participantes tomavam sua cota de Mayaszolote, o grande gongo soou pela quinta vez. Uma grande fogueira foi acesa e já iluminava o pátio onde os iniciados voltavam aos círculos de sete. Agora estavam todos compenetrados, todos voltados para si. O efeito da bebida difere de acordo com o grau de intimidade e consciência de cada um. Aos mais sensíveis e aos iniciantes se recomenda meio copo para começar. Oliveira tomou um copo cheio. Osíris o acompanhava de longe. Estava muito curioso para ver a reação de seu colega descrente. Coisas estranhas poderiam acontecer. A Grã Sacerdotisa pediu silêncio e dirigiu a palavra à seus seguidores. A música cessou por completo e o vento era apenas uma brisa muito leve e suave. Com voz forte e direta ele pronunciou: “Meus pares, eis o momento de nossa introspecção. Calem sua mente, aquietem seu coração, aqueçam sua alma e respirem com tranquilidade. A unidade se apresenta, o raio mais puro da Lua agora toca o alto de suas cabeças, a porta se abre. Deixem passar.”

     O silêncio era absoluto, somente o som do fogo crepitando era permitido. As chamas ondulantes criavam ornamentos luminosos refletidos nos rostos serenos e quase imóveis dos participantes da cerimônia. Oliveira estava sentado numa almofada, no mesmo ponto onde estivera sentado durante a primeira parte do evento. O gosto adocicado da bebida deixara-o tranquilo, e nos primeiros minutos após a ingestão nada de diferente havia acontecido. A princípio ele achou que tudo não passava de uma fraude, que era tudo fingimento, tudo teatrinho barato e manipulação. Começou mesmo a ficar decepcionado. Até que......

     Sua respiração ficou levemente ofegante, e a transpiração aumentou de repente. Ondas de calor e frio intenso se revezavam em seu corpo, que começava a tremer. Ele tentou conter o tremor mas em vão. Suas mãos começavam a formigar e ficar geladas. Uma paralisia crescente foi tomando de assalto aquele homem trêmulo. Ao mesmo tempo e num efeito estranho para alguém tão acostumado a se manter alerta, sua mente foi como que escorregando numa cama macia forrada com lençóis de cetim. Ele não opôs a mínima resistência, e sentindo-se leve, cada vez mais leve, um sorriso interno apagou o calor e o frio do início, e o tremor incontrolável já não existia. Agora ele estava de pé pisando em uma superfície que parecia gelatina translúcida, enquanto clarões de uma luz alaranjada pulsavam ao longe, ou atrás de sua cabeça, ou entre seus dedos, ou atravessavam sua cabeça, ele não tinha certeza. Poderia ser tudo ao mesmo tempo. Qual tempo? A luz agora verde azulada estava dentro de seu corpo. Ele olhou ao redor a não viu nada nem ninguém. “Como é o nada?”, e este pensamento percorreu sua mente. Mas sua mente não estava ali, ele via sua mente como ondas de calor e raios, uma tempestade eletromagnética à distância. “Onde está o horizonte?”, e o horizonte era curvo e voltava para dentro de si, o que estava longe parecia perto e o que estava perto mudava de forma e cor a todo momento. Ele via o nada, que estava perto e longe ao mesmo tempo, em cima e em baixo no mesmo plano, plano este que não era reto nem curvo, uma abóboda e uma esfera dentro de um buraco escuro, onde a luz escapara. Ele viu um garoto e um velho que tinham a mesma face, e um par de olhos que pareciam ocupar todo o espaço, olhando para ele que não tinha como se esconder, e os olhos o englobaram, agora era um olho somente, que via o garoto e o velho num mesmo corpo que ocupava todo o espaço. Dentro do olho ele viu o rosto espantado do garoto, que com medo procurava desviar daquele olhar que parecia fitá-lo e ao mesmo tempo não olhava para nada. Olhava para o nada. “Ainda não sei como é o nada”, e uma voz longínqua sussurrava : “Você ainda não está preparado”. A tempestade que era sua mente pulsava em fagulhas de luz numa velocidade alarmante, luz que escapara do buraco negro que engolira a abóboda e a esfera, que agora voltava girando e mostrava uma projeção. Era a vida do velho ao contrário. A esfera para de repente e mostra o garoto espantado, numa praia vazia, onde a água flutua e o horizonte é curvo. O garoto se funde a ele, que sai e voa para um ponto distante, e no mesmo momento ele se enxerga de longe, muito longe, tão pequeno quanto um átomo, mas não gosta do que vê e fica triste. “Como poderei consertá-lo?” e a voz sussurrante retorna e fala “Você ainda não está pronto, apenas aceite” . As lágrimas começaram a descer pelas bochechas, e ao cair viravam nuvens densas que passavam rápido em redemoinho. Muitas lágrimas brotavam de seus olhos e o redemoinho aumentava de tamanho e velocidade, agora já um turbilhão de nuvens, que o convidavam a entrar e girar em espiral descendente até o centro. Centro de quê? As dimensões estavam embaralhadas em sua mente. Não havia chão ou céu, apenas um fluxo constante que o carregava sem direção. As lágrimas começaram a criar um invólucro ao redor de seu corpo, e isto parecia para ele uma capa protetora. Esta capa ia grudando e retirando as camadas superficiais, até que todo o seu corpo ficou exposto. Agora estava claro e luminoso e sua luz começou a sair e ganhar volume. As lágrimas pararam de cair e a luz que emanava de seu corpo tingiu as nuvens em espiral de um tom claro e suave. Reconfortante. Ele estava mais confiante e tranquilo, e uma onda de calor e alegria penetrou o alto de sua cabeça, descendo pelo corpo. A voz sussurrante chega mais uma vez ao seu ouvido : “ Por agora chega. É o momento certo para voltar. Seu primeiro dia terminou. Mas você não está pronto ainda. Acorde”. Aos poucos sua vista foi re-acostumando com a luminosidade amortecida do luar, da fogueira e dos archotes espalhados pelo pátio. 

     Três rostos sérios mas calmos olhavam para ele. Ísis, a Grã Sacerdotisa; Osíris, seu colega e João Hermes, o terceiro na hierarquia. Não havia censura nos olhares, só um pouco de curiosidade em saber o que se passara com o convidado. Reinava ainda aquele ambiente de tranquilidade, e os participantes ainda em grupos apenas sorriam e trocavam palavras de conforto e regozijo. Oliveira demorou a se recompor, a recobrar a memória e o tino. Vários minutos se passaram até que ele conseguisse articular alguma ideia que fizesse sentido. Seu rosto estava molhado pelas lágrimas, porém não chorava e não chorara durante o transe. As lágrimas pareciam ser no fundo somente uma purificação, algo que se soltara e queria sair já há tempos, e hoje havia achado o canal que permitiu o transbordo. Ele permanecia sentado, pois sentado ficara por longos minutos, ainda preso à terra, mas muito distante dela ao mesmo tempo. Os demais participantes, quase todos já acostumados com o efeito, haviam retornado. Os poucos iniciantes de primeira viagem também já haviam cessado o batismo. Mas ele, que virara o copo com a bebida com muita pressa, demorara mais tempo para retornar. Ainda confuso, ele olha ao redor e aos poucos reconhece o único rosto familiar, o de seu colega de trabalho Osíris. Este se dirige a ele, passa a mão sobre sua cabeça com um gesto desconhecido.

-Então, como se sente? A primeira vez é sempre difícil. Muitas pessoas não quiseram retornar depois da primeira experiência. Nós entendemos e acatamos. Pode ser um tanto assustador. Você parecia tranquilo, apenas as lágrimas é que poderiam dar a impressão que algo estava errado, mas sabemos que não é assim. As lágrimas muitas vezes são como uma lixa, que retira as impurezas e asperezas de uma superfície. É o sal que evapora de um terreno para permitir que a semente possa eclodir e brotar. Fique à vontade. E fica a seu critério se vai querer compartilhar sua experiência conosco. Talvez queira perguntar algo, estamos aqui para ouvir e tirar suas dúvidas. Lembre-se: você está no meio de amigos. 

  - O que houve comigo? Eu não lembro de nada. Eu tive um sonho, mas não lembro direito. Eu não lembro, eu não lembro.

-Sim, pode levar algum tempo até que você consiga articular o que viu, ouviu ou sentiu, são caminhos improváveis, e cada um tem o seu caminho. Podem ser apenas sensações.

-Eu lembro agora de ouvir uma voz muito longe, e de olhos. Um olhar que me perseguia. Na verdade é um olhar que me persegue desde criança. Isto está claro para mim agora! É aquele olhar da velha na praia! Ele sempre me perseguiu. Mas, e a voz? Era um sussurro no meu ouvido que dizia algo como “você não está pronto”. Eu vi muitas coisas estranhas, eu vi o escuro, eu vi muitas luzes. Eu vi um velho...que velho seria aquele? E o tempo? Eu estou com a impressão que eu viajei por muitos anos, mas não sei. Eu quero voltar ao normal!

    Ele agora demonstrava um desequilíbrio, se debatendo agitado. Saiu da zona de conforto e se deparou com uma situação inusitada e difícil de entender e lidar, tudo em cerca de uma hora e meia. Um grande avanço e um grande choque para alguém tão avesso a caminhar pelas trilhas inseguras da mente. O trio líder da ordem cercou-o formando um triângulo, os três de olhos fechados murmuravam alguma coisa ininteligível para o pobre Oliveira. Mas não é que o homem foi se acalmando! Dez minutos depois ele já respirava num ritmo normal. E a mente começou a clarear, o raciocínio voltou ao padrão de antes. Ou não ?

- Uh, agora estou melhor. O que vocês fizeram?

- Restabelecemos seu equilíbrio, disse Osíris.

-Como? Só com esta reza estranha?

-Pode chamar de reza se quiser.  De fato a oração tem um poder ainda não estudado e mensurado.Quero saber se você está se sentindo bem ? 

- Sim, sim, estou bem. Até melhor do que antes. Confesso que cheguei aqui bem desconfiado. Mas... acho que gostei. Quando poderei fazer de novo?

- Ahahaha, calma! Mal chegou a já quer mergulhar de cabeça?. Tem de ser devagar. Por hoje é só. Eu aviso quando tivermos outra cerimônia. O restante da cerimônia é somente para os iniciados. Você precisa ir embora agora.

 -Ah que pena! Mas tudo bem, eu vou aguardar a próxima. E se retirou com calma do sítio. Não sem antes olhar mais uma vez para a Grã Sacerdotisa. Já no caminho de volta, mesmo estando calmo, sua cabeça fervilhava de dúvidas. Tudo o intrigara naquela experiência. Ele sentia o corpo leve, satisfeito mas a mente era um bombardeio, uma confusão, povoada de imagens desconexas, imagens confusas e longínquas. Nem se deu conta do tempo da viagem até sua casa. E mal conseguiu conciliar o sono nesta noite.

    O domingo o encontrou bem disposto. Quase não sentiu fome, pouca vontade sentiu de sair, de ler o jornal, de ver o futebol na TV. Só havia para ele um rosto que não abandonava sua memória, e aquele olhar que o deixara atordoado. Quando seria a próxima vez? Na segunda-feira ele mal conseguiu esperar que Osíris chegasse. Correu para sua mesa de trabalho e, antes mesmo de dar um cordial “bom dia”, já foi perguntando:

– E então, quando será a próxima cerimônia ?

– Ora, ora, semana passada você nem queria saber desta história e hoje já está assim tão ansioso, hehehehe! Eu disse que seria bom, não é mesmo? Bom dia!

– Ah, bom dia, me desculpe. Sim, foi mais do que bom, foi uma experiência bastante reveladora.

– Jornada do auto-conhecimento é muito reveladora. Mas requer cuidados e cautela. Não vá acordar o dragão antes de estar fortalecido.

– Qual dragão? Não entendi.

– São símbolos, são arquétipos muito antigos.

– Quando estarei fortalecido?

– Talvez você nunca saiba.

– O que eu vi?

– Eu não vi o que você viu.

– Era sua voz que sussurrava no meu ouvido, eu acho que você sabe o que eu vi.

– Eu não tenho este poder.

– Quem é você? – Como todos, apenas um estudante. Sim, era eu que sussurrava em seu ouvido.

– O que aconteceu comigo?

– Estava se descobrindo. Você era o velho e o menino. O tempo é misterioso.

– Eu precisava?

– Quem sabe? Só você pode responder à isto.

– Quando será a próxima vez?

– Breve

– Eu estarei pronto ?

– Sim. Mas uma dúvida. Como você percebeu que a voz era minha?

– Eu estava desperto.

      Só alguém que estivesse convivendo tão próximo para perceber em Oliveira a mudança crescente. Será que a bebida subira tanto assim à sua cabeça? Só um copo daquele líquido e ele, poderíamos dizer, estava convertido? Não é tarefa fácil, até mesmo diria que impossível, entrar na mente de alguém para contar sobre o estado mental e das ideias que percorrem aquela extensão tão pequena, parte integrante e vital de um corpo humano. A ansiedade e a expectativa do próximo encontro corriam lado a lado com a lembrança cada vez mais clara e forte das imagens e supostos lugares onde ele estivera durante os breves momentos de desligamento da prisão da matéria. As lágrimas que correram e viraram nuvens limparam sua vista e desobstruíram seu entendimento. As mudanças muitas vezes são necessárias e esperadas, mas a velocidade da mudança em Oliveira era fora do que se espera. No trabalho ele começou a ficar, digamos, desleixado com suas tarefas. No decorrer do primeiro mês após a experiência ele até que conseguia manter a sua rotina, dando conta de suas metas e dos clientes. Sua tela de computador que estampava a página da empresa ficou branca, após a remoção da imagem. Em seu lugar a imagem de um olho. Fixo nele, como companhia das horas de labuta. No mês seguinte a ansiedade aumentou. “Quando será o próximo encontro? Por que demora tanto?” E a ansiedade começou a cobrar a conta em seu desempenho no trabalho. Demorava a retornar as ligações, não entregava os relatórios no prazo pedido, ficava disperso nas reuniões.

    Um dia, uma quinta-feira, após sair para uma visita à um cliente importante, ele parou numa praça e ficou sentado por horas procurando nuvens no céu. O celular desligado, a gravata afrouxada e os pés descalços tocando o chão. Quando retornou já no final da tarde, sua equipe estava muito apreensiva com seu sumiço. E como explicar o que acontecera ? Ninguém entenderia. Osíris, um pouco distante, sabia o que estava acontecendo. Porém se calou. Sua família, embora não tão presente em sua vida, também percebeu a mudança de comportamento. Mas não quis se intrometer, afinal ele era um adulto independente e cioso de sua privacidade. Quando as contas começaram a atrasar e a ameaças de corte dos serviços ficaram mais insistentes, ele simplesmente ignorou. Sua aparência por certo também começou a demonstrar o grau de inquietação, a ansiedade, a mudança que um simples copo de bebida alucinógena haviam iniciado. O cabelo desgrenhado, o rosto sempre por barbear e as roupas sujas chamaram a atenção até de seu diretor, que o chamou para uma conversa séria:

– Oliveira, o que está havendo com você?

– Sr. Prado não há nada errado comigo.

– Como não? Todos estão reparando em você, que sempre foi tão correto, e agora está deixando a desejar. Seu desempenho está caindo muito, seus clientes têm reclamado com frequência, sem falar em sua aparência. Diga-me: o que está acontecendo? Estamos aqui para ajudar. Você está vivendo alguma crise séria? Você precisa de uma licença? Pode se abrir e falar francamente.

 –Sinceramente, eu não vejo nada errado comigo. Só estou me descobrindo, descobrindo coisas que eu não sabia até então. (mas achou prudente não falar mais do que isso)

– Bem, então eu tomo a iniciativa de colocá-lo em licença para que você se aprume. Eu acho que você precisa. Dou-lhe um mês. Depois deste prazo conversaremos de novo para reavaliar o quadro.

     Finalmente Osíris entrou em contato para dizer que no final da semana haveria outro encontro. Oliveira quase explodiu de alegria ao saber, e ficou contando os minutos até o sábado. As lembranças ficavam cada vez mais claras, as imagens da viagem e o rosto encantado da Grã Sacerdotisa. O medo de sair da realidade agora dava lugar à expectativa de uma nova jornada de auto-conhecimento. Não mais um convidado e nem mais um iniciante, pois já provara do néctar. Assim ele estava encarando sua segunda experiência. Sábado, assim como todos os outros sábados. O mesmo lugar e as mesmas instruções. Já não eram novidade. Aquelas pessoas já não eram tão estranhas assim, não é mesmo? “Olhe, são pessoas normais, por que não vi isso antes? Acho que o único estranho aqui sou eu”. “Agora eu começo a entender a ideia de preconceito. Ao chegar aqui, hoje, eu senti algo diferente. Algo bom, familiar. Eu estou bem. Eu estou contente. Eu estou ansioso. Me dê logo isso !”

      A fila do chá de novo. Não é mais o último da fila, mas o primeiro. “Encha todo o copo, por favor” A voz da Grã Sacerdotisa entoou o mesmo canto. O silêncio era como uma seda que envolvia a todos num abraço macio, deixando os ouvidos e mentes num ponto de relaxamento tal que a melodia os conduzia para a porta de saída. Cada qual com sua porta. A Lua já não estava visível no céu neste sábado, porém o clima continuava agradável e propício. Após os minutos de praxe depois da ingestão da beberagem, Oliveira se acalmou e esperou. O mesmo tremor, o mesmo suor e a variação brusca de temperatura corporal. E então.... A voz da sacerdotisa se transformou numa mão que segurou firme a mão do garoto. A primeira porta se abriu e a mão e ele adentraram aquele território. Luzes, luzes, como ondas, como nuvens, como uma estrada. Não havia chão ou céu, só a mão firme que puxava cada vez mais rápido. Luzes, luzes, como ondas cada vez mais altas e envolventes. Luzes que cercaram o menino e o rodeavam com o se fossem vesti-lo com trajes adequados para enfrentar a viagem. A segunda porta se aproximava, não era retangular ou redonda. É difícil descrever as formas neste território. A geometria estava transfigurada. A porta parece de fogo líquido, um fogo que não assusta. É um fogo que atrai e o calor aumenta. A porta parece se fechar e puxa o menino com mais vigor. A mão o empurra com firmeza e ele passa pela segunda porta. No próximo nível o território é mais denso. As luzes permanecem, porém são mais intensas. E um pouco mais escuras. Ele flutua sem medo e está de olhos fechados. Não precisa dos olhos abertos para sentir. A mão não está presente, agora voltou a ser a voz macia que o guia neste segundo nível. O garoto ficara para trás e o adulto ganha substância neste segundo passo da viagem. Nuvens se formam e chovem lágrimas que se misturam com as cores incomuns e indescritíveis. Ele se vira e percebe formas como rochas. Estavam atrás e eram muito disformes. No avanço dentro deste território ele vai observando as formas rochosas. Uma formação em especial chama sua atenção, pois parece um corpo de homem que toma um banho com um líquido espesso. O banho começa a dissolver a formação, espalhando gotas que flutuam e avançam em sua direção. Algo lhe alerta que estas gotas não podem grudar em sua pele. Em seu avanço ele aumenta a velocidade. O alerta veio da voz, que o instiga a fugir das gotas que o perseguem: “-Estas gotas não fazem mais parte de você” Com um ânimo novo e forte ele flutua em direção a terceira porta, que se apresenta agora com uma luminosidade mais clara. Mais uma vez a porta vai se fechando e ele tem de se apressar. As gotas aumentam de tamanho, número e velocidade. Por uma fração de tempo e espaço ele mergulha na terceira porta, que se fecha e engole as gotas persecutórias. “-Não há mais volta e o caminho ascende” O terceiro passo é muito estranho, bem como são estranhos todos outros, todavia aqui há muita incerteza. O corpo de adulto que flutua não segue numa direção muito precisa. Este território parece um labirinto, com cores contrastantes e luzes cambiantes. Ele não sabe, e nem sente se há uma quarta porta, e se o caminho ascende, como disse a voz-guia, por que não percebe a subida. É tudo muito confuso neste terceiro passo. Há um sentimento de dúvida e uma vontade que fraqueja. Por quê, se logo antes havia tanta pressa e ânimo? O corpo que flutua (ou seria a mente?) vai sem direção. Onde está a voz? De repente lá está o olho de novo. Ele quer desviar, mas o olho parece ser onipresente. Só que desta vez o olhar não é severo ou vazio. Não está presente aquele medo de que o olho o esteja reprovando. Há um brilho, mesmo que muito tênue e distante. Há uma vontade de incentivo, mesmo que pouco perceptível ainda que seja neste mundo de regras diferentes. Dito claramente, há uma vontade de dizer “sim” com o olhar. O ânimo foi insuflado novamente e o prumo foi retomado. A ascensão começa e o labirinto fica para trás. As luzes ficam mais firmes e giram em espiral. O corpo flutua agora com tranquilidade e certeza, numa mudança brusca de perspectiva. Este território é mesmo muito estranho, onde tudo se processa de modo diferente. “ - Você está pronto para a quarta porta.”, e desta vez a voz era diferente. Parecia vir do olho. Uma fonte de luz muita mais intensa do que antes surge no que parece ser uma nova porta, ou saída. Esta luz-guia exerce uma atração irresistível, mas ao invés de puxá-lo com mais força, aparenta uma desaceleração. O corpo leve, tão leve que não parece ter peso ou massa, vai ao sabor do acaso. A pressa de antes desaparece e não há urgência. A luz brilhante aguarda e só há calma, uma calma que exerce o papel de blocos de construção, e estes blocos sustentam todo este território agora. Um palácio feito de calma. Por que sair daqui então ? “-Vá para a quarta porta.” “Não quero”. Não é um diálogo, é só a vontade que prevalece. “Aqui é tão bom, por que sair? Sinto que aqui eu poderia ficar para sempre”. “-Vá para a quarta porta” “Não quero. Eu gostaria de ficar aqui para sempre.” “-Você precisa ir para a quarta porta” “Por que esta insistência? Eu estou contente.” “- A terceira porta está voltando, você precisa sair!” e o olho antes tão claro, agora mostra um tom mais lúgubre. “Se a terceira porta voltar e lhe alcançar tudo voltará ao que era.” O alerta chegou como um choque que abalou o palácio da calma. Aquele estado de sono dos justos, dos que não devem mais nada, foi interrompido com frieza. Seus olhos fechados foram abertos pela urgência da mensagem. Ele se volta e vê com apreensão ao longe, (ou perto, não se pode ter certeza das distâncias neste território) a porta que volta, agora em fúria ígnea, acompanhada da chuva de gotas. A respiração acelera. Ele quer flutuar de novo, mas não consegue. As paredes do palácio da calma parecem descer e se aproximar para imprensá-lo. Um peso insuportável surgiu assim para convencê-lo que, não importa onde ou de que maneira, se você deseja ficar num estado de paz e tranquilidade, isto não é possível, isto não está permitido. E se não está permitido, está proibido, portanto um empuxo violento não se sabe partindo do quê o lança numa espiral veloz em direção à quarta porta, contra sua vontade. Há uma turbulência crescente, um tremor incontrolável, um medo que até então não se apresentara. Parece mais uma reentrada na atmosfera terrestre, onde a pressão aumenta e a rarefação diminui, diminui, diminui... E a quarta porta chega finalmente. -Acorde, acorde! Com veemência a Grã Sacerdotisa o sacode, pois sua respiração estava muito intensa e entrecortada, e seu batimento cardíaco estava muito acelerado, criando preocupação para o trio condutor da cerimônia. Osíris, de forma mais evidente, demonstrava mais desconforto com o estado de seu colega-convidado, agora já não mais tão despreparado. Ou não? Oliveira se recolheu ao chão numa posição fetal, semi acordado. Ainda ofegante, ele mal consegue dizer qualquer coisa. Os olhos piscam e os lábios tremem, e ele está encharcado de suor. Uma paralisia toma conta de seus membros. A repetição da experiência foi recheada de novidades. Cada vez é uma viagem diferente, onde se conhece a entrada mas nunca a saída. Uma análise acurada de sua mente, partindo do ponto 'a', o ponto 'a' sendo a descoberta deste mundo, e o ponto 'b', sendo o agora, mostra-nos uma evolução. Aquele homem tolhido, de curto alcance mental agora estava no chão, contorcido como um elástico no momento anterior ao disparo. A carga derramada em sua mente e em seu entendimento havia sido intensa. Para muitas pessoas seria suficiente para terminar seus dias num estado catatônico.

       “ _ Eu quero voltar”, ele disse. “Há um trabalho em andamento. Eu não posso parar agora. Falta a quinta porta. Onde está a quinta porta? O olho agora está do meu lado. A leveza é tão boa !”. Este discurso desarticulado jorrava de sua boca antes mesmo de se levantar do chão. O trio condutor da cerimônia, formando um triângulo ao redor dele, olhava com atenção para o mesmo homem que havia chegado com desconfiança e desdém na primeira vez. Uma grande mudança, inesperado até para quem ao longo dos anos acompanhou um sem número de iniciantes que passaram pelas mesmas provas, e que regressaram modificados, sem dúvida, mas ao longo de um trajeto gradual. Tudo nele estava sendo muito urgente e muito brusco.

     “- Eu quero beber de novo, eu quero voltar... para lixar a pedra que eu fui. Eu preciso voltar para o segundo plano. É isso, a pedra sou eu. Eu estou enxergando melhor agora. Eu vi. Eu quero voltar” “

- Por hoje é só.” E as palavras definitivas da Grã Sacerdotisa, tal como um tapa ou uma bebida forte restauraram a lucidez do pobre homem. Qual o poder daquela voz?

“-Venha, levante-se. Siga-me até seu carro. Você precisa de um descanso agora.” Disse Osíris. E então a segunda experiência de Oliveira termina por hoje. Os demais participantes já haviam se retirado, o fogo ardia fraco e as brasas quase se apagavam, como se estivessem em sincronia com a duração da cerimônia. O céu sisudo vestido de nuvens grossas indicava uma dia cinzento por nascer. A paz mantida naquele território estava em contradição com a respiração ainda alterada e o coração apreensivo do pobre homem em transformação. Osíris o carregava pelo braço, pelo caminho até o automóvel. Ao chegar certificou-se se o motorista conduziria em segurança, pois muitos quilômetros separavam o sítio da casa de Oliveira, e o estado dele inspirava alguma atenção.

“_Não se preocupe, eu já estou desperto. Há algo nesta mulher que me intriga”. E se foi. O processo de transformação já estava em andamento e isso incluía uma incompatibilidade crescente com o trabalho e os demais aspectos da vida prática. A semana seguinte ao segundo encontro foi por demais penosa para ele. Ainda de licença mas com a cabeça já em outro ponto, ele se debateu entre as lembranças, ou melhor, entre as sensações que impregnaram todo seu corpo e já não se apagavam, muito pelo contrário, a todo momento novas sensações afloravam, inoculadas durante o ritual. 

        Trancado em casa, ele que sempre fora avesso ao devaneio, se entregara de forma quase obsessiva à coleta e catalogação, se assim podemos dizer, das memórias embebidas em Mayaszolote. Uma mistura de nuvens, lágrimas, luzes, portas e formas, cores e sons intraduzíveis eram transpostas em folhas de papel, na forma de garranchos, sinais gráficos, borrões, palavras soltas, desenhos toscos (uma vez que ele nunca tivera o mínimo pendor para isso), em setas e retas, curvas e círculos imperfeitos. Desligara o telefone, não ligara mais a televisão nem o rádio, parecia um eremita num apartamento de um edifício. Duas semanas neste jejum. No final da segunda semana toca o interfone: “Sr. Oliveira, está na portaria o Sr. Osíris, posso deixar subir ?” Alguns segundos de hesitação e silêncio seguidos por um “Sim, pode deixar”. Osíris fica surpreso e muito impressionado com o aspecto do colega antes tão polido e civilizado. Cabelo grande, despenteado, sujo, barba enorme, roupa imunda e um olhar assustador.

 - Osíris, que bom que veio! Tenho tantas coisas para perguntar. Quando poderei ver a sacerdotisa de novo? Quando teremos outra cerimônia? Que tem naquela bebida? Veja, veja.. meus escritos, minhas lembranças, veja. Eu estou criando um método para descrever o mundo que eu vi. Leia, talvez eu precise explicar melhor, ainda está tosco, mas eu estou aprimorando. Como poderia chamar? É difícil colocar em palavras. E as cores, as cores ! Havia rostos estranhos também, havia muita coisa. Havia uma paz enorme e eu não queria sair de lá. E o olhar que me acompanha. Sabe, uma vez quando era criança eu vi uma velha na praia e ela me olhou de um jeito muito estranho que eu nunca esqueci. E sonhei muitas vezes com a cena. Agora eu sei que era um ritual de magia. Agora eu entendo, eu entendo muita coisa. O meu medo vem daí, agora eu sei. Eu sei, eu sei!.... Osíris procura acalmar Oliveira. Uma torrente de palavras, uma descarga verbal, uma avalanche é o que sai de sua boca, da boca daquele ser eufórico e transtornado. Osíris sabe que tem sua quota de responsabilidade nesta situação. Teria avaliado assim tão mal o colega? Não poderia saber, é óbvio, o quão sensível ele era. Apenas dois copos, dois copos. Ou talvez ele fosse uma represa cheia até o topo, com rachaduras invisíveis. Qualquer peteleco produziria o mesmo efeito. Mas, enfim, eis aí o seu discípulo. Uma pedra bruta.

- Oliveira, me escute por um momento. Eu vim ver o seu progresso. Mas tenha calma. Estas coisas levam tempo, não queira acelerar demais sem freios fortes o bastante para parar no tempo certo. Não desperte o dragão antes de se fortalecer, lembre-se do que eu disse. Vejo o seu esforço para tornar a “loucura” num método. Tudo isto é novo para você, não? Também foi novidade para mim um dia. -

Sim , tudo é novo para mim, é como se eu tivesse nascido agora. Me sinto desperto. Como posso fazer parte disso? 

-Estudando, praticando, cumprindo tarefas, fazendo o bem acima de tudo

-Sem dúvida. E a sacerdotisa, quando poderei vê-la de novo?

-Não confunda as coisas

-Confundir o quê?

-Ela é uma bela mulher, mas não vá por este caminho

-Há algo mais do que beleza nela

 -Ah, com certeza há, e muito. Ouça, você já foi duas vezes. Porém, a terceira vez é o ponto de ruptura, é a prova final. Só então saberemos se você conseguirá sobreviver. 

-Sobreviver? Agora você me assustou.-

Sim, sobreviver. Fato.

– Só que... eu sinto que não há mais volta. Estou certo em pensar assim ?

 – Perfeitamente. É a quinta porta. Você sente que precisa abrir e passar da quinta porta, não ?

– Sinto.

– Falta pouco agora. Mas antes, vá cuidar da aparência. E estalou os dedos na frente dos olhos de Oliveira.

    Um pequeno susto que serviu como um despertador. O outro se virou e se viu em frente a um espelho na sala. Tomou um choque com o que viu. Se saísse assim na rua é possível que ganhasse uns trocados de piedade. Osíris saiu em seguida e Oliveira entrou no banheiro para um barbear urgente e uma ducha morna. Mais tarde colocou a casa em ordem, as roupas, as contas, se alimentou direito, ligou para o trabalho para se inteirar de sua situação. E se sentiu satisfeito e mais forte. É possível uma pessoa mudar assim tão radicalmente? Eu tenho minhas dúvidas pois a maturidade de certa forma pode enrijecer certas posturas, pode endurecer os membros e deixar uma pessoa inflexível. No lugar de um bambu um poste, e em certos momentos os fios deste poste caem e ficam desligados. A maturidade pode também ser uma desculpa para deixar crescer de vez a erva daninha que sempre teimou em dominar, mas que era podada de tempos em tempos para manter uma imagem mais moderna e arrojada, ainda que falsa. Aquele jardim aparente no fundo era um pântano envenenado, com água pútrida e restos em decomposição. O mal cheiro era ocultado com muito perfume caro. Até que a pintura descasque e as rachaduras aumentem de espessura, e então a construção desaba e o rosto verdadeiro aparece. Só que Oliveira está se descobrindo aos poucos. Terá usado, quem sabe, por todo este tempo uma armadura polida, lustrada com esmero para dar brilho, mas sem óleo suficiente entre as juntas para mover os braços, pernas e cabeça, principalmente a cabeça, com naturalidade. São tantas as obrigações, convenções, mandamentos, regras, regulamentos, comportamentos admitidos, horários, padrões, medidas certas, cores combinantes, frases feitas e lugares comuns, que pouco do tempo sobra para se olhar no espelho interior, e se perguntar se “era assim mesmo que você queria?”. Seria justo dar mais tempo para ele, pobre coitado, quase vítima de uma mudança tão brusca que poucos, muito poucos saberiam lidar e sair desta armadilha de forma positiva. É normal ele ficar tão confuso e eufórico ao mesmo tempo. Tudo é novo para ele, em tão pouco tempo. Sua mente cresceu e não cabe mais em sua cabeça. Por certo este é o melhor diagnóstico neste momento. Nunca deixará de ser somente especulação se o que ocorre é um efeito colateral do princípio ativo da erva sagrada, ou se a ação deste princípio ativo atingiu um ponto específico do cérebro que permitiu deflagrar a mudança acelerada neste adulto até então inflexível. Não há registros de problemas mentais no histórico familiar, mas quem pode saber se havia uma bomba relógio embutida em sua mente, pronta para explodir e derrubar a construção, sólida até hoje, e assim poder revelar sua verdadeira face? Este processo ele está atravessando sozinho. Não é fácil.

    Nesta noite ele demorou a dormir, mais do que o normal de agora, cujo padrão é pregar os olhos de exaustão quase na alvorada. A madrugada é um campo fértil para a reflexão e a concentração, para elaborar questões e tentar respondê-las. O silêncio envolvido pelo escuro da noite torna mais clara e audível a voz interior. Tudo isto é novo para ele, que simplesmente via TV até o sono vencer a queda de braço e acordar no próximo dia para cumprir a rotina confortável. Neste formato novo o silêncio é como um banho quente no inverno. O silêncio as vezes parece ser a ante sala da quinta porta. O silêncio, ainda que um ente incorpóreo, agora estende seus braços para recebê-lo. E ele se entrega contente, aprendendo dia a dia o valor desta acolhida. As duas semanas seguintes transcorreram em certa calma. Ainda de licença Oliveira aproveitava bem o tempo livre no processo de descoberta. Ele retornou à livraria e, pasmem, procurou livros sobre o que estava vivenciando, pois queria aprender, queria ver tudo, queria conversar sobre isto, queria entender e tinha pressa. Osíris, um dia, encontrou o agora curioso colega dentro da livraria Árvore do saber. Chegou de mansinho e ficou observando Oliveira, que folheava um livro sobre sociedades secretas. Achou por bem não interromper, mas lembrou-se que precisava avisá-lo da próxima reunião. Enquanto se debatia entre o anúncio e a curiosidade. Oliveira levantou os olhos e se virou.

-Osíris, que surpresa!

– Oh, olá Oliveira. Que bom que te encontrei. Eu precisava mesmo falar com você.

– Pois então fale.

– Sábado teremos outra cerimônia.

– Finalmente.

– Ansioso ?.

– Muito.

– Preparado ?

– Sim (sem titubear)

– Gostei da firmeza

– É o teste final, não é mesmo?

 – Sim.

– Não tenho medo.

– Será difícil.

– Eu espero que seja

– Se você falhar eu terei falhado.

– Não tenho medo, eu vi agora que o caminho é meu, só meu.

– É um bom começo, mas, você tem certeza?

– Absoluta.

– O absoluto está muito além de nossas capacidades.

– Mas a vontade está clara e forte em minha mente

– Que assim seja então.

         Sexta-feira, noite em claro em preparação. Quem o ensinou? Ele próprio. Não se deve mais duvidar de sua capacidade. O tempo é curto para caber nesta história? O tempo é um mistério profundo e insolúvel, medido em relógios de velocidades diferentes. O sábado surgiu nublado, mortiço, embaçado. A comida desceu quase sem gosto, foi só para manter o corpo nutrido. As ruas ao redor do prédio não tinham mais atrativos. As pessoas passavam como fantasmas. Todavia, dentro dele o Sol brilhava. As nuvens densas agora eram familiares e aconchegantes, carruagens acolchoadas que percorriam os caminhos celestes. Por vezes pairavam acima de sua cabeça, como se estivessem acompanhando seu raciocínio. A tarde o observou com uma ansiedade além do comum, com o espírito elevado e a vontade mais firme que as fundações um arranha-céu. Os minutos demoravam-se entre os ponteiros e os dígitos do relógio na cozinha. Um lanche frugal e um breve sono, sentado na cadeira e a cabeça sobre a mesa. Uma sirene ao longe o despertou num susto. É hora de partir. 

                                                                      A TERCEIRA VEZ

As nuvens se espalharam um pouco pela vastidão do céu. No horizonte surge uma Lua amarela, enorme, distorcida pelos efeitos óticos da posição em relação à Terra. O ar está fresco, e os incensos parecem estar mais perfumados do que das outras vezes. O grande gongo já está envolto em chamas, os archotes distribuídos ao longo das alamedas fazem companhia com a fogueira. Estandartes com símbolos estranhos compõe a cena deste espetáculo, que procura ser discreto mas é grandioso ao mesmo tempo. Os grandes tachos já fervem, exalando o aroma característico do chá de Mayaszolote. Pouco a pouco os participantes vão chegando, alguns muito sorridentes, outros mais tensos, talvez por ser a primeira vez, ou por ser a terceira e definitiva. O que prevalece no entanto é a paz e a serenidade. Isso ninguém tira. Oliveira já conhece o ritual. Até se gaba para si próprio que já não é mais um iniciante, olhando com uma certa superioridade para aqueles rostos que não reconhece e que sabe que estão pela primeira vez no recinto. Ele está tranquilo e confiante. Cumprimenta algumas pessoas, anda um pouco pelas alamedas, passa pelo galpão onde estão os tachos fumegantes, só para sentir o aroma que preenche o ar. Sua pulsação acelera lentamente, gradualmente. Ouve o primeiro toque do gongo e já se dirige para o assento reservado. O céu agora está mais claro. Não sente fome nem sede mas a expectativa. Precisa ver o rosto da sacerdotisa. É o seu Graal. “Será que algum dia ela sorrirá para mim com interesse ?” O lado romântico que habita o coração de muitos garotos que sonham com namoradas inalcançáveis toma de assalto aquele homem já crescido e vivido. “Ora, que besteira! Estou sonhando demais e muito alto. Eu não vim aqui para isso. Hoje é o dia da prova final. É claro que ela nunca irá reparar em mim”.

       Esta seca constatação o deixa em dúvidas quanto à certeza de sua vontade de superar a prova. “Eu não posso mais voltar. Eu só posso ir em frente agora”. Esta nova constatação quase o deixa travado e plantado no chão. E o gongo soou por duas vezes mais. A fila já se formava. A montanha russa foi posta em movimento. O desânimo, tal qual peçonha poderosa, se infiltrou e gelou seu sangue e o ar ao redor das narinas. As pernas fraquejavam e ele parou de repente hesitando em pegar a fila da bebida, momento crucial da cerimônia. Estes instantes de dúvida e ruptura teimam em acontecer, as vezes com muita frequência nas vidas ao redor deste mundo. Oliveira estava começando a ficar como se à deriva, num barco furado, com a água entrando em grande volume e pressão. Nestes momentos parece que a vista fica turva e as cores desaparecem, os tons se desfazem e fica tudo circulando ao redor de um cinza insuportável. Será isto um presente ou uma praga? Depende do ponto de vista: se é uma praga, largue tudo e desista. Se como presente se apresenta, então depure o veneno, dilua, cuspa fora o bagaço e o veneno o tornará mais forte. Aprumar-se no meio do açoite é a prova definitiva da superação. Quantos conseguem isto? Qual caminho tomou Oliveira, o da praga ou do presente? Vejamos: "Eu só posso ir em frente agora”. Esta sentença determina o caminho. Logo ele se dirige para o fim da fila. E se apruma. Osíris o observa de longe.Eis o copo na mão. Diferente das outras vezes, e apesar de toda a expectativa, não há aquela sofreguidão, aquela pressa de beber. Ele vira o copo com parcimônia, saboreando a bebida. Dirige-se para o seu lugar. E novamente espera a porta abrir. A quarta porta se abre lentamente, gentilmente, como se soubesse que momentos antes o hóspede se debatia em conflito. Há uma brancura absoluta, mas logo, e mesmo de olhos fechados, ele distingue muitos tons de branco, tons de muitas frequências, múltiplos e submúltíplos de uma frequência muito leve e inicial. Um branco primordial. As frequências se sobrepõe, e à medida que se desdobram os tons de branco vão encorpando, ficando mais densos, quase sólidos. Há um plano inclinado que parece infinito, e ele dá passos firmes, embora não toque o solo. Cada passo o leva longe. O efeito do veneno depurado logo surge e a confiança aumenta. Os tons de branco ao longo deste plano inclinado vão se tornando dourados, ou algo parecido. Cada passo agora é um grande avanço. Os tons dourados vão ficando mais vivos e brilhantes, cada brilho é um sorriso, cada sorriso é um som novo e harmônico, cada som vai se somando ao anterior para formar uma grande composição, algo que Oliveira jamais ouviu antes, pois não tinha interesse. Mesmo não tendo ouvido antes ele segue contente, ainda que esteja longe ele sabe que tomou o caminho certo. Novamente não há chão ou céu, nem acima ou abaixo, nem fora. Ele já se acostumou e aceitou de boa vontade esta mudança de perspectiva, este ponto de vista diferente. A consciência se expandiu e assimilou com naturalidade. De repente uma vibração fora dos múltiplos de frequências atrai sua atenção. Num ponto oposto ao plano o branco absoluto vai mudando para um cinza leve, que logo aumenta para um cinza mais pesado, até que numa velocidade de mudança preocupante vira um cinza insuportável. O estado de paz fica comprometido. Suas passadas aumentam mas não há sinal perceptível de porta ou saída. “Não há volta, devo seguir em frente”, a sentença imperiosa volta com mais força e aumenta subitamente o ímpeto para o avanço. Suas passadas aumentam e o plano muda a inclinação . Não há gravidade mas a inclinação aumenta o impulso, e com isso aumenta o avanço. O cinza opressivo avança junto, é uma disputa acirrada. As poucos ele aprende sobre esta dimensão extravagante onde de boa vontade adentrou. Não pode olhar para trás, pois o que passou não tem mais volta, são portas que se fecham e se apagam. Ele descobre vasculhando no seu íntimo que uma porta nova está sempre se formando à sua frente. Os olhos antes fechados, agora se tornaram dois faróis potentes e lançam luzes fortes, luzes guia neste corredor. O cinza está bem ao lado, mas não o amedronta mais. O cinza estará sempre ao seu lado, mas basta não dar atenção que o cinza escurece, vira preto, e o preto é a ausência da luz, portanto tende a desaparecer. Tendo aprendido esta nova lição, o avanço é mais veloz. Os tons dourados retornam e se subdividem, dobrando a cada instante. Agora é um mergulho com gotas douradas que giram formando espirais. Cada espiral ao fim do ciclo retorna para a posição inicial e reinicia o processo. Neste desenrolar o caminho fica mais claro e mais espesso, embora não haja paredes ou teto. É somente uma impressão. e de repente, adiante, a pedra em forma humana reaparece. Há uma surpresa com a súbita lembrança, porém logo percebe que a pedra está diferente. Parece mais polida, mais brilhante, com um formato mais definido. Só que as gotas continuam saindo e vindo em sua direção. Ele aprendeu que deve desviar destas gotas. As outras gotas, as gotas douradas das espirais se reúnem ao redor de seu corpo (ou sua mente, ele não tem certeza), formando uma vestimenta, mais parecida com uma couraça. As primeiras gotas da pedra-homem se chocam contra a couraça dourada. Com o impacto, apesar do suposto sentido contrário, a armadura-couraça dourada ganha mais e mais velocidade. Além das gotas que escaparam da pedra-homem, a própria pedra-homem começa a se deslocar em seu encalço. Ela não só está mais polida, como também mais flexível e fluída, e se contorce e cria membros que se projetam para agarrar sua suposta presa. As gotas douradas se desdobram em velocidade maior, criando um campo de defesa. Além das gotas da pedra, elas agora tem de combater a própria pedra. Sua estratégia é formar uma teia dourada, de fios tão unidos que o brilho intenso ofusca a pedra e as outras gotas. A pedra-homem se agiganta e tenta romper a teia dourada, se contorcendo cada vez mais. Porém a teia cria resistência a partir do atrito, e daí retarda o avanço da pedra-homem. É uma disputa titânica, uma batalha que se desenrola neste ambiente excêntrico, em algum ponto anterior à chegada da quinta porta. As gotas douradas, que se multiplicam à medida que são pressionadas, criam um clarão ígneo, englobando a pedra-homem,   suas gotas emulsionadas e o cinza insuportável que se uniu à pedra num último esforço de capturar o viajante indefeso desta planície perpétua. Num último esforço o viajante indefeso para por um instante, se volta e contempla a batalha que deu causa. Já não ostenta a couraça-dourada. O clarão de fogo aumenta, se apodera de toda a planície perpétua e cria um redemoinho incontrolável, que começa a destruir o caminho que ficou para trás. O viajante vira-se de novo, vê mais à frente a quinta porta e flutua até ela. Na soleira desta nova porta uma voz o interroga: “-Diga a senha”. Qual senha? Ele hesita por um momento. “-Diga a senha”. Ele fica apreensivo. “-Diga a senha ou permaneça para sempre onde está”. A porta começa a desaparecer. “- O dragão acordou”, ele fala finalmente. “-Adeus”. Pela terceira vez ele abre lentamente seus olhos, e olha o rosto familiar de Osíris, que o recebe de volta com um sorriso cúmplice. Atrás de si o ainda não muito familiar rosto de João Hermes. E na outra ponta do triângulo o rosto severo mas sereno de Ísis, a Grã-Sacerdotisa. Mais recuados, um pouco na penumbra, as dezenas de rostos dos demais membros da ordem, prontos a receber de braços abertos o novo companheiro.. Caso este queira, é claro! “

"- Seja bem vindo de volta. Você passou na prova”, e estas frases vieram abraçadas à voz firme e doce de Ísis. Neste momento, já com os olhos abertos e acostumados à penumbra ele percebe no olhar daquela mulher a sua superação. Havia dois quadros simultâneos dentro de um mesmo olhar: aquele olhar vazio do transe, não mais do que uma outra porta para dimensões estranhas e difíceis, com novos enigmas e a incerteza sempre um passo adiante, e que neste momento trazia um cansaço maior do que o desejo. O outro quadro, o oposto do transe, era a certeza de que ele estivera enganado em sua intenção quando chegou na primeira reunião, e viu pela primeira vez o rosto de Ísis, tão atraente e encantador. No fundo ela fora apenas uma isca. E estava fisgado, de fato. Entrara num caminho sem volta. Todavia, não ficou incomodado pois percebeu que o dragão estava desperto. Agora entendera o sentido da frase e ficou grato à Osíris, acima de tudo. O polimento da pedra deveria continuar. Por quanto tempo? Não importa. Ísis importa agora? Não mais. Ela não era o caminho, seu rosto e voz eram as placas que indicavam o início do caminho. Osíris havia lhe dado o mapa e cabia a ele continuar o caminho. Que não tinha mais volta. O mesmo Osíris esperou os outros membros da tríade se afastarem para conversar a sós com Oliveira. Ele observou atentamente seu discípulo, pois isto é o que Oliveira era neste contexto. Um exame final, nesta terceira rodada de aprendizado intenso, deu-lhe a certeza do estado seguro em que seu colega de trabalho estava. Desde o último encontro que Osíris carregava uma ponta de incerteza quanto ao estado mental do ansioso e guloso iniciante, antes tão cético e refratário e agora mergulhado de forma intensa no caminho difícil do auto-conhecimento. Oliveira estava bastante mudado. Neste espaço de tempo entre a conversa na livraria e o presente, algo se transformara dentro dele, e o olhar era o testemunho mais evidente desta mudança. Aquele olhar morno, comum aos muitos que se penduram nas alças da vida e são arrastados no turbilhão das coisas mundanas, ganhara em intensidade e argúcia, como se tivesse lutado e derrotado o olhar que o perseguira por toda a vida, e agora portava este mesmo olhar como troféu ou despojo de guerra. O brilho deste olhar agora poderia ofuscar e intimidar aos fracos de pensamento e vontade. Usá-lo ou não como arma cabia ao seu renovado arbítrio. Arma de quê? Arma ou ferramenta? O objeto não é o sujeito, o objeto é a extensão do sujeito. Mas isto tudo ainda estava a ser descoberto por ele.

-E então Oliveira, o que você tem para me dizer?

-Que eu vi o quanto me falta, mas também vi que não há mais volta.

-Você despertou o dragão enfim.

-Sim, agora quero montar nele e domá-lo.

-Ele não se deixa domar facilmente.

-Eu percebi. Mas não tenho mais medo. Sinto que ele gosta de mim.

-Ele gosta dos que se dispõe a conquistá-lo.

-Ele é velho e sua pele é macia.

-Você embarcará conosco?

-Se for necessário, sim. Eu gostei daqui, afinal.

-Você é bem-vindo.

-Nunca me senti tão bem antes.

-Eu lhe avisei.

-Agora é a hora de ir.

-Acho que é a hora certa para ficar.

-Que seja então.

        A Lua ia alta no céu, tão longe mas não tão longe que não pudesse servir de testemunha deste diálogo hermético, quase cifrado. No mais, o que foi dito foram somente as palavras de despedida normais de uma convivência civilizada. Depois foi cada um para o seu carro, cada um para sua casa, pensar nos afazeres triviais que podem ou não fazer a alegria de muita gente. O passo estava dado e a tarefa cumprida. Um domingo diferente de todos os outros domingos de toda a sua vida. Um dia em que acordou e olhou bem dentro de seus olhos com o ânimo renovado. O dia em que começou a remover a casca grossa que o mantivera preso por tanto tempo, tantos anos quantos todos os de sua vida até este momento. Uma pele nova para substituir aquela pele velha, rompida como as cobras rompem porque crescem. O dia um do ano um do resto de seu tempo nesta estação escondida na borda da galáxia, pequeno ponto azul ofuscado por uma estrela de quinta grandeza. Sorriu com todo seu corpo e experimentou uma nova liberdade. Desceu as escadas de seu prédio, chegou na calçada e saiu andando sem direção certa ou destino, apenas pelo prazer de olhar para tudo..