Toda cidade possui alguma coisa de curioso ou de especial; possui uma cachoeira, uma árvore frondosa antiga, uma igreja com detalhes do barroco ou do rococó; outras vezes, cumulativamente ou não, com características de uma ou mais pessoas.

Toda cidade, interiorana, possui e muitas das vezes sem ser observado, uma figura humana típica e apropriada para uma história.

Em uma cidadezinha no Norte do Estado do Paraná um Observador via e se encantava com a rotina matematicamente precisa das pessoas e em especial de uma moça. O observador a concebeu como ‘A Moça das Quatro’, e não sem razão.

A cidade fundada no ano 1.951/52, agora por volta de 1.964, já, a exemplo do que corriqueiramente sempre sucedeu no País, era uma cidade um tanto estamentizada em que se dividia a sociedade local entre comerciantes, proprietários de terras e o resto que não era nem uma coisa e nem outra.

As pessoas cumpriam, como se fosse um ritual, sua função vista como maior que era viver, enquanto os pulmões inflassem por ordem do relógio do peito que insistia em bater, não obstante a teimosia, se razão para viver fosse alimento mínimo do ser racional.

Dentre os homens destacava-se em grupos; os pertenciam aos marianos, os que praticavam o futebol, os que eram peões-boiadeiros, os de camisa ‘tremendão’, por influência da Jovem Guarda, e, por fim, os marginais destes grupos.

Dentre as mulheres, destacavam-se as filhas-de-maria, as bem trajadas, as mal-entrajadas, as que davam, as que não davam, as que engravidavam, as que fumavam, as que bebiam e dançavam, as que eram ‘fáceis’, as que eram ‘difíceis’. Sempre havia aquelas que se exibiam, mas que não davam ou eram ‘difíceis.’

Infelizmente, naqueles tempos, não havia asfalto, nem televisão, nem telefone, naquela cidade; mas, em contrapartida , não ocorria suicídio, não havia drogas, não se pagava por trepadas, exceto na zona da cidade, que por volta de 1.967 fora extinta graças à autoridade do padre e de alguns mais influentes da comunidade, que não concordavam com a coexistência pacífica das messalinas.

O Observador, sendo um pirralho, tomava conhecimento de tudo o quanto se passava na cidade, vez que como cachorro em festa alheia, sempre ficava à beira das rodas dos jovens e dos adultos também e que, como quem não queria nada, ouvia os segredos e as vantagens que contavam aqueles portadores de troféus. O Observador também via algum fato que somente ele via, pois, na rotina é só um observador arguto que vê.

Durante a semana e todos os dias, as pessoas cumpriam maquinalmente com seus afazeres, ao menos aquelas que possuíam com o que se ocuparem; outras, para o preenchimento do tempo já haviam estabelecido uma ocupação, ainda que não de trabalho, consistente de se avistarem com alguém ou de serem avistados por alguém, sendo qualquer destas hipóteses algo em que se consubstanciavam suas vidas. O sargento, do radioamador, um dos militares técnicos em comunicações que se espalharam como ‘arapongas’ por todas as cidades do interior do País, após o Golpe de Estado verificado em março/abril de 1.964, que ninguém sabia o que fazia e nem para que existia, bebia feito um gambá; às onze horas falava em seu rádio com o quartel central e após, ia para os bares da praça e bebia; o coletor de impostos fechava o escritório às onze horas e trinta minutos para reabrí-lo duas horas mais tarde e neste intervalo bebia a ponto de quase se esquecer do almoço; o oficial do cartório civil, também acompanhava o coletor; os escriturários da prefeitura, também acompanhavam o oficial do cartório civil. Os jogadores de futebol, às vezes, compunham um grupo à parte; os demais desocupados, bebiam noutro canto do balcão. Os dos sítios ou da roça, deixavam seus cavalos amarrados à porta dos armazéns e em seu interior bebiam nos cantos de balcões e conversavam picando fumo com a palha entre os dentes.

As professoras, ritualmente, cruzavam a praça em direção à escola, inclusive, A Moça das Quatro, às onze horas na ida e às catorze horas no retorno.

Em sua casa, após o retorno da escola, a moça banhava-se e almoçava; corrigia as lições dos alunos, preparava matéria para o dia seguinte, passava a saia e a blusa, consertava as unhas, escovava os dentes, limpava os sapatos, ajeitava os cabelos, vestia-se e às quatro horas em ponto cruzava a praça em direção à casa dos Bertipaglias.

A Moça das Quatro, se não era a mais bela da cidade, no mínimo, era uma das mais admiradas por suas pernas bem torneadas e compridas; por sua estatura de um metro e oitenta centímetros, aproximadamente; por seus cabelos longos e cor-de-caju; por sua dentição próxima do perfeito; e também por sua certa simpatia, embora, no geral, fosse sisuda com muitos de seus admiradores. Todos os homens desejavam comê-la, mas ao tempo da observação ninguém a comeu. Era a fruta do desejo, a mentalização dos masturbadores. Bolinha, um quase playboy surgido como pára-quedista na cidade a namorou por pouco tempo e por ela se apaixonou e por ela bebia, ou pelo menos assim justificava as suas bebedeiras. Alguns outros forasteiros a namoraram, mas sempre com a cautela imposta pela moça. Havia muitos homens casados e rapazes que a julgavam esnobe, só porque ela não lhes dava trela.

O Observador, havendo se mudado da cidadezinha, perdeu o contato com a Moça das Quatro, vindo a reencontrá-la em 1.981, na Cidade de Colorado, em casa de dna. Maria Japonesa, velha conhecida dos tempos da infância do Observador, em Nossa Senhora das Graças. Dna. Maria Japonesa estava mais velha e tanto ou mais graciosa e alegre como sempre fora. O Observador notou quando repentinamente, em meio às conversas nostálgicas de idos tempos, irrompeu A Moça das Quatro. Neste momento o Observador compreendeu que a vida havia roubado àquela Moça o seu ritualístico horário, a cidadezinha, a escola, a saia, a blusa, a beleza das pernas, o corpo ereto, o cabelo cor-de-caju, sua dentição quase perfeita e, por fim, sua virgindade. A Moça das Quatro, agora, era uma senhora que após muitos anos exercendo o papel de viver, havia finalmente sido desflorada, não por um belo jovem de seu tempo das quatro horas, mas por alguém que nunca a observou às quatro, senão milhares de horas mais tarde. Alguém que filho de sitiante, vivia da terra, do mondar, da cavalgadura, da ordenha, do arado, da foice, do machado, da enxada, da lavoura pouca e dívidas muitas. A Moça das Quatro possuía agora uma dentição quase estragada, dois filhos e se encontrava em caminho para o terceiro. Já não se lembrava dos versos de Camões, de Pessoa e tão pouco dos de Gregório de Matos. Lembrava-se, contudo, do Bolinha, das amigas Bertipaglias e se lembrava pouco dos homens casados que a desejavam às quatro horas da tarde.

Ah ! A Moça das Quatro não se lembrava, também, do Observador.

ASSIS RONDÔNIA

(21.10.96)