O segredo

― Você contaria tudo?

― Como? – perguntou ao homem ao seu lado na espera do consultório do oftalmologista.

― Eu perguntei se você contaria tudo – disse o homem, aparentando uns sessenta anos.

― Eu não entendi a pergunta.

― Deve ser porque você estava pensando profundamente em outra coisa. Vi pelo olhar perdido. Perguntei se você contaria tudo sobre sua vida se fosse um homem famoso e lhe pedissem que contasse toda a sua vida para escreverem uma biografia. Você contaria tudo ou esconderia algumas coisas?

― Ah, sim. Bem, acho que contaria tudo sim.

― Será mesmo?

― Como assim “será mesmo”? É claro que eu contaria toda a minha vida. Se é para contar, eu contaria tudo. Eu tenho orgulho de minha história.

― Não diga. Aposto que não contaria.

― O quê? O que o senhor quer dizer com isso? Eu não tenho nada a esconder. Minha vida é um livro aberto.

― Fácil de dizer. Difícil é cumprir. Quantas páginas ficariam de fora dessa biografia?

― Do que o senhor está falando? Já disse que não esconderia nada. Não há nada para esconder.

― Continuo não acreditando. Todo mundo tem... você sabe... segredos.

― Menos eu, meu amigo. Sou, como disse, um homem sem nada a esconder. Detesto segredos. Não guardo nenhum. Não faço nada que pudesse ser vergonhoso. Sou um livro aberto.

― É o que todo mundo diz, mas, no final, sempre algo vem à tona.

― Não comigo. Eu não tenho nada a esconder.

― Nem um segredozinho da infância?

― Claro que não! Por que está dizendo isso?

― Nada não. É que conheci gente que também negava assim como você e, no leito de morte confessou: tinha medo de mosca.

― Como é?

― Isso mesmo. Tinha medo de mosca. Era amigo meu. Sempre percebi seu comportamento mudar quando aparecia uma. Ele ficava estranho, mais nervoso. Não entendia por que, mas eu desconfiava que alguma coisa aparecia pra ele ficar daquele jeito. Mas eu não via nada, então cheguei a pensar que era fantasma, alguma coisa do além. Mas não, era, na verdade, quando ele via uma mosca.

― E ele só confessou no leito de morte? Mas por que ele tinha tanto medo de mosca?

― Ele dizia que era desde que ele vira na infância um filme em que um homem virava mosca. Disse que era a coisa mais horrível que vira na vida. Era pior que lobisomem, pois o homem passava a ter olhos enormes e uma boca toda estranha. Ele passou a sonhar com a cabeça daquela mosca e cada vez que via uma se lembrava da cena do filme. Por isso tinha medo delas.

― Bem, eu também me assustei com o filme “o homem-cobra”. Tive um pouco de medo de cobra, mas não durou a vida toda. Hoje eu encaro uma serpente numa boa.

― Mas não estou falando só de fobias. Estou falando de situações vergonhosas, de vexames que não queremos que mais ninguém saiba. Só as pessoas que souberam na época em que aconteceu. Tem gente que deseja que as únicas testemunhas morram pra ninguém mais saber e torcer para que elas não tenham contado a mais ninguém. Pelo menos sem citar seu nome.

― Olhe amigo, realmente eu não sou uma dessas pessoas.

― Será? Todo mundo tem um segredo. Ao menos um.

― Será que você ainda não entendeu? Já disse não tenho nada oculto em minha vida.

― Será? Eu não teria tanta certeza.

― Do que o senhor está falando exatamente? Está insinuando alguma coisa? O senhor me conhece?

― Não, mas não poderia conhecer um segredo seu mesmo sem saber seu nome? Não poderia ser uma testemunha anônima de um certo ato, um certo flagra?

― O que está dizendo afinal? Flagrou-me fazendo algo escandaloso, por acaso?

― Haveria algo a flagrar?

― É claro que não! Nunca houve.

― Então por que pergunta se o flagrei? Flagraria o quê?

― Espere aí! Entendi seu jogo. Você quer que eu confesse alguma coisa. Está me chantageando para não contar um suposto segredo meu?

― Quem falou em chantagear? Eu pedi-lhe algo, por acaso? Estou apenas perguntando se eu não poderia ter-lhe flagrado fazendo algo.

 

― Olha, essa conversa já deu pra mim! Não quero mais saber disso!

― Está nervoso por quê?

― Nervoso?! Por que eu estaria nervoso? Claro que não!

― Está nervoso sim.

― Não, não estou nervoso!

― É claro que está.

― Escute aqui seu imbecil, eu já disse que não quero mais falar disso!

― Disso o quê? Só estou perguntando se está nervoso.

― Disso tudo, ora! Se estou nervoso! Se tenho segredo!

― Mas se não tem, por que está nervoso?

Eu já disse que não estou nervoso! Não tenho segredo algum, entendeu?

― Se não tem nada a esconder, por que está tão alterado com o assunto?

― Porque você enche o saco! Não para de perguntar uma coisa que já respondi, pombas!

― Pois é... Não tem segredo algum e tem problema pra responder sobre isso...

― Eu não tenho problema algum em responder! É que você insiste em perguntar várias vezes, ora!

― Então tem certeza mesmo de que não tem nada a esconder?

― Tá vendo? Tá vendo? Perguntou de novo!

― Olhe bem nos meus olhos e responda.

― Com é? O que é isso agora? Depoimento? Você é policial por acaso?

― Policial não...

― Como assim “policial não...”? Que mistério é esse?

― Mistério algum. Apenas não sou policial, mas...

― Que “mas...”? Como assim? O que está querendo dizer?

― Você me conhece? Sabe algo de mim? Quem é você? Eu não me lembro de ter visto você antes. E-eu não te conheço. Ou te conheço? Ah, então é isso, você me conhece de algum lugar e estava fingindo que não me conhecia. É algum cliente antigo? Colega de escola? Eu não me lembro de você? Tinha cabelo grande? Pintou o cabelo? Fez plástica? Emagreceu? De onde te conheço? O que sabe de mim? Por que está me olhando desse jeito? Então me conhece mesmo, né? O que sabe de mim? Me conta, vamos! Vamos! Conta! Quem é você? Não me diga que você sabe de alguma coisa em Itabuna? Não era eu, hein? Foi acidente, eu juro! Eu só passei lá. Não era eu. Não era eu! Ei, pra onde vai? Você não respondeu minhas pergunta! Quem é você?! Tá bom, eu confesso! Fui eu! Fui eu! O que você vai fazer?! Afinal, quem é você, cara?!

Ele vira levemente a cabeça para trás e responde:

― Segredo.