CONTO: Bisavô e bisneto

Sentado em sua antiga cadeira de balanço, o idoso se põe a lembrar das coisas marcantes de sua vida, começando pelas mais simples. Tudo embalado pela saudade de sua fiel companheira, que o deixara já faz alguns anos. Diante dele, seu neto entretido com seu game de mão sentado ao sofá. Admirando a inocente figura da criança de apenas nove anos, o avô tenta puxar conversa, mesmo concorrendo a atenção do garoto com o brinquedinho.

― Ah, que saudade das coisas do passado, sem essa modernidade sufocante de hoje que muda a todo tempo antes da gente sequer aprender o que é...

― O senhor tá falando de quê vô?

― Estou falando de tudo. Eu pego este controle remoto da TV, por exemplo, e não entendo nada. Antes era só o botão de ligar e desligar, os de volume e os de canais. Agora tem tanta parafernália que eu não entendo nada!

― Mas esse aí é o controle da TV a cabo, vô...

― Hein? É? Ah! Essa é outra bugiganga que eu não entendo!

― O que é bugiganga, vô?

― É o que tem no controle e na TV a cabo. É tanto programa inútil que eu não sei pra quê! Pra quê cinco programas de vestido de noiva? Nem tem tanta gente casando assim! Tem mais gente se divorciando, isso sim. Artista então... Casa hoje e amanhã separa. Até parece que casar é um baile de debutantes: quando termina a festa, ficam só as chapas de lembrança.

― O que é debutante, vô – pergunta o menino sem tirar os olhos do game de mão.

― Ora, é o que chamam de Festa de 15 anos hoje. Acabou a festa e já estão esperando a do ano que vem.

― E o que é chapa?

― É o retrato da pessoa, ora. Antigamente era tiradas com uma máquina grande e pesada que chegava a esconder o retratista. A pessoa caprichava na pose e esperava o retratista apertar o botão pra captar a imagem. Isso me lembra sua avó, que cuidava dos álbuns de casa.

― Que são álbuns, vô?

― São coisas onde guardamos as fotos, meu neto.

― Ah, são HDs?

― Sua avó cuidava muito bem das fotos de casa.

― Então ela era designer gráfica?

― Bem, ela sabia colocar uns enfeites nas fotos e caprichava no acabamento do álbum só usando tesoura e cola.

― Ah, ela era fera em photoshop?

― Ela também usava papel colorido no fundo para dar mais vida às fotos.

― Ah, sim. Ela baixava papéis de parede da web.

― Ela guardava tudo em caixas para não se perder e, depois, podíamos vê-las novamente a qualquer momento.

― Quer dizer que ela fazia backup de tudo?

― Sua avó era boa também na beira do fogão. Cozinhava como ninguém. Ela arranjava receitas de todos os lugares.

― Então ela fazia download dos sites?

― Ela fazia maravilhas com o forno. Cada peixe assado...

― Já existia esse botão no micro-ondas?

― Uma vez ela mandou uma carta para um programa de culinária e foi sorteada! Ela ganhou um fogão elétrico novo!

― Ela foi sorteada pelo e-mail? Que legal!

― Ela ficou tão feliz que me mandou comprar ovos e farinha para fazer um bolo de estreia do fogão.

― Puxa, que pena que naquela época não tinha docerias pra comprar bolo, né vô?

― Sabe filho, nós tínhamos o costume de escrever cartas quando eu tinha que viajar a trabalho e passar dias fora de casa.

― Vocês não gostavam de usar Skype, vô?

― Sua caligrafia era linda e caprichada...

― Quer dizer que ela usava fonte Monotype Corsiva?

― Uma vez, ela me disse que já estava cansada de me esperar e que queria me ver.

― Aí vocês ligaram o Skype?

― Ela disse que pagaria um bilhete no porto e chegaria em dois dias.

― Aí na volta dessa viagem ela ligaria o Skype?

― Eu a esperei no porto, mas ela não estava no navio.

― O GPS dela não funcionou?

― Ela desistira de viajar na última hora.

― Pra não perder o capítulo da novela ou do reality do dia?

― Ela disse que havia perdido a cabeça e que precisaria confiar mais em mim.

― Esse game é em dupla?

― Em compensação, eu fui liberado no dia seguinte e voltei para casa.

― O senhor ganhou bônus ou reiniciaram o jogo?

― Sim, pode-se dizer que ali reiniciamos nossa relação. Com mais amor e confiança!

― E deu tempo de ver o reality, vô?

― Sabe, meu netinho, são muitas recordações de sua avó. Afinal, foram sessenta e cinco anos de casamento!

― O senhor calculou no Excel ou na calculadora mesmo?

― E me sinto cada vez mais sozinho neste mundo estranho de modernidade e progresso eletrônico e que não tem a ver com a maior parte de minha vida.

― O senhor já tentou chamar o técnico em manutenção pra ver o que não tá funcionando, vô?

― Parece que as coisas de antigamente eram mais simples, mais fáceis de entender e encarar.

― Xiii! Então o senhor não tá sabendo avançar as fases, é?

― Televisão, por exemplo, tinha tanto programa bom! Tanto artista bom, meu Deus!

― Eram youtubers ou Snapchaters, vô?

― Os cantores eram cantores, sim senhor! Cada vozeirão! O Francisco Alves, o Althemar Dutra, a Dalva de Oliveira...

― E eles cantavam pancadão ou forronejo universitário, vô?

― Suas vozes marcaram minha juventude... Eu era uma ave que voava sob as ondas do rádio...

― O senhor era mutante também, vô? Conheceu o Wolverine?

― Mas depois veio a onda do iê iê iê e foi aí que conheci sua bisavó. Roberto Carlos nos transportava pra outra dimensão! A gente arrasava nos bailes: dançava a noite toda.

― E tinha desafio de coreografia nesse street dance, vô?

― Já nos anos 70 a coisa ganhou mais volume; vários tipos de música começaram a fazer sucesso nas paradas: Raul, Tim, Fernando, Cassiano, Beto, Djavan e Rita. Tinha também Belchior, Benito e Lô. Sullivan, Massadas, Fágner e Elis.

― Puxa, vô! Até os reservas desse time eram bons assim?  

― É, meu netinho... Nos anos 80, quando parecia que isso esfriar, aí é que melhorou. Quanta gente boa! As bandas, então? Que legal ouvir aquela meninada soltando o verbo!

― O senhor tá se lembrando dos seus colegas na aula de português, vô?

― E as músicas internacionais, então? Beatles, ABBA, Be Gees, Leonel Richie, Demis Roussus, Elton John, Queen. Daria pra passar o dia falando seus nomes.

― O senhor também gostava da aula de inglês, né? Lembra até do nome de seus professores.

― E esses canais de jogos? É tanto campeonato estrangeiro que perdeu a graça de ver. Antigamente a gente via o campeonato italiano e se entusiasmava de ver nossos craques por lá e outros estrangeiros que a gente conhecera nas Copas anteriores como o Boniek, o Platini, o Rummenigge e o Maradona. Hoje tem tudo que é jogo, até campeonato Chinês. Argh!

― Quem era Platini, vô?

― Ah, era um grande jogador francês, jogava muito. Mas agora se corrompeu com a cartolagem e manchou sua história de glórias no futebol.

― E por que ele não volta a jogar?

― Impossível! Está velho demais.

― Nem fazendo upgrade?

― Não se fazem mais jogadores como antigamente. Cada time tinha o seu craque. Mas agora, só tem perna-de-pau.

― O que é perna-de-pau, vô?

― É jogador ruim, meu neto! Não joga nada!

― Ah, eu já vi uns assim.

― É mesmo? Onde?

― No Playstation pirata de um colega meu. O jogador não fazia quase nada do meu comando. O joystick dele também não prestava.

― E como não se lembrar das brincadeiras de infância? A gente se divertia tanto!

― Puxa, vô. O senhor ainda se lembra de quando era criança? Que memória, hein?

― É claro que lembro! Foram os melhores anos de minha vida!

― Mesmo tomando injeção, remédio ruim e indo todo domingo pra missa?

― É claro! A gente brincava demais. Uma das minhas brincadeiras preferidas era subir em árvores.

― Nossa! E o senhor usava cordas ou ganchos pra subir?

― Não, eu usava só as mãos mesmo. Era um mestre na subida em árvores.

― Pra que servia? Pra fazer imitação de macaco?

― Como “pra que servia”? Subir em árvore era supimpa! Dava trabalho às vezes, mas valia a pena.

― O senhor nunca caiu da árvore?

― Qual nada! Era mestre no assunto! Tirava de letra!

― Ah, quer dizer que a árvore era na escola?

― Nem pensar! Subir na árvore da escola era suspensão na hora!

― Mas fora da escola não tinha que suspender pra subir também? O senhor me confunde todo.

― Eu gostava mesmo era das árvores do sítio da vovó. Lá havia árvore de todo tamanho e eu começava pelas mais fáceis pra depois partir para as mais difíceis de escalar.

― Legal! O senhor mudava de fases, né?

― Mas lá a diversão também era ver os animais da vovó: coelho, cabra, pato, marreco, galinhas d’angola, etc.

― Ela tinha o Animal Planet ou o Discovery Wild em casa, vô?

― Mas a gente cresceu, mudou-se para a cidade grande, e agora estamos cercados por essas montanhas de vidro e concreto da modernidade...

Depois de longa pausa na conversa para aguçar sua vista ao longe da janela, o avô continua sua introspecção:

― Sabe, meu neto. Antigamente as coisas funcionavam bem. A máquina de escrever, por exemplo, era um pouco barulhenta, mas não dava tanto defeito como os computadores de hoje.

― O que era máquina de escrever, vô? Perguntou já na vigésima fase do game.

― Bem, eu acho que era algo como o computador de hoje, só que com mais vantagens.

― Qual vantagem vô?

― Bem, primeiramente, as manuais não precisavam de energia elétrica.

― É mesmo? Tinham bateria?

― Não, não tinham. Não precisavam de nada mais que nossa energia das mãos.

― Eram  touchscreen ou com holograma?

― Bem, tinha que ter tinta na fita sim, mas isso já vinha de fábrica.

― E era jato de tinta ou impressão a laser?

― Bem, tínhamos que fazer bastante pressão nos dedos sim, senão a letra saía fraca, mas deixe-me ajeitar meu aparelho auditivo que parece que não estou te escutando bem. Ah, bom, agora sim!